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UM SOBREVOO SOBRE O CENTRO DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL ÁLCOOL E

3 ARTESANATO INTELECTUAL: CAMINHOS, MÉTODOS E TROCAS

3.3 UM SOBREVOO SOBRE O CENTRO DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL ÁLCOOL E

DROGAS (CAPS-AD)

Cheguei no CAPs meio de súbito, sem saber muita coisa. O pouco que sabia, tinha escutado de alguns colegas e professores, mesmo lido rapidamente no contexto de algumas pesquisas sobre o crack; o CAPs era, de fato, nas Ciências Sociais, um universo de pesquisa mais ou menos popular, mesmo que a mim estranho, quase desconhecido. Mas do ponto de vista do olhar, isso não fora completamente negativo: sem tempo para muitas leituras, muito do CAPs, tanto do ponto de vista teórico como do prático, aprendi em seu cotidiano, trocando diretamente com seus usuários e servidores. Existia, no entanto, um aspecto que era desde o início fundamental e motivador: ele substituía um modelo de cuidado hospitalocêntrico e inseria-se, no contexto do Estado democrático e cidadão, no seio do Sistema Único de Sáude (SUS), o qual, por sua vez

alicerça-se nos princípios de acesso universal, público e gratuito às ações e serviços de saúde: integralidade das ações, cuidando do indivíduo como um todo e não como um amontoado de partes; equidade, como o dever de atender igualmente o direito de cada um, respeitando suas diferenças; descentralização dos recursos de saúde, garantindo cuidado de boa qualidade o mais próximo dos usuários que dele necessitam; controle social exercido pelos Conselhos Municipais, Estaduais e Nacional de Saúde com representação dos usuários, trabalhadores, prestadores, organizações da sociedade civil e instituições formadoras (Ministérios da Saúde, 2004, p. 13).

Logo depois de minha entrada, vim a tomar conhecimento que, ipsiliteris, segundo o Ministério da Saúde (2004), os CAPs – ou Centros de Atenção Psicossocial – são

instituições destinadas a acolher os pacientes com transtornos mentais, estimular sua integração social e familiar, apoiá-los em suas iniciativas de busca da autonomia, oferecer- lhes atendimento médico e psicológico. Sua característica principal é buscar integrá-los a um ambiente social e cultural concreto, designado como seu “território”26, o espaço da

26 Ainda segundo o Ministério da Saúde (2004, p. 11), por território entende-se não “apenas uma área geográfica, embora sua geografia também seja muito importante para caracterizá-lo. O território é

cidade onde se desenvolve a vida quotidiana de usuários e familiares. Os CAPS constituem a principal estratégia do processo de reforma psiquiátrica (p. 9).

Como ferramenta da saúde pública que deve estar associada a uma rede de serviços de cuidado – como os sócio-sanitários, jurídos, educativos, etc. –, formado por uma equipe multiprofissional27,

o eixo articulador do CAPs, segundo a mesma instituição, é a existência das pessoas, seu sofrimento. Tendo surgido em 1986, em São Paulo, como resultado de um movimento de denúncia da precária situação dos hospitais psiquiátricos, ele é um dispositivo de “cuidado intensivo, comunitário, personalizado e promotor de vida” (p.13). Como cheguei a presenciar em diversas situações, sua atividades transbordam sua própria estrutura física, visando a um suporte social, potencializador de suas ações, na qual o sujeito é considerado em sua história e singularidade. Ao que concerne, por fim, ao seu público de atendimento, ele inclui pessoas com “transtornos mentais severos e/ou persistentes”, pessoas com “grave sofrimento psíquico incluindo os transtornos relacionados às substâncias psicoativas (álcool e outras drogas)” (ibidem, p. 15). Para ser

constituído fundamentalmente pelas pessoas que nele habitam, com seus conflitos, seus interesses, seus amigos, seus vizinhos, sua família, suas instituições, seus cenários (igreja, cultos, escola, trabalho, boteco etc.). É essa noção de território que busca organizar uma rede de atenção às pessoas que sofrem com transtornos mentais e suas famílias, amigos e interessados”.

