• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO II – Labirintos dos direitos: burocracia e feminização de quilombo

2.5. Novos dispositivos jurídicos: novas burocracias

2.5.1 Burocracia, racismo e governo

Certificação, demarcação, identificação, titulação: palavras que informam sobre as etapas de regularização jurídica fundiária nos territórios quilombolas. A materialidade dos termos informa sobre uma forma de governar corpos e territorialidade, cuja singularidade reside em evitar abertamente a negação do direito, fazendo da racionalidade burocrática o mecanismo pelo qual a governamentalidade racista se legitima. O governo não diz respeito apenas uma instituição, mas informa sobre uma atividade que consiste em reger as condutas por meios de instrumentos estatais.262 . Para evidenciar a relação entre as palavras (termos técnicos da regulamentação fundiária) e as coisas (a naturalização da burocracia), recorro à Michel Foucault, ao dizer que:

Os códigos fundamentais de uma cultura – aqueles que regem sua linguagem, seus esquemas perceptivos, suas trocas, suas técnicas, seus valores, a hierarquia de suas práticas – fixam, logo de entrada, para cada homem, as ordens empíricas com as quais terá que lidar e nas quais se há de encontrar.263

A violência desse governo está no fato de afetar os corpos pelo cansado, pela frustação e pelo desânimo. Para fins de visualização de seu funcionamento, descreverei as etapas do

denominações congêneres. Brasília, DF. Disponível em:

<http://www.palmares.gov.br/file/2010/11/legis21.pdf> Acesso em 2 nov. 2017.

262 SENELLART, Michel. “Situação do curso”. In: FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica.

São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 432.

263 FOUCAULT, Michel. “Prefácio”. In: As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências

processo de regularização fundiária, segundo informações colhidas na Instrução Normativa nº 57, de 20 outubro de 2009, do INCRA; na Portaria nº 98, de 26 de novembro de 2007, da Fundação Cultural Palmares; e nas informações do site da Comissão Pró-Índio de São Paulo.264

A primeira etapa, denominada de certificação, relaciona-se à fase em que a comunidade deve encaminhar a solicitação de que se autodeclara como quilombola à Fundação Cultural Palmares, juntamente com os seguintes documentos, definidos pela Portaria 98, da FCP, de 2007:

a) Declaração de auto-definição de identidade étnica;

b) Relato sintético da trajetória do grupo (história da comunidade);

c) Ata de reunião da associação, convocada para específicas finalidades de deliberação da auto-definição, e aprovada pela maioria absoluta dos membros.

Vale dizer que é na fase da certificação que os grupos constroem narrativas sobre a trajetória no território, criando uma identidade coletiva. Essa configuração segue as orientações da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que apregoa o critério de auto-definição utilizada pelos próprios atores sociais. Na medida em que o termo quilombo se consolidou no imaginário como um território relacionado ao período escravocrata, este é um processo importante, pois apesar de os indivíduos que vivem nos territórios partilharem uma trajetória comum de exclusão, é preciso elaborar o entendimento sobre o que vem a ser o direito quilombola nos termos contemporâneos. Trata-se de a própria coletividade criar sentidos novos sobre o grupo, inclusive em termos de interesses comunitários.

Em caso de dúvidas em relação aos documentos enviados, a FCP pode realizar uma visita técnica à comunidade, não havendo, no entanto, prazo definido para emissão da certidão pela FCP. Apesar de ser a primeira fase do processo, a partir de 2004, com a criação do Programa Brasil Quilombola, a certificação ganhou destaque, pois para acessar as políticas públicas do programa bastava possuir a certidão da FCP. Até o presente momento, há em todo Brasil há mais de 3000 comunidades quilombolas certificadas. No Rio de Janeiro são 38 comunidades. 265

264 Disponível em: <http://www.cpisp.org.br/terras/html/comosetitula_caminho.aspx>. Acesso em 11

nov. 2017.

265 As informações colhidas e retiradas dos sites da Fundação Cultural Palmares e INCRA estão

disponíveis em: <http://www.palmares.gov.br/wp-content/uploads/2016/06/COMUNIDADES- CERTIFICADAS.pdf>. Acesso em 11 nov. 2017.

