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PERAMBULANDO PELAS RUAS: ENCRUZILHADAS E PEDRAS NO

3 ARTESANATO INTELECTUAL: CAMINHOS, MÉTODOS E TROCAS

3.1 PERAMBULANDO PELAS RUAS: ENCRUZILHADAS E PEDRAS NO

21 Perambulando pelas ruas: referência dada pelos meus entrevistados para descrever onde poderia encontrar o noiado. Perambular significa andar sem rumo. Paradoxalmente, na pesquisa, perambular é fundamental. Encruzilhada: referência geográfica central associada ao consumo de crack na cidade Recife. É também, em sentido amplo, o encontro de ruas, de forma perpendicular. Foi perambulando em bibliotecas e periódicos on-line que consegui perceber esses pontos de encontro, nem sempre evidentes. No que concerne à pesquisa, metaforicamente expressa para mim o encontro necessário entre autores, conceitos. No imaginário popular recifense, encruzilhada é, no entanto, lugar de despacho; lugar perigoso, então. Pedra: Crack. Pedras no caminho são associadas às dificuldades. Pedras no caminho, no entanto, também podem indicar a direção, sinalizar a rota.

A problemática inicial que orientou este livro foi, como já brevemente elucidado, um desdobramento do meu trabalho de graduação associado, por sua vez, a inquietações minhas diante de uma compreensão sobre os extremos da dimensão humana no âmbito da coletividade. Naquele primeiro esforço interpretativo, como já introduzido, problematizei o conceito de exclusão social em diálogo com adictos em crack, para os quais a dimensão da sujeiticidade e das representações da vida adquirira um caráter fundamental; foi sobretudo nessa dimensão que a exclusão mostrara sua face mais cruel. Nas interlocuções empreendidas em campo, a figura do noiado emergira constantemente para simbolizar a situação mais extrema de desqualificação, de descrédito, o estado per si da exclusão. Apontando muito mais do que uma relação de suposto abuso com uma substância específica, ele simbolizou um processo intersubjetivo de negociação de identidades, ou de negação de humanidade; simbolizou também um estado degenerativo de representação do outro. Neste horizonte exploratório, foi visando compreender mais profundamente o universo simbólico incorporado no noiado que o meu projeto de pesquisa se colou.

Enquanto uma continuação da minha trajetória acadêmica e interpretativa, busquei então investigar, a partir da perspectiva de usuários de crack, o termo noiado. Sobretudo, ambicionava explorar diretamente as faces de sentido expressas pelo termo em questão, assim como as esferas da vida social através das quais ele podia ser definido. A titulo preparatório, procedi a uma busca das produções científicas que orbitavam em torno do meu objeto, o que me exigiu, de pronto, um recorte temporal mais ou menos lúcido de vinte anos (de 1996 à 2016). Nesta busca inicial realizada, utilizei como banco de dados dois portais de pesquisa on-line, mais especificamente o Google Acadêmico e o Portal de Periódicos CAPES22. Nestes, comecei simplesmente por buscar, em português, pelas palavras-chave crack e noiado.

Tendo já certo conhecimento sobre o tema do crack em função do meu trabalho de graduação, deparei-me, naturalmente, com literaturas já visitadas. Criei um catálogo de

22 Do qual tinha exclusivamente acesso por ser mestranda de um programa de pós-graduação federal de um país que usara até pouco o slogan de pátria educadora. O slogan ordem e progresso do governo que se sucedeu, de maneira catastrófica, tornou, nesse sentido, as coisas mais claras, ainda que extremamente mais preocupantes.

bibliografias conhecidas que ainda me pareciam centrais, selecionei outras mais atuais ainda não lidas. Se este levantamento não representou, para mim, um esgotamento das possibilidades de abordagem da problemática do crack, ele me levou a dar ênfase às literaturas mais atuais, que não apenas resgatavam o que havia sido dito com uma competência bibliográfica exemplar, como propunham novas formas de olhar. No que tangia especialmente à nomenclatura do noiado, alguns poucos artigos mais abrangentes e a premiada tese da antropóloga Taniele Rui (2012), que, assim como eu pretendia fazer, dizia tomar a figura do noia, variação terminológica do noiado, como central em sua análise. Precisei de algumas releituras para constatar que os méritos do trabalho de Rui não eram, de fato, associados realmente a exploração dessa categoria, tratada de maneira periférica em algumas poucas páginas de sua excelente etnografia sobre o crack, o corpo dos usuários e a Cracolândia.

Mas ali, foi certo, encontrei não apenas uma interlocutora importante, mas um bom suporte para legitimar minha inquietação intelectual: aquela nomenclatura nativa, si trabalhada sociologicamente, poderia, de fato, dizer coisas importantes que ainda não tinham sido ditas. E ai é que nos deparamos com o caráter original de minha abordagem: para dar conta de meu objeto, como já dito, eu construí um tipo psicossocial. O termo nativo, assim, na minha analítica, se transmuta em tipificação, isto é, o noiado vira noção (condensação de sentidos) que me permite aplicação, operacionalização e interpretação empírica do meu campo de pesquisa. Com a noção de noiado, faço circular diversos vocabulários, conceitos e condutas originários das ciências sociais, para tornar inteligível, sociologicamente, seu uso na vida social. Meus fundamentos teórico- metodológicos, assim como a mudança de campo inesperada, marcaram ainda mais meus caminhos próprios de análise.

Retomando o fio da revisão bibliográfica, outro resultado deste primeiro momento, que influenciou bastante a configuração deste trabalho, foi a decisão de não me prolongar aqui sobre uma revisão bibliográfica nacional e internacional sobre o crack; ela fora feita com competência e insistência por diversos autores, os quais optei por citar ou usar quando me fosse necessário para

analisar o meu material empírico23. E mesmo: eu sabia que não queria falar exatamente sobre o crack, mesmo que a temática fosse central para minha compreensão. Foi apenas depois de analisar meus dados que descobri que o problema central, mesmo empírico, não era, de fato, o crack. Como argumentarei, apesar de tomado como referência química inicial e automática para descrever o noiado, a substância não era sua única droga de consumo, nem tampouco, como buscarei argumentar, o aspecto determinante no que tangia à sua caracterização e desclassificação social.