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Breve visão constitucional dos contratos e seus princípios

3. REVISÃO E RESOLUÇÃO DOS CONTRATOS POR ONEROSIDADE

3.2 Breve visão constitucional dos contratos e seus princípios

A ideia de contrato sempre esteve vinculada ao valor de segurança jurídica e à liberdade de contratar, observando os princípios gerais do Direito dos Contratos.96 Em nosso ordenamento, esses valores são protegidos pela Constituição Federal, que consagrou a livre- -iniciativa e a propriedade privada, fundamentos do nosso Estado Democrático de Direito.97

96 GOMES, Orlando. Contratos. 26. ed., rev., atual. e aumentada de acordo com o Código Civil de 2002.

Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 25. “Os princípios gerais do Direito dos Contratos podem ser classificados em, de um lado, princípios clássicos, compostos pelos princípios da autonomia da vontade, do consentimento e da força obrigatória; e, de outro lado, em princípios contratuais, dentre os quais estão a boa-fé, o equilíbrio econômico do contrato e a função social do contrato”. Dessa forma, temos que (i) o princípio da autonomia da vontade é traduzido no direito contratual como a garantia às partes da liberdade de contratar. Em outras palavras, é o direito que as partes capazestêm de, mediante declaração de suas vontades, provocar o nascimento de um direito ou comprometer-se ao cumprimento de determinada obrigação; por sua vez, (ii) o princípio do consentimento é aquele pelo qual o simples acordo de vontade das partes é suficiente à perfeição do contrato. Cfm. GOMES, Orlando. Contratos. 26. ed., p. 37. Contudo, nem sempre foi assim. Nas civilizações anteriores, o consentimento dependia de rito formal e simbólico, subordinado a determinados ritual e forma. A contratação no direito romano era altamente formalizada, possuindo tipos muito bem delimitados. Os rituais tinham uma importância ímpar para determinar o consentimento na celebração dos contratos. A celebração de contratos reais, por exemplo, era realizada

per aes et libram, que consistia em solenidade executada pelos libripens, que era o ato simbólico de pesar

em uma balança. Os contratos literais, por sua vez, dependiam de uma forma escrita, os litteris, que além de constituir prova da contratação, era o marco da existência do contrato – formavam-se pelas nomina

transcripticia e pelos chirographa e syngraphae. Finalmente, somente nos contratos consensuais os

romanos admitiam que a formação decorresse do simples consentimento. Contudo, esses contratos, na época, eram em número escasso. Quando não se tinha disponível uma forma para realizar uma determinada contratação, as pessoas recorriam à stipulatio, modo verbal de contrato pelo qual, depois de pronunciada determinadas palavras e verbos específicos (spondeo), entre presentes, criava-se uma obrigação. A história do direito mostra que essa ritualística, que exigia os contratantes presentes, e que depois ganhou a forma escrita, criava dificuldade para a celebração dos contratos, o que incrementou a contratação sem uma veste específica, para utilizar o termo da teoria medieval das vestimentas. Por fim, o último dos princípios clássicos dos contratos é o da (iii) força obrigatória: pacta sunt servanda. Com relação aos princípios contratuais, (i) a boa-fé, primeiro dos princípios classificados como “contratuais” pela doutrina (Cfm. GOMES, Orlando. Contratos. 26. ed., p. 25), embora já estivesse presente no Código Comercial de 1850 como um princípio indispensável para a interpretação dos contratos (Cfm. art. 131a. “Sendo necessário interpretar as cláusulas do contrato, a interpretação, além das regras sobreditas, será regulada sobre as seguintes bases: 1 – a inteligência simples e adequada, que for mais conforme à boa-fé e ao verdadeiro espírito e natureza do contrato, deverá sempre prevalecer à rigorosa e restrita significação das palavras; 2 – as cláusulas duvidosas serão entendidas pelas que o não forem, e que as partes tiverem admitido; e as antecedentes e subsequentes, que estiverem em harmonia, explicarão as ambíguas; 3 – o fato dos contraentes posterior ao contrato, que tiver relação com o objeto principal, será a melhor explicação da vontade que as partes tiverem no ato da celebração do mesmo contrato; 4 – o uso e prática geralmente observada no comércio nos casos da mesma natureza, e especialmente o costume do lugar onde o contrato deva ter execução, prevalecerão a qualquer inteligência em contrário que se pretenda dar às palavras; 5 – nos casos duvidosos, que não possam resolver-se segundo as bases estabelecidas, decidir- se-á em favor do devedor”), assumiu na doutrina civilista contemporânea, papel de destaque em razão de sua inclusão no Código Civil de 2002 (Cfm. art. 422 “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”); o (ii) equilíbrio econômico do contrato; e a (iii) função social do contrato.