A segunda etapa, nomeada de identificação e delimitação, destina-se à abertura do processo administrativo de regularização fundiária. Nesta etapa, as comunidades já certificadas pela Fundação Palmares podem entrar com o processo no INCRA. Depois da abertura do processo, o primeiro passo é a construção do Relatório Técnico de Identificação de Delimitação (RTID), que inclui, entre outros documentos, o relatório antropológico. Sobre a necessidade do retorno dos relatórios antropológicos, a antropóloga Eliane O’Dwer 266adverte que essa

etnicidade construída na relação que se estabelece com o Estado para fins de aplicabilidade legal é distinta dos contextos de interação social e a distância entre os ideais de representação jurídica e as configurações cotidianamente assumidas pelas chamadas “comunidades negras rurais” precisa ser considerada, haja visto que estas costumam ser significadas de forma pejorativa por meio de estereótipos racistas, com base em noções padronizadas de diferença cultural. Desse modo, segundo a autora, a postura dos antropólogos têm sido a de evitarem a armadilha de definirem o que é “étnico”, mas em seus relatórios estabelecerem os vínculos entre os grupos e as terras tradicionalmente ocupadas, com uma noção étnica pautada na territorialidade.267

Além do relatório antropológico, no RTDI incluem-se os seguintes documentos, segundo a Instrução Normativa nº 57, de 20 outubro de 2009, do INCRA:

I. Levantamento fundiário;

II. Planta e memorial descritivo do perímetro da área reivindicada pelas comunidades remanescentes de quilombo, bem como mapeamento e indicação dos móveis e ocupações lindeiros268 e todo o seu entorno e, se possível, a

indicação da área a ser averbada com reserva legal, no momento da titulação; III. Cadastramento das famílias remanescentes de comunidades de quilombos,

utilizando-se formulários específicos do INCRA;

IV. Levantamento e especificação detalhada de situações em que as áreas pleiteadas estejam sobrepostas à unidade de conservação constituída, a áreas de segurança nacional, a áreas de faixa de fronteira, a terras indígenas ou situadas em terrenos de marinha, em outras terras públicas arrendadas pelo INCRA ou Secretaria do Patrimônio da União e em estados e municípios;

266 O’DWYER, Eliane Cantarino. (Org.). O fazer antropológico e o reconhecimento dos direitos constitucionais:

o caso das terras de quilombo no Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: E-papers, 2012.

267Ibid.,p. 2012, p. 14.

V. Parecer conclusivo da área técnica e jurídica sobre a proposta de área, considerando os estudos e documentos apresentados.

A terceira etapa destina-se à publicação do RTID que, primeiro será submetido à análise do Comitê de Decisão Regional do INCRA e, somente, após aprovação, será enviado ao Superintendente Regional do INCRA, para elaboração e publicação do edital. Tal publicação ocorre duas vezes consecutivas, no Diário Oficial da União e no Diário Oficial da unidade federativa onde se localiza o território estudado. Simultaneamente à publicação do RTDI, este é enviado para órgãos que, em um prazo de 30 dias, apresentem manifestações sobre o documento, caso o território quilombola incida sobre algumas áreas administradas por eles. Os órgãos são: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN); Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA); Secretaria do Patrimônio da União (SPU); Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG); Fundação Nacional do Índio (FUNAI); Secretaria Executiva de Defesa Nacional, do Conselho de Defesa Nacional (CDN); Fundação Cultural Palmares (FCP); Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e seu correspondente na Administração Estadual; Serviço Florestal Brasileiro (SFB). Além desses órgãos, o INCRA pode enviar a outros órgãos e entidades da Administração Pública quando verificar repercussão em suas áreas de interesse. Em caso de manifestação contrária, o INCRA tem 30 dias para adotar as medidas cabíveis.

A quarta fase do processo é o momento das contestações, ou seja, os interessados possuem 90 dias, após a publicação e as notificações, para contestarem o RTID. As contestações podem vir dos proprietários ou dos ocupantes de áreas que ficam dentro dos quilombos. Para tanto, os contestadores devem juntar provas que serão submetidas ao Comitê de Decisão Regional da Superintendência do INCRA. Vale dizer que até o julgamento acontecer o processo permanece parado. Caso sejam acatadas as contestações, deverão ser feitas alterações no RTID.

