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Breves Apontamentos sobre a Destituição da Linguagem

CAPÍTULO 1 DE PASSAGEM PELA MODERNIDADE, O SUJEITO E A LINGUAGEM

1.6 Considerações sobre a Linguagem e Decorrências da Passagem Crítica

1.6.2 Breves Apontamentos sobre a Destituição da Linguagem

Do horizonte institucional da linguagem artística, ancorado nas águas da autonomia estética e da subjetividade intrínseca da perspectiva, uma nova percepção veio a destituir sua sintagmática, colocando preceitos como a inexistência de uma

verdade totalizadora ou de uma substância, a diversidade e a heterogeneidade sob um novo ângulo. Principalmente os artistas e pensadores pós-modernistas e desconstrutivistas se empenharam no questionamento de uma pretendida secularização da linguagem e do sujeito, do autor e leitor, destacando nestas figuras aquilo que se mantinha de sistemas anteriores: a preservação de paradigmas referenciais imanentes e a auto- suficiência. Nesse movimento, buscaram falar sobre o que resiste a ser mensurado pelas palavras porque participa do campo da indecibilidade e da potência da linguagem. São eventos que irrompem como singularidades irredutíveis às situações, na compreensão de Alain Badiou, e rompem constantemente em processos fiéis de verdade, irrepetíveis (BADIOU, 1994, p.111). O sujeito, para ele, é ocorrência local nesse processo, é ponto de verdade que não existe antes dela, uma derivação da fidelidade a um evento (uma verdade), produzida numa situação. Portanto, tais categorias não dizem respeito a nomes nem remetem a uma origem, antes se precipitam no abismo de todas as possibilidades.

O movimento constante desta composição é o deslocamento e o desdo- bramento, semelhante ao discurso sobre khôra, em que a afluência de formas narrativas parece referir a uma origem mitológica sempre substituída, provocando a sensação de vertigem (DERRIDA, 1995, p.48). Situado na perspectiva do "mito verossímil", imagem do mundo sensível que, por sua vez, é também imagem, o Timeu diz respeito a um lugar de inscrição que excede ou precede as oposições constitutivas do discurso mítico e do discurso sobre o mito, refletindo sobre aquilo que não pertence nem ao sensível nem ao inteligível. Em função disso, não caracteriza um discurso sobre o ser, não é nem verdadeiro nem verossímil, mas constitui-se como uma cadeia de tradições orais. Essa reflexão sobre o que é anterior ao ser, cuja origem mítica está sempre postergada até sua dissolução, diz Derrida, requer um discurso filosófico impuro, bastardo, híbrido (DERRIDA, 1995, p.70-71). Responde a uma necessidade que porta a filosofia, precede e recebe o relato sobre o cosmos, da qual a própria filosofia não pode falar porque a linguagem é sempre inadequada e a interpretação nunca alcança traduzi-lo. Khôra tampouco equivale a um sujeito, a um ente, a uma substância

essencial, não é da ordem das idéias nem das imagens pertencentes a um logos ontológico. Desta maneira, isso que corresponde à khôra não pode ser determinado pelo ato de linguagem, porque ele estabelece uma ordem dentro da multiplicidade, e

khôra não possui uma propriedade que possa servir de referente para essa organização. Khôra é amorfa, mas não vazia, não se localiza no tempo nem no espaço, mas efetua a

soma ou o processo daquilo que toma lugar nela sem ser o suporte presente dessa relação. Derrida atende a "uma 'lógica' cuja formalização parece mais ou menos impossível" (DERRIDA, 1995, p.26). É isso que regula a composição do Timeu, estabe- lecendo uma dinâmica abissal, uma mise en abyme em que as formas de discurso dos lugares políticos em uma sociedade logocêntrica são afetadas. Essa afluência de relatos, que dilui qualquer origem, escapa a toda história, a toda revelação e a toda verdade.

