COMO RECURSO DE FOCALIZAÇÃO NAS LÍNGUAS HUMANAS
1.3. R EVISANDO ALGUMAS ANÁLISES
1.3.4. Brito e Duarte (2003)
Brito e Duarte (2003) estudam o fenômeno da clivagem no português. Apresentam a tipologia das construções de clivagem encontradas na língua portuguesa (português europeu) e dizem que é mais ampla que em outras línguas românicas.
(74) a. Foi o queijo o que o corvo comeu. Clivada-Q b. Foi o queijo que o corvo comeu. Clivada
c. O que o corvo comeu foi o queijo. Pseudo-clivada básica d. O queijo foi o que o corvo comeu. Pseudo-clivada invertida
e. O queijo é que o corvo comeu. Pseudo-clivada invertida de é que f. O corvo comeu foi o queijo. Semi-pseudo-clivada básica41
(BRITO e DUARTE, 2003, p. 685)
As autoras afirmam que o italiano, o francês e o espanhol não teriam as construções exemplificadas em (74e) e (74f) e o espanhol ainda não teria as estratégias exemplificadas
41 Lembrar que, ao longo do trabalho, utilizo a classificação de Modesto (2001) já ilustrada na seção 1.2.2.
Comparar as classificações abaixo:
Brito e Duarte (2003) Modesto (2001)
Clivada-Q PCE
Clivada CL
Pseudo-clivada básica PC
Pseudo-clivada invertida PCI
Pseudo-clivada invertida de é que CI
em (74a) e (74b). No entanto, como outros estudos mostram, o espanhol apresenta variação dialetal com relação às construções de clivagem.
Para Brito e Duarte (2003), assim como nos demais estudos, o constituinte clivado fixa o valor da variável na oração WH. Como elas também mostram, tanto argumentos como adjuntos podem sofrer os processos de clivagem; no entanto, advérbios de frase, como ilustrado em (75), e orações subordinadas adverbiais não substituíveis por advérbios de SV, como ilustrado em (76) não admitem nenhum dos processos de clivagem. O sujeito admite todos os processos de clivagem, a exceção dos contextos exemplificados em (77):
(75) a. *Foi provavelmente como o João comeu o bolo. b. *Foi provavelmente que o João comeu o bolo. c. *Provavelmente foi como o João comeu o bolo.
d. *Como o João comeu o bolo foi provavelmente. e. *Provavelmente é que o João comeu o bolo.
f. *O João comeu o bolo foi provavelmente. (BRITO e DUARTE, 2003, p. 686)
(76) a. *Foi embora estivesse frio quando fomos à praia. b. *Foi embora estivesse frio que fomos à praia. c. *Embora estivesse frio foi quando fomos à praia. d. *Quando fomos à praia foi embora estivesse frio. e. *Embora estivesse frio é que fomos à praia.
f. *Fomos à praia foi embora estivesse frio. (BRITO e DUARTE, 2003, p. 686)
(77) *Comeu o queijo foi o corvo.42 (BRITO e DUARTE, 2003, p. 687)
Para Brito e Duarte (2003), as construções de clivagem também são construções equativas do tipo identificacional em que o constituinte clivado é gerado na posição de predicado da SC, ou seja, o predicado subcategorizado pelo verbo copulativo:
42
(78) a. ... ser[OPeq [α] [o queijo]] (BRITO e DUARTE, 2003, p. 687)
O símbolo α ocupa a posição correspondente ao sujeito da SC, que contém uma posição vazia relacionada com um operador. Esse constituinte pode ser uma relativa livre, como acontece nos exemplos a seguir:
(79) a. Foi o queijo [o que o corvo comeu]. Clivada-Q
b. [O que o corvo comeu] foi o queijo. Pseudo-Clivada Básica f. O queijo foi [o que o corvo comeu]. Pseudo-Clivada Invertida
(BRITO e DUARTE, 2003, p. 688)
Para as autoras, as Clivadas-Q são menos freqüentes no português que as Clivadas, que são construções que possuem uma oração pseudo-relativa que desempenha a mesma função de uma oração relativa.
(80) Foi o queijo [que o corvo comeu]. Clivada
(BRITO e DUARTE, 2003, p. 688)
Além dessas estratégias, o PE ainda dispõe de mais duas possibilidades:
(81) a. O queijo é que o corvo comeu. Pseudo-Clivada Invertida de é que b. O corvo comeu foi o queijo. Semi-Pseudo-Clivada Básica
(BRITO e DUARTE, 2003, p. 688)
A análise formal feita por Brito e Duarte (2003), da mesma forma que a de Di Tullio (1999), não diferencia estruturalmente sentenças clivadas das pseudo-clivadas: há apenas uma estrutura em que a posição de sujeito está ocupada pela (pseudo-)relativa, ligada por um pronome relativo ou operador nulo, cujo valor é fixado pelo constituinte clivado.