97 Entre as disposições constitucionais que consagram a livre-iniciativa e a propriedade privada, destacam-

se para os fins do presente trabalho: “Art. 1ºA República Federativa do Brasil, formada pela União indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) IV – os valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa; Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos

Contudo, conforme ensina Eros Grau, tais valores devem ser preservados, mas não de forma absoluta, e sim relativa.98

Essa ideia de a preservação dos princípios da ordem econômica ser relativa confirma- se na opção do legislador constitucional quando estabelece que cabe ao Estado regular as relações econômicas, preservando o direito de livre-iniciava e, somente em casos específicos, intervir para evitar abusos.99,100

Portanto, no nosso ordenamento atual, temos, de um lado, a proteção constitucional que privilegia a liberdade de contratar e a livre-iniciativa, com a intervenção estatal somente em casos de abusos; de outro lado, os novos princípios contratuais e leis ordinárias que abrem possibilidade de maior intervenção do Estado nas relações privadas, mediante a atuação do juiz, como é o caso dos arts. 317, 478 a 480 do Código Civil vigente, bem como o art. 6º, inciso V, do Código de Defesa do Consumidor.

A possibilidade de o juiz rever ou resolver um contrato, fundada nos arts. 317, 478 e seguintes do Código Civil vigente, bem como no art. 6º, inciso V, do Código de Defesa do Consumidor, é uma forma de intervenção judicial do Estado nas relações privadas, que deve ser exercida com cautela pelo juiz, sob pena de sua decisão alterar a vontade das partes e

estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…) XVII – é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar; e XXII – é garantido o direito de propriedade; Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre-iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (…) II – propriedade privada; III – função social da propriedade; (…) Parágrafo único. É assegurado a todos o livre-exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”.

98 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1997.

p. 123. “Os dois valores fundamentais juridicamente protegidos nas economias do tipo capitalista são, simetricamente, o da propriedade dos bens de produção – leia-se propriedade privada dos bens de produção – e o da liberdade de contratar (ainda que se entenda que tais valores são preservados não em regime absoluto, mas relativo)”.

99 Nesse sentido, dispõem os capita dos arts. 173 e 174 da Carta Magna sobre a atuação do Estado na

intervenção na atividade privada: “Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei”; “Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado”.

100 Com relação à forma de intervenção do Estado nas relações econômicas, esclarece Giuliana Bonanno

Schunck (A onerosidade excessiva superveniente no Código Civil, p. 24-25) que “o fato de haver certa intervenção ou regulação da economia pelo Estado não afasta, porém, o modelo capitalista que tem suas bases na iniciativa privada e na apropriação privada dos meios de produção”. Continua a autora, citando Miguel Reale, em relação à nossa Constituição Federal: “adotou um posicionamento intermediário entre o liberalismo econômico predominante no século XIX, avesso a qualquer intervenção estatal, e o dirigismo do Estado, estabelecendo uma posição neoliberalista ou social-liberalista”.

causar prejuízos a uma delas, conforme será analisado de forma mais minudente no Capítulo 6, subcapítulo 6.1, a seguir.

Nesse sentido, conclui-se que a aplicação adequada dos arts. 317 e 478 a 480 do Código Civil, bem como do art. 6º, inciso V, do Código de Defesa do Consumidor, não depende apenas da verificação da presença de seus requisitos legais.

É fundamental levar em consideração também os princípios constitucionais aplicáveis, os limites da intervenção do Estado nas relações privadas, bem como os princípios contratuais.

A seguir, serão analisadas as hipóteses legais vigentes no direito privado brasileiro que regulam a revisão e a resolução dos contratos por onerosidade excessiva, iniciando-se, em razão de origem cronológica, pela disposição legal inserida no Código de Defesa do Consumidor em 1990 – art. 6º, inciso V, e, em seguida, passando-se à análise dos arts. 317, 478 e seguintes do Código Civil promulgado em 2002.

3.3 Revisão dos contratos por onerosidade excessiva no Código de Defesa do