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O OUTRO E SUAS SINUOSIDADES: CONSIDERAÇÕES DEONTOLÓGICAS

3 ARTESANATO INTELECTUAL: CAMINHOS, MÉTODOS E TROCAS

3.5 O OUTRO E SUAS SINUOSIDADES: CONSIDERAÇÕES DEONTOLÓGICAS

Roteiros prontos e manuais de entrevista frescos na memória: estava assim teoricamente preparada para investigar o meu “objeto” e extrair dele o que havia me proposto nos objetivos listados em projeto. Seguidos os passos acadêmicos indicados para me aproximar do campo, em algumas semanas ali adentrava em um novo universo de informações. Mas adentrava, para além de um espaço de investigação sociológica, também em trajetórias, em vidas de indivíduos

34 Livreto epidemiológico realizado pela Fundação Oswaldo Cruz em parceria com a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD). [Consultado em 03/08/2013] Disponível em: http:// www.icict.fiocruz.br/files/livreto_epidemiologico_17set.pdf

fragilizados que experienciavam longos processos de degradação moral. Desenvolver o meu projeto implicava para mim, nesse sentido, não apenas aplicar teorias e métodos da Sociologia a fim de pensar a noiado; era bem mais um exercício de diálogo, no qual tanto eu quanto os meus interlocutores definiríamos o ritmo, os passos e, em grande parte, os caminhos a serem seguidos.

Neste universo me lancei, me permiti ser “sociologicamente indiscreta”. Mas como sentar frente a um desconhecido e desejar vê-lo falar, vê-lo narrar suas trajetórias de vida? Como querer ver esse então desconhecido entregar suas vivências e pontos de vista profundos a uma estranha que chega e se vai? Muitos cientistas sociais esperam afinal descobrir as particularidades da vida dos sujeitos, mantendo distância deles. E uma distância que eu sabia, de certo modo, necessária, mas da qual não sabia a dimensão ao certo, afinal, muita tinta já tinha sido gasta para argumentar que “o distanciamento entre sujeito e objeto pode produzir não só enganos, como também efeitos etnocêntricos” (MATTOS, 2006, p. 36).

Este foi um elemento que me inquietou e que esteve sempre presente no meu diário de campo. Preferi, arriscar, filosoficamente ancorada nas teorias do care de Carol Guilligan (2008) et Joan Tronto (2009)35. A confiança, a identificação e o cuidado com o outro foram fundamentais no meu trajeto, sobremaneira para os meus entrevistados usuários, que possuem vidas de desconfiança e apatia. Mas como construir a confiança dentro da ligeireza de um cronograma? Como abrir portas

35 Essa abordagem do care, do cuidado, em confluência com minha postura ética, transforma o projeto neoliberal do ser humano, amplamente difundido, como performante, individualista, estritamente racional e empreendedor de si, propondo, em vez disso, um ser emocional, frágil, em relação, habitante de um corpo efêmero diante dos riscos da sociedade e da natureza que o transcendem. A filosofia do care também propõe, como mostraram C. Guilligan e J. Tronto, um novo olhar sobre as noções de justiça, ética e política. Nesse sentido e, portanto, ele também propõe repensar o risco, segundo U. Beck (2001), elemento fundador da nossa sociedade. Associados culturalmente com essa percepção de risco, contemplamos a estruturação de um moderno projeto de domínio do mundo, liderado pela racionalidade científica e técnica. Também contemplamos o surgimento, no campo da saúde, de uma biomedicalização do mundo secular e de um paciente-sentinela que se torna responsável por examinar seu corpo e administrar seu comportamento. A noção de cuidado permite, portanto, redimensionar esse contexto de gestão de risco, convidando-nos, por exemplo, a refletir sobre as condições concretas de apoio à autonomia dos indivíduos, bem como suas resistências antropológicas.

simplesmente a fim fechá-las o mais breve possível? Essa foi uma reflexão também constante, que me parece impor limites às Ciências Sociais e à sua capacidade de conhecer a fundo indivíduos e histórias.