A organização da linguagem, ao contrário, elimina o informe para engendrar o ser por meio do relato mítico da origem, ela efetiva um sacrifício desse elemento impuro, ilógico, impessoal, incerto e profano, anterior a ela, para resituá-lo no universo do sagrado por meio do nome. O sacrifício é o dispositivo que realiza a separação entre esses âmbitos, por isso Agamben defende que é preciso sacrificar o sacrifício, destituindo a linguagem da obrigação a um fim, da sua organização narrativa e mítica, para torná-la simples meio, um jogo, restituindo o uso impuro daquilo que se fez sagrado: "la creación de un nuevo uso es, así, posible para el hombre solamente

desactivando un viejo uso, volviéndolo inoperante" (AGAMBEN, 2005, p.112). Isso, no entanto, não assegura a liberação da linguagem, posto que não corresponde a uma posição fixa. Ao contrário, ela pode voltar a associar-se a um fim a qualquer momento, seqüestrada por dispositivos de poder renovados, ou tornar-se neutralizada em seu potencial profanador, esvaziada, como o fazem os dispositivos midiáticos.

A linguagem profanada perde sua propriedade e se inscreve no movimento de dessubjetivação abordado por Derrida na teoria desconstrutivista, submetendo-se aos processos instáveis de marca, iterabilidade e ex-apropriação que não admitem qualquer totalização ou limite. Para o desconstrutivismo, a relação com o outro se

torna irredutível a uma injunção do sujeito, resistindo a toda idealização. No entanto, isso não elimina o sentido da responsabilidade, mas o aprimora, excedendo os limites da moral vinculada a um sujeito calculado na medida em que o faz consciente das imposições do pensamento e da linguagem. Para Derrida, não se trata de "sacrificar o sacrifício", restituindo a linguagem a um potencial anterior a ela mesma e à sua apropriação por um sujeito, mas de uma mudança na relação profanadora que elimine as diferenças entre profano e sagrado, entre homem e animal, entre eu e outro (DERRIDA, 2005, p.166). Não sendo uma simples destituição dos nomes e dos fins, o ato profanador deve se fundamentar em uma ética que determine a melhor maneira de profanar o espaço sagrado do outro, nesse movimento de concepção- apropriação-assimilição, para além da "subjetividade do refém" de Lévinas, do humanismo do outro como sujeito. Esse é o sentido da metáfora do "comer bem", um comer que remete ao "comer da carne" de Agamben, profanar aquilo que foi sacralizado por meio do sacrifício.

La cuestión moral no es entonces, ni lo ha sido jamás: hay que comer o no hay que comer, comer esto y no aquello, al viviente o al no viviente, al hombre o al animal, sino más bien: ya que es bien necesario comer de todas maneras y que eso está bien, y que es bueno, y que no hay otra definición del bien, ¿cómo hay que comer bien? Y ¿qué implica esto? ¿Qué hay que comer?, ¿cómo regular esta metonimia de la introyección? Y ¿en qué la formulación misma de estas preguntas en el lenguaje da todavía de comer? ¿En qué la pregunta, si quieres, es todavía carnívora? La cuestión infinitamente metonímica del sujeto del "Hay que comer bien" no debe ser alimentada solamente por mí, por un yo, que entonces comería mal, ella debe ser compartida, como tú tal vez lo dirás, y no solamente en la lengua. "Hay que comer bien" no quiere decir en primer lugar tomar y comprender en sí, sino aprender y dar de comer, aprender-a-dar-de-comer-al-otro. No comemos nunca del todo solos, he aquí la regla del "hay que comer bien"

(DERRIDA, 2005, p.166).

Esse é o movimento próprio do processo de diluição do sujeito e da destituição da linguagem como propriedade e apropriação interpretativa do outro. Sendo que pode haver linguagem e subjetividade, o que deve mudar é sua posição quanto à atribuição de sentido e valor em relação às coisas. Como tem sido tratado

até agora, tanto sentido como valor equivalem a uma colocação política individualista, quando deveriam conectar-se a multiplicidades descolocadas, ou deslocadas.

É em relação a essa problemática que Gilles Deleuze e Félix Guattari elaboram sua reflexão em Mil platôs. Para esses autores, o enunciado e a enunciação não dependem de uma individualidade, conforme Derrida considerou acima, mas de agenciamentos maquínicos, agentes coletivos de enunciação, multiplicidades libidinais e inconscientes (DELEUZE e GUATTARI, 1995a, p.50-51). O indivíduo deve ser atra- vessado por essas multiplicidades, num exercício de despersonalização, para conquistar seu verdadeiro nome próprio, pura potencialidade do desejo e do devir num campo de intensidade, apreensão instantânea de uma multiplicidade. Esse processo renovado constitui-se num campo equivalente à leitura derridiana de khôra, que os autores denominam CsO, corpo sem órgãos, campo de imanência do desejo cuja multiplicidade possibilita o plano de consistência, sem qualquer referência exterior. Os CsO são feitos de platôs, ou regiões de intensidade contínua que nem se interrompem nem conduzem a culminâncias, mas produzem sinapses porque são componentes de passagem (DELEUZE e GUATTARI, 1996, p.20). Em vista disso, essa relação é considerada molecular, definida pelo seu fluxo de quanta, pela natureza de sua massa, pelo potencial de crenças e desejos, que a diferenciam da linha de segmento molar, arborescente, representacional, de significância e subjetivação. O ajuste dos segmentos duros aos quanta fluidos implica uma mudança de ritmo e modo, segundo os autores, além ou aquém de uma onipotência.