A quinta etapa do processo é o momento da análise da situação fundiária das áreas pleiteadas. Aqui, caso as terras identificadas incidam sobre unidades de conservação, aciona-se o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade a fim de construir uma solução para dar prosseguimento ao processo de titularização. Se a sobreposição ocorrer em relação à área de segurança nacional e à área de faixa de fronteira, o INCRA deverá procurar a Secretaria Executiva do Conselho de Defesa Nacional. Por fim, se a sobreposição for em terras indígenas, o órgão a ser procurado pelo INCRA será a Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Importante dizer que, se o INCRA e os órgãos não chegarem a uma conclusão sobre as áreas sobrepostas,

a decisão da continuidade do processo de regularização fundiária deixará de ser responsabilidade do INCRA.

Além disso, há terras que incidem sob terrenos da Marinha, há ainda aquelas que estão sob posse de particulares, mas que pertencem à União, há terras de propriedade de Estados, do Distrito Federal e Municípios, e há aquelas terras particulares que, para fins de titularização, é preciso promover a desapropriação. Outro elemento que se destaca nessa fase é que, uma vez observada a presença na área reivindicada por ocupantes não quilombolas e estes ocupantes forem posseiros, o INCRA deverá promover o reassentamento desses grupos, pagando, inclusive, pelas suas benfeitoras como casas, roças, pastos, entre outras.

A sexta fase, referente à demarcação, destina-se ao momento de demarcação realizada pelo INCRA dos limites do território quilombola. A sétima última fase, definida como titulação, trata-se do momento em que o INCRA outorga o título coletivo e pró-indiviso à comunidade, em nome de sua associação legalmente constituída, com obrigatória inserção de cláusula de inalienabilidade, imprescritibilidade e impenhorabilidade. Isso significa que a terra não pode ser dividida, loteada, arrendada ou penhorada.

Em todo Brasil, entre 2005 e 2016, o INCRA outorgou apenas 86 títulos de fundiários.269

Hoje há cerca de 240 comunidades quilombolas que possuem o título definitivo das terras que ocupam. No Rio de Janeiro, são apenas três comunidades: Campinho da Independência (Paraty), Preto Forro (Cabo Frio) e Ilha da Marambaia (Mangaratiba). Conforme mostra o quadro abaixo, há comunidades que estão quase há vinte anos esperando pela conclusão do processo jurídico. São elas: Santa Rita do Bracuí (Angra dos Reis), Rasa (Armação de Búzios), Caveira (São Pedro da Aldeia), Santana (Quatis), São José da Serra (Valença).

269 Disponível em: <http://www.incra.gov.br/sites/default/files/incra-andamentoprocessos-

Imagem 1 - Relação das comunidades quilombolas certificadas no Rio de Janeiro até novembro de

2016270

270 As informações do quadro foram retiradas dos sites do INCRA e da Fundação Cultural Palmares e.

Disponíveis, respectivamente, em <http://www.incra.gov.br/sites/default/files/incra- andamentoprocessos-quilombolas_quadrogeral.pdf> e <http://www.palmares.gov.br/wp- content/uploads/2016/06/COMUNIDADES-CERTIFICADAS.pdf>. Acesso em 15 nov. 2016.

Os desenhos das políticas públicas e a morosidade jurídica têm sido alvos das críticas de inúmeras lideranças quilombolas. Dentre elas, destaco a fala de Laura Maria dos Santos, do Quilombo de Campinho da Independência. Leiamos os termos de sua insatisfação:

É um salto o [Programa] Brasil Quilombola porque antes não tinha isso. Tinha uma luta. O governo Lula deu possibilidade. Ele criou a Seppir. Isso é concreto, apesar do Programa não sair a contento, porque tudo lá dentro é muito difícil. Você cria e aí os outros que estão lá dentro, parece que vão minando. Ai você não ver as coisas chegarem nas pontas. Mas você vê algumas comunidades conseguindo acessar coisas que antes não tinham nada. É que isso a gente enxerga que é uma migalha ainda [...] A gente conseguiu construir o restaurante com o recurso da Petrobrás. Isso para ele [governo] é migalha. O governo está trabalhando com as migalhas, mas isso para nós é muita coisa. A gente tem consciência que o governo dá muito pouco desse bolo que eles diziam que ia repartir. A gente está só com uma fatia [...] A queda de braço está muito desigual. 271

Partindo do reconhecimento de que, a partir do governo Lula, houve certo avanço nas políticas públicas, Laura usa o termo “migalha” para adjetivar o escopo das mudanças. O tom de frustação é visível com um governo que prometeu “repartir” o bolo, mas que, ao final, as comunidades quilombolas ficaram com um pedaço muito pequeno dessa partilha.