Há na sociologia interacionista que inspira esse trabalho a perspectiva da vida social enquanto encenada, enquanto uma possibilidade de manipulação das impressões e das nossas representações, atuação que, deste modo, poderia ser desvendada. Partindo dela, tudo o que vivi em campo foi apenas uma cena e nós todos encenávamos nossos devidos papeis. Eu pesquisadora, eles pesquisados, nós envoltos da artificialidade típica do palco. Mas nesse exercício fui também, desafiando minha interpretação, o centro da curiosidade. Em que medida me abrir? O que contar, o que esconder? Atuar? De que forma isso influenciaria meus próximos passos e o resultado dele?

A vida passada e o curso habitual das atividades de determinado ator contêm tipicamente alguns fatos que, se fossem introduzidos durante a representação, desacreditariam ou, no mínimo, enfraqueceriam as pretensões relativas à sua personalidade que o ator estava tentando projetar, como parte da definição da situação (GOFFMAN, 2007, p. 199).

Em função de tantas questões, perspectivas e da minha impossibilidade de apreendê-las de forma exata, houve a insegurança.

E foi nesse contexto de insegurança que a “técnica” mais eficaz do meu trajeto metodológico foi a construção do vínculo. Essa construção foi importante não apenas para ter mais espaço nas atividades e no dia-a-dia, me tornando minimamente parte dele – um outro menos estranho, mais também para adentrar nas vidas, em certos momentos tendo que escancarar a minha para gerar confiança e afinidade. E quando me abria, uma porta se abria, criava-se um vínculo de confiança, barreiras eram desfeitas. Tendo a pesquisa sido finalizada, isso foi resultado da aceitação por parte deles da minha existência e atuação naquele local. Esse foi um exercício muito proveitoso que exigiu, para além da racionalização, sobremaneira a espontaneidade e a sensibilidade. E a sensibilidade também para saber parar, cortar as arestas e respeitar o limite do outro. Tudo foi cercado de intuição e respeito. Esse foi o fundo ético da minha pesquisa, que me possibilitou colher as tantas informações que serão compartilhadas no corpo desse trabalho, também em busca de destruir preconceitos e abrir horizontes, mesmo pequenos, de compreensão.

Tomando ainda como base este fundo ético, me cabe, por fim, afirmar que, também por posição política, esse trabalho não se pretendeu registrar no Comitê de Ética em Pesquisas Envolvendo Seres Humanos (COMEP) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), o que não significa que não presou levar em conta suas normativas de pesquisa. Como os interlocutores com os quais pretendia dialogar sofriam diversas modalidades de vulnerabilidade social, foi, como já colocado, fundamental prezar eticamente por sua integridade, inclusive psicológica. Apesar do não registro do projeto, todos os seus procedimentos foram feitos no intuito de preservar o máximo possível os sujeitos interlocutores.

No que concerne à minha escolha política e para finalizar a questão, apesar de respeitar e considerar relevantes muitas das considerações do comitê, acho importante salientar os tão discutidos dilemas da imposição de um modelo biomédico de pesquisa social para os cientistas sociais que pesquisam usuários de substâncias psicoativas (RUI, 2013). Como bem ressaltou Rui, há uma diferença entre pesquisas realizadas em seres humanos (caso da área biomédica) e com seres humanos (a situação, por exemplo, da Sociologia). Nas pesquisas em seres humanos, a relação com os sujeitos teria como paradigma uma situação de intervenção em que as pessoas seriam colocadas na situação frágil de “cobaias”. Nesse caso, procedimentos como a obtenção formal de consentimento informado do sujeito da pesquisa seria, também a meu ver, exigências legítimas e da maior importância. No que concerne a pesquisas com seres humanos e ainda de acordo com Rui, os indivíduos não estão na posição de cobaia ou objeto de intervenção e sim, são atores e sujeitos de interlocução. Estes participam, de diversas formas, como pude experienciar, da configuração e execução da metodologia, assim como da definição do problema.