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Ciclos da Modernidade Estética

CAPÍTULO 1 DE PASSAGEM PELA MODERNIDADE, O SUJEITO E A LINGUAGEM

1.3 Noções da Modernidade Estética

1.3.3 Ciclos da Modernidade Estética

Antes que Baudelaire definisse os elementos próprios da modernidade estética, Sthendal já havia apontado, no começo do século XIX, aspectos relativos a um novo sentimento do tempo e uma nova concepção de beleza, que ele chamou romantismo (CALINESCU, 2003, p.53). Não mais a beleza universal do classicismo, mas a beleza pontual das elaborações situadas no devir histórico, descomprometidas com a busca da perfeição, originais e fortemente vinculadas à liberdade individual que suplantava os padrões anteriores. O romantismo, então, representou uma consciência da vida contemporânea, da modernidade num sentido imediato, incluindo a noção de mudança, de relatividade e atualidade. Essa nova mentalidade passou a diferir o ideal de beleza cristão, ilustrado, da beleza pagã enraizada num sentido histórico fatalista, um momento revolucionário da história da modernidade estética, entende Calinescu (2003, p.74).

Histórica e diretamente vinculada ao romantismo, a categoria artística da decadência expressou a consciência da perda dos referenciais clássicos em função da fatalidade do tempo irreversível, em decorrência aprimorou a individualidade enquanto forma de captação da imediatez e do aspecto extremo do transitório. A

insatisfação com a perda de um sistema equilibrado de crenças por causa da sua incapacidade de interpretar o mundo e em vista da fugacidade do tempo, sustenta os elementos decadentes que permeiam freqüentemente as obras de Francisco Ayala. O estilo decadente explorou as regiões difusas tanto da mente individual, em sua complexidade psicológica, como da linguagem para apresentar o inexpressável, vago e fugaz do pensamento, suprimindo fatores como unidade, hierarquia e objetividade. Para Baudelaire, a principal característica da decadência foi a pretensão de eliminar os limites convencionais entre as diversas artes para promover o intercâmbio entre meios e procedimentos, de modo a alcançar a "arte total", contrariando a separação tradicional segundo especialidades expressivas (CALINESCU, 2003, p.167). Por isso, a tendência antitradicional da decadência lhe atribuiu seu caráter intensamente moderno. Nesse sentido mais político, histórico e estilístico, a decadência não coincide totalmente com o decadentismo italiano, que define um período, mais que uma tendência estética, marcado pelo formalismo e pelo esteticismo.

A desorientação moral sentida pelos artistas contrastou com o desenvolvimento científico e tecnológico que produziu um fortalecimento do capitalismo, a democratização e o acesso das massas ao patrimônio cultural, e, mais que isso, a trivialização da arte para torná-la acessível à classe média, conforme já mencionamos. O realismo incorporou essa função ao normatizar os elementos categóricos da diferença, destacados pelo romantismo, unificando a perspectiva narrativa e planificando a percepção em busca de corresponder a uma verdade. No entanto, assim como se pode falar de "modernismos", pode-se destacar a existência de muitos "realismos", cada qual buscando representar realidades todavia não descobertas, o que o inscreve na dinâmica de inovação da modernidade. Apesar de constituir uma categoria epistemológica, como nos lembra Jameson, é sentido comum considerar que o realismo foi o ponto de partida da reação modernista no âmbito estético e conformou a matéria prima sobre a qual a consciência modernista pôde elaborar suas formas (JAMESON, 2004, p.109).

Em função do desenvolvimento desigual da concepção modernista, relativo a diferentes situações nacionais, como revelaram o modernismo hispano-americano, a

Geração de 98, os movimentos franceses a partir de Baudelaire, o contexto alemão da república de Weimar, Jameson pôde definir uma "ideologia do modernismo" fundamen- tada em seus aspectos comuns (JAMESON, 2004, p.153). Os diversos modernismos manifestaram, como nos ciclos anteriores, o tropo da modernidade, a ruptura com padrões anteriores. Assim se efetivaram o impressionismo, o expressionismo nas artes plásticas e o simbolismo na literatura. Nesse ponto de vista, a arte corres-ponderia a uma expressão sublimadora da realidade no sentido de transcendê-la por meio do trabalho formal sobre a expressão estética. O artista ocuparia uma função privilegiada, cuja sensibilidade o tornava capacitado para aceder às regiões sublimes do entendimento e orientar o vulgo, por isso aos movimentos modernistas foram atribuídas características como esteticismo, formalismo, idealismo e utopismo. O axioma da "arte pela arte" apoiou- se sobre a premissa da autonomia estética e sua conseqüente reflexividade, sentando as bases para a "deshumanização da arte" levada a cabo pelas vanguardas, apesar de não ter muito a ver com os elementos maquínicos incorporados a algumas correntes. Essa peculiaridade dos movimentos modernistas fez com que fossem estabelecidos critérios rigorosos de qualidade estética que, na opinião de Clement Greenberg, preservaram a arte dos interesses do mercado (GREENBERG apud CALINESCU, 2003, p.282). Ela estabeleceria também os limites da arte culta pela autonomia e imanência da linguagem artística, contra a arte pop.