O sistema de subjetividade e linguagem tradicional se sustenta pela política de "rostidade", ele pressupõe a atribuição de um rosto produtor de dicotomias como eu-outro, homem-animal, sensível-inteligível, etc., que não admitem nomadismos, multiplicidades ou qualquer coisa que exceda seus "afetos atribuídos" e suas "significações dominantes". Ele se baseia em um agenciamento concreto de poder despótico e autoritário que desencadeia a "máquina abstrata" do "muro branco- buraco negro", instalando uma semiótica de significância e subjetivação. Não obstante, somente o reconhecimento desse sistema levará à sua superação.

É somente através do muro do significante que se fará passar as linhas de a-significância que anulam toda recordação, toda remissão, toda significação possível e toda interpretação que possa ser dada. É somente no buraco negro da consciência e da paixão subjetivas que se descobrirão as partículas capturadas, sufocadas, transformadas, que é preciso relançar para um amor vivo, não subjetivo, no qual cada um se conecte com os espaços desconhecidos do outro sem entrar neles nem conquistá-los, no qual as linhas se compõem como linhas partidas. É somente no interior do rosto, do fundo de seu buraco negro e em seu muro branco que os traços de rostidade poderão ser liberados, como os pássaros; não voltar a uma cabeça primitiva, mas inventar as combinações nas quais esses traços se conectam com traços de paisageidade, eles mesmos liberados da paisagem, com traços de picturalidade, de musicalidade, eles mesmos liberados de seus respectivos códigos (DELEUZE e GUATTARI, 1996, p.59- 60).

O que eles propõem é um ultrapassamento da cadeia semiótica que mantém a subjetividade, e do sujeito que alimenta a linguagem, para instituir um espaço liso, um espaço de afetos que assinalam forças, mais que de propriedades, de coisas formadas e percebidas, um espaço de matéria. Nessa dinâmica nova, o agenciamento proporcionado pelo que se faz e se diz está mais próximo da máquina abstrata enquanto se abre e multiplica as conexões, traçando um plano de consistência com seus platôs de intensidade e meios de consolidação. As formas tradicionais de significação e subjetivação vinculadas a certa visão da linguagem, e a uma linguagem como perspectiva, estabelecem bloqueios e organizações que criam sentidos estáveis, formalizações que até o momento permitiram o exercício do poder sobre o outro.

As conseqüências desse sistema são justamente as que levaram ao questionamento por parte das inúmeras teorias da linguagem, em especial pelo movimento desconstrutivista. Esse processo, entretanto, demonstrou a dificuldade de se desfazer de antigos hábitos e renunciar a essas categorias, e a recusa da subjetividade, entende Jameson, longe de se resignar a uma condição alienante, aparece como uma resposta original e produtiva (JAMESON, 2004, p.116). O movimento relacionado à linguagem, que se efetua desde o surgimento da modernidade estética e se estende até a crítica literária e a filosofia contemporâneas, delata um vínculo material com o mundo, segundo o crítico, pelo qual os modelos internos de subjetividade são substituídos por formas externas de expressão. No nosso entendimento, porém,

ele procura construir outra compreensão que não se funda sobre a cisão do sujeito e do objeto, que não é nem subjetiva nem materialista, empreendendo uma política de dissolução do sujeito baseada na destituição do modelo anterior de linguagem em busca de novas disposições e instrumentos de análise das relações humanas.

CAPÍTULO 2

PENSAMENTO E CRÍTICA:

A CONFORMAÇÃO DO EU EM FRANCISCO AYALA

Entre suelo y subsuelo, mientras tanto, una espesa humanidad – nosotros – se aglomera, se afana, se desvive. Francisco Ayala