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Dois exemplos que podem ter inspirado o imaginário do habitante para a

Capítulo 4. A Marquise – um objecto sociológico empírico

4.2. A importância do imaginário na percepção do espaço

4.2.1. Dois exemplos que podem ter inspirado o imaginário do habitante para a

É neste sentido que entendo e conceptualizo o espaço marquise como um espaço de reprodução das experiências do passado directamente articulado a um poder de invocação que possibilita habitantes e habitações a acomodarem-se ao adequado. Como diz La Mache (2011, p.5), através dos actos ou das palavras que qualificam os lugares, revela-se uma construção simbólica: “l’imagination tient une place determinante, assurant le lien entre des formes et des concepts”. A reconstrução simbólica das formas e dos conceitos é central para compreender o espaço marquise de uma forma mais profunda, do que apenas pela simples vontade de “ganhar espaço”, como referem várias vezes os entrevistados, tema que falaremos mais à frente. O habitante “interprète, détourne ou simplesmente aménage la matérialité des espaces pour fabriquer de lieux identifiés” (La Mache, 2011, p.5), o que significa que, na esfera privada o território habitado traduz componentes que são visíveis, que são objectivos e voluntários. O espaço construído, ainda que possa ter sido imaginado, adquire no local uma qualidade específica e ganha identidade.

Para muitos habitantes, as formas da casa não remetem para modelos conceptuais que eles possam entender (La Mache, 2011, p.5, Nunes, 2000), e num acto interactivo com o ambiente doméstico, ajustam a morfologia táctil em conformidade com a morfologia mental em busca do que para si é tido como

propre, como adequado. O acto de fabricar, e de “bricolage” nas palavras de La

Mache, aparece como natural, dando aos espaços adquiridos formas inéditas. Os indivíduos mobilizam elementos físicos e mentais existentes, e dialogando com o espaço, põem mãos à obra, para através do acto de bricolagem, reconceptualizarem lugares até então desconhecidas. Como referem alguns autores sobre a relação habitante-varanda, como já veremos melhor através de Ph. Boudon, os habitantes reinventam o espaço para que se adeqúe às suas expectativas, tal como sucede com espaço marquise. No caso do autor La Mache, este faz uma pequena referência à diversidade utilitária que é dada às varandas.

Haumont (1968, p.181) afirma que “On ne peut pas demander à l’habitant de s’adapter à une logement qui lui est «attribué» sans tenir em compte ce que signifie pour lui le fait d’«habiter».”. Os significados da trajectória de vida, vão, em maior ou menor grau, imbricar com a satisfação, também ela em menor ou maior grau, experienciada nas possibilidades e constrangimentos da residência actual e no sentido que se atribui ao percurso ainda por experienciar no espaço doméstico. O imaginário que posteriormente é materializado no espaço é construído na existência do indivíduo, no seu quadro de significados e na relação de apropriação que constrói com esse mesmo espaço, onde este “s’approprie l’espace habité par un marquage en référence à des modèles culturels transmis par l’éducation” (Haumont 1968, pg. 181). Contudo, não estou seguro que apenas a experiência da educação seja um factor que englobe todo este campo, existem outros factores que operam ao nível do inconsciente, i.e. que não foram transmitidos premeditadamente em ambiente familiar, mas que possam decorrer de experiências do tipo blasé, na apropriação da cidade, no sentido em que o habitante é também citadino de uma grande urbe.

Pátios e Habitações Unifamiliares

Para discutir dois exemplos que poderiam ter inspirado o imaginário dos residentes contribuindo para o aparecimento das marquises, problematizo aqui as formas de conquista e apropriação do espaço exterior, no modelo habitacional dos pátios e das habitações unifamiliares.

No artigo de M. Teixeira, As estratégias de habitação em Portugal 1880-

1940, o autor relata as estratégias de construção habitacional que ocorreram

em Portugal. A propósito, dos dois modelos habitacionais que M. Teixeira expõe, pátios e habitações unifamiliares, reflecti acerca da seguinte hipótese: como será que os residentes, destes dois modelos habitacionais, se relacionariam com o espaço exterior? Será que, a conquista do espaço exterior, no caso dos pátios, contêm pistas que me permitam compreender melhor as práticas desejadas em marquise? E no caso das habitações unifamiliares, será que a apropriação do jardim e dos possíveis anexos da

Imagem 13 – Fotografia de um “pátio” em Campo de Ourique – fotografia do autor

casa, poderá corresponder a formas de utilização da marquise? Estas duas formas de habitar compreendem um prolongamento do espaço doméstico interior para a sua zona exterior de contiguidade, seja para um corredor exterior comum25, no caso dos pátios, seja para uma zona de exterior privada no caso das habitações unifamiliares, tal como acontece com a conquista e apropriação da zona de transição que é varanda, de acordo com Brandão e Martins.

Neste seguimento, o modelo habitacional das “ilhas” no Porto, e dos “pátios” em Lisboa fizeram-me problematizar que tipo de tarefas se introduziam no espaço doméstico, e que tarefas se prolongavam para os corredores comuns exteriores contíguos às casas. Na segunda metade do século XIX surgiu em Lisboa surgiu este modelo de habitação, os “pátios”. Os “pátios” eram “um espaço mais ou menos regular, situado no interior de um quarteirão,

com pequenas casas construídas à volta viradas para um espaço livre comum.”

