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Capítulo 4. A Marquise – um objecto sociológico empírico

4.3. Fabricar o espaço

4.3.3. Bricolagem

Problematização

Este capítulo discute a importância dos actos de bricolagem no espaço doméstico como forma de relação e apropriação da habitação. Neste sentido procura-se entender o porquê da importância atribuída à organização espacial e resignificação dos lugares como marcos que inscrevem as características pessoais do que é tido como próprio e adequado.

Bricolagem e Manutenção

Como nos diz Haumont, uma vez tendo uma casa, devidamente limitada, torna-se necessário vesti-la de acordo com o nosso gosto, “L’espace une fois delimité, est marqué par l’habitant: «En arrivant dans une maison neuve, il faut l’habiller entiérement à ses goûts, la refaire pour soi»” (Haumont 1968, pg. 182) e é através de processos de bricolagem e manutenção do espaço que o Homem constrói o seu habitat. É neste processo de manutenção, referindo-se a autora especificamente à mulher, no entanto não vou restringir o género, que os habitantes se apropriam do espaço inscrevendo assim as suas marcas de “l’ordre” e do “propre”.

De uma forma básica, a manutenção é o recurso que inspecciona o

estado de arte da habitação e “la marque de cette inspection est «le propre».”

(Haumont 1968, pg. 182). Não por acaso todos os entrevistados mencionaram, quando perguntados se já haviam feito obras em casa, que já tinham intervido no espaço doméstico. Por exemplo, a entrevistada 4 refere que apesar de a casa sofrido renovações pouco tempo antes de se mudar, resolveu intervir no espaço e adaptá-la a seu gosto “quando a comprei tinham feito obras à 5 anos. Fiz umas obras ligeiras, pinturas, mudei portas e deitei a baixo ali um arco que tinha ali na entrada para ficar um bocadinho maior” (01.18min). No caso da entrevistada 5 que mora na mesma casa desde 1978 relata uma série de alterações “Pus chão flutuante [na sala]” […] tirei o chão flutuante do hall e pus mármore(em 93) […]ah tinha fechado a varanda tinha a minha filha prai 2 anos,

ela nasceu em 79 portanto em 81 fechei a varanda, foi portanto a primeira obra digamos, fiz a marquise […] e agora em 2011 remodelei completamente a cozinha e a casa de banho” (02.25min), resumindo “mudei a mobília toda que tinha e compre outra, fiz assim uma grande alteração, e pronto neste momento acho que a casa até está engraçada, acho que está acolhedora, portanto, pronto é pequena mas agora eu também estou quase sempre, portanto a D. não está cá e acaba por ser conveniente” (04.29min), alterações que foi feito ao longo dos anos, enquanto processo de adequação e adaptação do espaço íntimo, na lógica que relata Berque (citado em Fijalkow, 2011, p.104) “Il n’y a «pas d’être sans lieux d’être»”.

A marquise, enquanto obra feita e desejada, qualifica conceptualmente aquilo que é tido como propre e como sale organizando normativamente e espacialmente a gestão da habitação e a distribuição de objectos pelo espaço da casa. Não associada a marquise somente à conquista de um espaço, associa-se também às possibilidades que o espaço disponibiliza, nomeadamente em termos de arrumação, configurando assim normativa- e espacialmente a ordem e o que é próprio para cada lugar da casa. No domínio do próprio, do adequado, a marquise aparece aqui como uma construção que incorpora aquilo a que Haumont chama “une structure à deux termes” (1968, p.182), aludindo à casa, em que existe um dentro e um fora, um interior e um

exterior, em que o primeiro é definido positivamente e o segundo

negativamente em comparação com o primeiro. É através de “rituais de passagem” entre o que é exterior e o que é interior que os habitantes se isolam na intimidade e asseguram a sua existência, salvaguardando-se de uma intervenção/penetração do exterior. Uma das penetrações descritas por Haumont (1968, p.184) tem que ver com o barulho, não os barulhos que se criam dentro da habitação, mas sim os barulhos que vêm de fora por intermédio dos outros, do outro abstracto que penetram tipo “parasitas” e nos fazem recordar da sua existência. Conforme veremos no capítulo sobre a segurança, o fenómeno sensorial do ruído é amplamente referenciado pelos entrevistados como algo contra o qual se querem proteger. Mais à frente discute-se também a questão da distância e da proximidade nesta lógica

A bricolagem aparece portanto como uma forma activa de aproximar o lugar habitado ao espaço doméstico, e é através de uma “opérationalité concerte, [que] la fabrication des territoires du quotidien se situe dans un registre tout à fait particulier” (La Mache, 2011, p.4). Operacionalidades específicas e coerentes com as aspirações singulares, como também afirma Haumont (1968, p.187) “Ceci explique que l’habitant ne s’adapte pas obligatoirement à une espace functionel prévu pour lui par l’architecte. Au contraire, «partout où la contraente de l’espace aménagé laisse place à une possibilite d’équivoque dans les fonctions du cadre, l’usager situe à sa guise ses habitudes de vie…»”. Os habitantes usufruem da margem de manobra/autonomia relativa para construírem o sentido dos seus percursos, materializando a representação estratégica do adequado. Estando o adequado inserido numa autonomia relativa, e estando essa autonomia inserida numa emergência diacrónica da sociedade dita moderna, os indivíduos aperceberam- se que é possível tornar reversível aquilo que parecia irreversível. E foi exactamente isto que os habitantes fizeram e fazem nas suas habitações. Não se cingiram aos limites físicos impostos pelo espaço dado e foram mais além, apropriaram um espaço aparentemente sem significado, a varanda, como afirma Ph. Boudon, e resignificaram-no física e simbolicamente: “C’est à travers le bricolage que le plus souvent marque son espace en l’aménageant.” (Haumont, 1968, pg. 182).

Conclusão

É através dos actos de bricolagem e manutenção do espaço íntimo que os indivíduos asseguram experiências habitacionais que se aproximam daquilo que vêm como desejado. A distinção entre aquilo que é próprio de existir dentro do espaço doméstico é contraposto com aquilo que é “sujo”, que não é desejável que penetre no conforto da habitação. A marquise permite, neste sentido, uma promoção da organização da casa delimitando fronteiras e libertando espaços.