27 Segundo o Ministério da Saúde (2004, p. 27-28): “Os profissionais que trabalham nos CAPS possuem diversas formações e integram uma equipe multiprofissional. É um grupo de diferentes técnicos de nível superior e de nível médio. Os profissionais de nível superior são: enfermeiros, médicos, psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, pedagogos, professores de educação física ou outros necessários para as atividades oferecidas nos CAPS. Os profissionais de nível médio podem ser: técnicos e/ou auxiliares de enfermagem, técnicos administrativos, educadores e artesãos. Os CAPS contam ainda com equipes de limpeza e de cozinha”. No que tange ao CAPSAd, a equipe mínima deve conter: “1 médico psiquiatra, 1 enfermeiro com formação em saúde mental, 1 médico clínico, responsável pela triagem, avaliação e acompanhamento das intercorrências clínicas, 4 profissionais de nível superior entre as seguintes categorias profissionais: psicólogo, assistente social, enfermeiro, terapeuta ocupacional, pedagogo ou outro profissional necessário ao projeto terapêutico; 6 profissionais de nível médio: técnico e/ou auxiliar de enfermagem, técnico administrativo, técnico educacional e artesão”.

atendido, basta ao usuário “procurar diretamente esse serviço ou ser encaminhado pelo Programa de Saúde da Família ou por qualquer serviço de saúde” (ibidem).

O sistema CAPs é composto por diversas modalidades, diferenciadas, por exemplo, quanto ao tamanho e à especificidade da demanda do usuário. No caso do CAPs no qual desenvolvi minha pesquisa, o CAPs-Ad ou Centro de Atenção Psicossocial - Álcool e Drogas, existente depois de 2002, ele é destinado ao paciente cuja principal questão é o “uso prejudicial de álcool e outras

drogas” (ibidem, p. 24). Como colocado no manual CAPs, esta vertente desenvolve

uma gama de atividades que vão desde o atendimento individual (medicamentoso, psicoterápico, de orientação, entre outros) até atendimentos em grupo ou oficinas terapêuticas e visitas domiciliares. Também devem oferecer condições para o repouso, bem como para a desintoxicação ambulatorial de pacientes que necessitem desse tipo de cuidados e que não demandem por atenção clínica hospitalar (p. 25).

Atuando também de forma preventiva, caberia ao CAPs-Ad trabalhar para evitar o primeiro uso de substâncias psicoativas, impedir um aumento do seu uso e reduzir os danos deste uso. Através deste primeiro voo, mais teórico no entanto, é já possível constatar que e o CAPs-Ad insere-se num quadro de progressivo deslocamento do centro de cuidado em direção à comunidade, por sua vez, fora do hospital psiquiátrico28, historicamente receptor também de usuários de substâncias

químicas.

Essa configuração não foi necessariamente alvo do meu estudo, mas influenciou, sem dúvidas, a sua configuração, mesmo porque, na prática, como se é possível prever, as coisas se mostraram substancialmente distintas do que pregou a teoria. Enquanto órgão do Estado, ele também produz e reproduz consensos sociais opacos sobre o uso de substâncias psicoativas, sobre usuários, sobre

28 Instituição total, o hospital psiquiátrico já foi, várias vezes, objeto de estudo na Sociologia, sendo, a meu ver, desta saga, o francês Michel Foucault (1999) e o americano Erving Goffman símbolos maiores. Foucault buscou apresentar-nos um quadro histórico-descritivo da emergência de mecanismos modernos de controle e disciplinamento dos corpos; já Goffman (1974) tratou o manicômio enquanto um espaço no qual circulam discursos e práticas terapêuticas e institucionais que produzem, dentre outros aspectos, o adoecimento emocional do paciente, fruto dos modos de sujeição institucional.

uma vida considerada digna na moralidade vigente. De tempos em tempos, essas contradições surgirão em relatos etnográficos ou depoimentos de funcionários, materiais esses, como veremos agora, complementares da minha análise.