(82) [SFlex SER[OPeq {[o que]i / OPi que} o corvo comeu [v]i [SN o queijo]i]]
No caso das Pseudo-clivadas, a oração relativa se desloca para SpecIP, enquanto o foco se mantém in-situ recebendo leitura focal por ser o constituinte mais à direita. Já no caso das
Pseudo- clivadas invertidas, quem se move é o constituinte clivado.
A escolha do elemento que será alçado depende da situação discursiva, tendo em conta que, geralmente, a informação conhecida precede a informação nova (ver HERNANZ e BRUCART, 1987; GUTIÉRREZ ORDÓNEZ, 2000; entre outros):
(83) O que é que aconteceu ao queijo? a. O queijo, o corvo comeu.
b. O queijo foi o que o corvo comeu. (BRITO e DUARTE, 2003, p. 689)
(84) O que é que o corvo comeu? a. O corvo comeu o queijo.
b. O que o corvo comeu foi o queijo. (BRITO e DUARTE, 2003, p. 689)
No caso das Clivadas (85b) e Clivadas-Q (85a), o constituinte clivado é analisado como movido para uma posição de adjunção à esquerda da SC:
(85) a. [SFlex ...foi [OPeq [SN o bolo]i [OPeq [SComp [o que]j o João comeu [v]j [v]i]]
b. [SFlex ...foi [OPeq [SN o bolo]i [OPeq [SComp Opj que o João comeu [v]j [v]i]]
(BRITO e DUARTE, 2003, p. 689)
O tipo de movimento A-barra envolvido nessa derivação é um caso de Scrambling, que tira o elemento da posição mais à direita, onde receberia a leitura de foco informativo, colocando-o numa posição de foco quantificacional43. Sendo assim, as Clivadas e Clivadas-
Q, no PE, não poderiam ser possíveis respostas para a pergunta em (86)44:
43 Foco informativo e quantificacional no sentido de É. KISS (1998).
44 Em português brasileiro, como mostra Côrtes Júnior (2006), (86a) e (86b) são respostas possíveis para a
pergunta do exemplo. Para algumas diferenças entre o PB e PE, com relação à ordem de palavras, focalização e topicalização ver Kato e Raposo (1996).
(86) Quem é que o João matou? a. #Foi a Maria quem o João matou.
b. #Foi a Maria que o João matou. (BRITO e DUARTE, 2003, p. 690)
Por último, as autoras analisam as Semi-pseudo-clivadas. A primeira observação que fazem é a de que essas sentenças envolvem obrigatoriamente VPs não máximos.
(87) a. O corvo comeu foi o queijo. (SN, objecto directo) b. O corvo deu o queijo foi à raposa. (SP, objecto indirecto) c. O corvo comeu foi muito depressa. (Advérbio de SV)
(BRITO e DUARTE, 2003, p. 692)
Caso o constituinte clivado seja um VP máximo ou qualquer constituinte superior na hierarquia da sentença, como sujeitos e advérbios de frase, a estrutura se converte em agramatical:
(88) a. *O corvo fez foi comer o queijo. (SV máximo) b. *Comeu o queijo foi o corvo. (SN sujeito)
c. *O corvo comeu o queijo foi provavelmente. (Advérbio de frase)
(BRITO e DUARTE, 2003, p. 693)
Brito e Duarte (2003) discordam de Kato e Raposo (1996), por exemplo, dizendo que não se pode derivar as Semi-pseudo-clivadas do apagamento do pronome relativo das
Pseudo-clivadas básicas, haja vista que há contextos em que estas são agramaticais e
aquelas não:
(89) a. *Como o presidente discursou foi muito bom. b. *O que o João deu foi o livro à Maria.
(90) a. O presidente discursou foi muito bom. b. O João deu foi o livro à Maria.
c. O João pôs foi o livro na pasta. (BRITO e DUARTE, 2003, p. 693)
Como conclusão, Brito e Duarte (2003) relacionam esta possibilidade de clivagem com a possibilidade de construção de Objeto Nulo: para as autoras, línguas que não permitem construções de objeto nulo não possuem a Semi-pseudo-clivada como acontece nas demais línguas românicas.