Contrário à banalização dos elementos artísticos, promovida pela indústria cultural, Francisco Ayala (1971, p.30) defendeu a elaboração de uma arte culta aberta para a maioria, adequada à experiência do seu momento e às técnicas de comunicação. Discordava do ahistoricismo modernista e vanguardista, entendendo que a liberdade se deu sempre no campo da história e esteve condi-cionada pelos fatores sociais enquanto pertencente à vida humana. Por outro lado, apesar da crítica à estética vanguardista, considerou que toda arte é um jogo, um enfrentamento entre o apreciador da arte e as questões que ela propõe sobre o sentido da vida (AYALA, 1960, p.19). Esta perspectiva atribui para a arte um caráter salvacionista, o que reaproxima Ayala da estética modernista, estabelecendo uma contradição entre a

produção artística de cunho histórico-social e o uso que se faz dela visando uma experiência do absoluto em torno das grandes questões sobre o "ser". Conforme compreendem Deleuze e Guattari, "a arte nunca é um fim, é apenas um instrumento para traçar as linhas da vida [...]", isso proporciona, diferentemente da expectativa de Ayala, um contato com o a-significante, o a-subjetivo e o sem-rosto, estabelecendo a arte como linha de fuga, não uma projeção estratificada dos "grandes relatos" (DELEUZE e GUATTARI, ano, p.57). Contudo, esses elementos contribuíram para a valorização que o autor, objeto deste estudo, fez do romance como gênero popular que permitia a reflexão sobre as grandes questões epistemológicas devido à abertura decorrente de não possuir uma técnica específica, limitadora da criação, segundo ele. É um tópico ao qual voltaremos no último capítulo, relacionando-o à experiência nômade.

O século XIX foi essencialmente narrativo, afirma Pozuelo Yvancos. Frente a isso, as vanguardas se caracterizaram pela perda da referencialidade mimética como princípio estético, em um sentido muito mais extremo que a proposta dos modernismos novecentistas (POZUELO YVANCOS, 2004, p.20). Esse processo intensificou o valor da arte como "um fim em si mesmo", impopular e elitista, sem o compromisso mimético-representacional da episteme realista, efetuando o que Ortega chamou de "deshumanização da arte". A estilização desacreditaria o caráter narrativo do romance, por exemplo, estimulando sua capacidade de apresentação indefinida das paisagens internas e subjetivas dos personagens autoconscientes, onde o narrador seria apenas um instrumentador. As conquistas científicas, onde se inclui a psicanálise freudiana, e técnicas, como os meios de comunicação de massas, contribuíram para esta tendência anti-referencial, aprimorando a estratégia de deshumanização, observa Calinescu, ao negar qualquer prerrogativa orgânica para a arte, como aquela estipulada pela filosofia romântica (CALINESCU, 2003, p.136). As vanguardas postularam a destruição do passado e da tradição através do movimento estético, porém buscaram a intervenção na vida prática de modo a provocar a revolução que institucionalizaria sua utopia. Aí se diferencia o que ficou conhecido como vanguarda estética, realizando- se sobre o potencial revolucionário da arte, e vanguarda política, em que a arte foi

submetida às normas do idealismo revolucionário. Tanto uma como outra partiram do sentido radical da ruptura com o passado, de destruição, portanto estiveram plenamente conformes com a ideologia do modernismo, com a particularidade de acentuar o caráter volitivo da sua atitude.