(Teixeira, 1992, p.69). O modelo dos pátios em Lisboa suscita uma ideia

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Neste ponto poderia discutir as formas negociação de território, como sublinham Rémy e Voyé (1981) a propósito da gestão territorial na praia. Todavia, para efeitos de análise não se coloca esta questão, mas sim os significados e práticas que decorrem na zona contígua à casa.

interessante no que diz respeito ao espaço livre comum. Este espaço, normalmente em forma de corredor, era utilizado, em parte, para satisfazer as práticas de higiene da casa. Como estes corredores dispunham muitas vezes de tanques para lavar a roupa, e cordas para a secar, estas actividades prolongavam-se para o espaço contiguo da casa, como se pode verificar na imagem 15. É de realçar que, conforme mostra esta imagem, também se encontram elementos associados à jardinagem, vasos com plantas, e elementos que possibilitam a contemplação, como as cadeiras. Para além destes elementos físicos, que compõem o espaço exterior contíguo, verifica-se que os moradores de algumas destas casas da imagem 15 construíram uma zona “alpendrada”, com uma estrutura de suporte em ferro e plástico ou fibra de vidro, conforme me foi possível observar. Esta zona “alpendrada” estende- se desde a porta entrada, para o corredor comum, até ao limite da zona exterior que é ocupada pelo morador. A configuração deste local, em muito se assemelha ao espaço marquise. Em primeiro lugar, temos um espaço de transição entre o público e o privado, sabendo que aqui uma parte do privado se encontra exposto ao público – no entanto, típico de modelos societais menos recentes – espaço de transição este que está protegido pelo alpendre, servindo simultaneamente de abrigo para o sol ou chuva, e de delimitação da zona de fronteira entre os espaços comuns do corredor. Verifiquei a existência destes objectos, como acima refiro, tanques de lavar a roupa, estendais, cadeiras, plantas, que reflectem o tipo de práticas que podem ocorrer neste local. Conforme vamos poder verificar a propósito das entrevistas aos moradores de Campo de Ourique, esta conjuntura de distribuição espacial e objectos que compõem a zona “alpendrada” que aqui descrevo, em muito se assemelha ao que me foi referido pelos habitantes relativamente ao espaço marquise.

Num grau diferente, ainda assim, na mesma lógica de prolongamento do espaço doméstico, discuto as habitações unifamiliares, introduzidas como modelo habitacional pelo Estado Novo. Este modelo apresenta-se num grau diferente de análise, na medida em que a contiguidade do espaço doméstico se estende para um espaço exterior que é privado, e não um corredor comum,

apropriação do exterior contiguo à casa. Boa parte das habitações económicas construídas pelo Estado Novo caracterizavam-se por ter um jardim na zona frontal da casa e outro nas traseiras, sendo que uma grande parte destas casas ainda dispunha de uma divisão exterior para arrumos ou uma garagem. Coloco neste seguimento, como já introduzi acima, a questão acerca do peso no imaginário que esta extensão exterior da casa unifamiliar poderia ter na experiência habitacional desejada daqueles que construíram uma marquise. Sabendo que a marquise se define estruturalmente por ser um espaço que se introduz dentro do espaço doméstico, foi possível verificar nas entrevistas que nem todos os entrevistados integram a marquise como mais uma divisão íntima da casa. A marquise, em certos casos, promove uma distinção consciente do

propre e do salle, do que pode e do que não pode estar dentro de casa. Neste

sentido, o jardim e o anexo da casa unifamiliar permite separar tarefas e objectos que devem ou não integrar o espaço interior doméstico. Num outro sentido analítico, as habitações construídas no Estado Novo estavam assentes numa ideologia política, que se traduz numa ideologia de experiência habitacional, como afirma Salazar citado por M. Teixeira “A intimidade da vida familiar, reclama aconchego, pede isolamento, numa palavra, exige a casa independente, a nossa casa” (1992, p.80). Conforme vamos verificar através dos residentes entrevistados, estes “reclamam” precisamente este aconchego, desejando conforto e bem-estar em casa, isolamento do exterior, protegendo- se, por exemplo, de ruídos citadinos, e pretendem que a casa se adeqúe às suas representações do adequado, a tal “nossa casa” como sublinha Salazar.

Neste momento é necessário ter em conta que nos dois exemplos que refiro ambos se encontram associados a um espaço ao ar livre, exterior, e como tal, seria de esperar que a varanda fosse um recurso que mais se associasse a estas práticas, ao contrário da marquise que é um espaço fechado. No entanto, é aqui que entra em jogo o contexto citadino, de habitações em blocos, de extrema proximidade física, de conquista de espaço, que trabalho no primeiro capítulo, de reinterpretação da herança cultural, numa conceptualização do estado das necessidades actuais. A problematização relativa ao território, ao espaço privado e espaço público será introduzida mais

à frente. Agora vamos ver como é que os modelos culturais de habitação interpretam a apropriação da varanda.