O conceito orteguiano de "deshumanização", difundido a partir de 1925, alcançou uma projeção teórica no período de pós-guerra, como se vê pela recon- sideração que Ihab Hassan faz da idéia segundo uma perspectiva pós-moderna que suplantaria sua faceta modernista. Enquanto Ortega considera a arte deshumanizada como uma realização elitista, Hassan a reinscreve no marco anti-elitista posto que derroga o pressuposto autoritarista. Para Hassan, a deshumanização pós-moderna da arte dissemina a unidade do "eu" em vista da participação comunal, opcional, gratuita ou anárquica, aprimorando os recursos da ironia e da paródia adequados à criação como jogo (HASSAN apud CALINESCU, 2003, p.147). Para Calinescu, sua acepção de pós-modernismo revela uma extensão das vanguardas de entre-guerras, especialmente dos postulados dadaístas e surrealistas, como o veiculado pela fórmula "anti-arte pela anti-arte" de Tristan Tzara, ou relativos aos ready-made de Marcel Duchamp e Man Ray. Por outro lado, o tópico anti-representacional da deshumanização se constituiu, no ciclo pós-modernista, como uma desconfiança sobre a capacidade de renovação da linguagem artística. A tendência experimentadora e formal das vanguardas ficou enfraquecida pelo retorno de uma forma mais tradicional da narrativa, principalmente de cunho memorialista e metaliterário, porém não mimética já que aponta para a particularidade construcional da literatura, ainda que tematize sua convergência com a vida.

[...] lo que la novela de hoy no pretende ocultar en ningún caso es que se trata de "literatura", que su artificio es voluntariamente aceptado como punto de partida, que quiere revelar su doble codificación: ser lenguaje, pero ser también versión sobre el lenguaje narrativo como construcción que parodiar, homenajear, redescubrir, parafrasear, en definitiva, revisitar. La alusión o cita literaria, referencia a modelos estilísticos que se remedan sin esconder su artificio, antes bien, haciéndolo patente es una constante en una literatura finisecular particularmente "revisionista", "citacionista" […] (POZUELO

A capacidade revisionista da obra de arte, incrementada a partir da segunda metade do século XX, assegura sua diferença em comparação com o período anterior. Isso somente se torna possível porque existe um campo anterior que permite ser revisitado através da citação, da ironia ou da paródia, sobre o seu suporte técnico. Dito movimento abre um caminho reflexivo teórico que é exclusivo do contexto tardo- modernista, na acepção de Jameson, circunscrevendo o que ele chamou de "ideologia do modernismo" ou "da autonomia da arte", desenvolvida principalmente dos Estados Unidos (JAMESON, 2004, p.165). Para além da simples repetição, trata-se da capacidade de teorização o que caracteriza a tendência artística do pós-guerra, especialmente a partir dos anos 60, em contraposição aos anteriores modernismos. De qualquer forma, está relacionada à sobrevivência e à transformação da prática criativa modernista. O modernismo clássico, ou alto modernismo, também era autoconsciente, estabe- lecendo uma lógica interna para a narrativa, porém a reflexividade tardo-modernista é diferente, aponta Jameson, pois implica o status do artista na configuração da obra.

Los modernistas clásicos no tenían acceso a esa imitación y sus obras designan su proceso de producción como un nivel anagógico de alegoría, a fin de dejar lugar a sí mismas en un mundo que no contiene su "idea"; en consecuencia, esa autorreferencialidad formal es muy diferente de los poemas sobre poesía y las novelas sobre artistas en las cuales los tardomodernistas se designan a sí mismos en su contenido (JAMESON,

2004, p.167).

Essa mudança de posição contraria a estabilidade do Absoluto, questionando o preceito de autoridade e causalidade na medida em que o relativiza pela dinâmica da perspectiva. Autor e leitor perdem o significado como funções definidas que mantiveram desde Cervantes, Shakespeare ou Goethe, e se transformam, mais que em elementos temáticos, em categorias dinâmicas e fragmentadas. O pós-estruturalismo contribuiu para isso ao enfocar o inconsciente textual através do método descons- trutivista, revelando os aspectos menos aparentes do texto. Desta maneira, proporcionou uma ruptura hermenêutica no âmbito da literatura, deslocando aspectos objetivistas para favorecer formas diversas de legitimidade, fundamentadas na diferença. O pós-

estruturalismo produziu uma ruptura não apenas das categorias estabilizadas do discurso modernista, mas também na seqüencialidade histórica da percepção do fato literário, comenta Gonzalo Navajas (NAVAJAS, 2004, p.31). Isso permitiu a elaboração de um conceito "transtemporal" para abordar o texto de acordo com sua relação com outros textos e contextos, em uma dinâmica ziguezagueante, de modo a contradizer as idéias de cânone e geração. Essa concepção de crítica literária anti- racionalista se adequou a uma concepção de mundo cada vez mais informal e a uma experiência fluida jamais estabilizada. Ela se situa dentro do horizonte contra- hierárquico do projeto pós-moderno, que se fundamentou em um Bakhtin repossuído, segundo Navajas, na popart de Andy Warhol e Lichtenstein, na carnavalização das formas culturais e na promoção da heteroglossia anticonsensual, sem aspirar a uma revolução política, mas a uma mudança do modelo cognoscitivo (NAVAJAS, 2004, p.18). Uma nova situação que permite a eclosão dos elementos anônimos e heterogêneos no código estético, mas sem eliminar por completo certas premissas do código clássico, compreende Navajas, produzindo uma estética mista.

Em conseqüência, atribui-se um teor de "impureza" para a estética pós- moderna, em contraste com a "pureza" ambicionada pelos modernistas e também pelas vanguardas, mesmo dentro da retórica simbólica da "morte da arte", conforme avaliou Guy Scarpetta (apud CALINESCU, 2003, p.271). A visão pós-moderna perdeu a inocência e definiu uma perspectiva "pós-apocalíptica" que reconsiderou a criação a partir da "morte da arte" vanguardista, posto que nenhuma forma de cultura é mais possível após Auschwitz, como viu Adorno. Assemelhando-se a uma reconfiguração do carpe diem, a estética pós-modernista propôs a categoria do desfrutável, excluída da austeridade modernista, ao inserir a prática paródica na reconstrução do passado, obedecendo a uma multiplicidade de códigos por intermédio do comentário alusivo, da citação, da referência inventada, da distorção, do anacronismo deliberado, da diversificação estilística. Nesse sentido apresentou também um novo uso do perspectivismo psicológico, diferente do psicologismo modernista, aponta Pozuelo Yvancos, que se baseou em um neo-existencialismo de caráter vitalista sentimental,

segundo o qual o "eu" mostra-se como testemunho contingente da sua existência (POZUELO YVANCOS, 2004, p.50). Por outro lado, essas novas existências não se fundamentam na mimese, porque têm consciência da impossibilidade da representação narrativa, apenas são "postas em jogo" pela escritura, entende Agamben, e seu destino é decidido através das palavras (AGAMBEN, 2005, p.88). Elas ocupam lugares possíveis, porém vazios, e se disseminam em multiplicidades que mudam de natureza conforme se conectam umas às outras. A linguagem supõe a linguagem, compreendem Deleuze e Guattari, e a narrativa não comunica o que se vê, mas o que se ouviu.

[...] o livro não é a imagem do mundo segundo uma crença enraizada. Ele faz rizoma com o mundo, há evolução a-paralela do livro e do mundo, o livro assegura a desterritorialização do mundo, mas o mundo opera uma reterritorialização do livro, que se desterritorializa por sua vez em si mesmo no mundo (se ele é disto capaz e se ele pode). O mimetismo é um conceito muito ruim, dependente de uma lógica binária, para fenômenos de natureza inteiramente diferente (DELEUZE e GUATTARI, 1995a, p.20).

Essa tendência do pensamento se vinculou à consciência da indeterminação do significado, da indecibilidade contrária à prática simbólica, que tem sua origem em Rimbaud, segundo Marjorie Perloff (apud CALINESCU, 2003, p.289). Na narrativa, onde a realização da indecibilidade é um desafio maior, autores como Borges ou Nabokov procuraram constituí-la através da proliferação de imagens e circularidades que questionavam diretamente a idéia de representação por meio da perplexidade ou do jogo. Nessa tentativa de perguntar pelos mundos possíveis, o dominante na poética pós-modernista tornou-se ontológico, conforme considerou Brian MacHale, diferente da epistemologia modernista vinculada aos grandes relatos (MACHALE apud

CALINESCU, 2003, p.296). Por isso identificamos a ausência de princípios estéticos normativos, priorizando o que José Carlos Mainer considerou um ecletismo em arte, baseado na convivência não dialética do que a oferta cultural apresenta, rebaixando em contrapartida os grandes empenhos artísticos, convertendo a literatura em um fenômeno a mais do campo comunicativo e diminuindo a responsabilidade do autor

(MAINER apud POZUELO YVANCOS, 2004, p.47). Em decorrência disso, abriu-se espaço para o kitsch como estilo artístico, baseado no relativismo temporal levado ao extremo e na imediatez do belo artístico enquanto objeto comercial da indústria cultural (CALINESCU, 2003, p.23). Vinculado à busca de status pelo acesso democrático às grandes obras da cultura, ou ao simples desfrute, o kitsch estabeleceu a estética do engano e do autoengano por meio da imitação, da simulação e da elaboração artificiosa, colaborando para o esvaziamento de sentido das formas artísticas como sintoma do ciclo cultural do pós-modernismo.