A decepção de Laura foi quantificada na pesquisa de José Maurício Arruti272, apontando que, em 2004, com o lançamento do Programa Brasil Quilombola (PBQ), a previsão era gastar com as comunidades quilombolas R$ 1 bilhão nos programas Bolsa Família, Fome Zero e Luz Pra Todos. Porém, a projeção não se efetivou: o programa, entre 2004 e 2007, destinou apenas 32% do orçamento previsto. Em 2008, a perda chegou a ser de 15, 3 milhões. A situação ainda foi mais grave quando nos referimos aos processos de regularização dos territórios. Naquele ano, o Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA) aplicou apenas 21,75% do orçamento destinado ao Programa Brasil Quilombola. Com base no relatório do Instituto Estudos Sócioeconômicos (INESC), de 2008, Arruti apontou que R$ 6 milhões deixaram de ser aplicados na elaboração de Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação

271 Laura Maria dos Santos, em entrevista à pesquisadora, em 25 fev. 2016.

(RTID)273. Por último, Arruti apontou que os cortes alcançaram cifras ainda mais significativas durante o primeiro mandato da presidenta Dilma.274

Retomando à fala de Laura, foi nesse cenário de refluxo progressivo de orçamento, em 2007, que o restaurante da comunidade de Campinho foi inaugurando com recursos provenientes da Petrobrás. Por meio desse acontecimento, Laura descreve o paradoxo das “migalhas”. Diante de atraso secular de políticas públicas, o pouco passa ser percebido como muito. Por conta disso, Laura não se furta de denunciar: “a gente está só com uma fatia. A queda de braço está muito desigual.275

Sobre as desiguais relações de força, no Rio de Janeiro, o Quilombo de Campinho da Independência é um exemplo que, mesmo depois de possuírem o título das terras, as comunidades quilombolas não estão totalmente protegidas. Em 1997, o Quilombo de Campinho foi o primeiro do estado do Rio de Janeiro ter a posse efetiva das terras que ocupadas. Contudo, ainda hoje o grupo enfrenta constantes conflitos com os administradores de um empreendimento imobiliário de luxo da região: o Condomínio Laranjeiras que, ao privatizar parte do litoral da Praia do Sono, impediu o acesso das populações quilombolas, caiçaras e indígenas ao local, onde tradicionalmente esses grupos realizavam a pesca.276

Em 2016, depois do golpe parlamentar, a extinção do Programa Brasil Quilombola e a destituição dos poderes ministeriais da SEPPIR foram os primeiros atos do presidente Michel Temer, que ocupou o cargo com o apoio de setores conservadores da sociedade brasileira como a rede Globo, O Movimento Brasil Livre (MBL) e as bancadas evangélica e ruralista. Nessa estrutura, a SEPPIR fica subordinada ao Ministério da Justiça, perdendo, portanto, orçamento próprio.

273 ARRUTI, José Maurício. “Políticas públicas para quilombos: terra, saúde e educação”. In: Paula,

Marilene de; HERINGER, Rosana. Caminhos Convergentes: Estado e Sociedade na superação das desigualdades raciais no Brasil, 2009. p. 78-80.

274 Ibid.

275 Laura Maria dos Santos, em entrevista à pesquisadora, em 25 fev. 2016.

276 Desde 2009, vem ocorrendo a progressiva privatização do litoral da Praia do Sono, situada em Paraty

pelos administradores do Condomínio Laranjeiras, impedindo o acesso de populações caiçaras, indígenas e quilombolas. Em julho de 2009, Associação de Moradores do Campinho, por meio do Fórum das Comunidades Tradicionais, publicou um manifesto contra contra os abusos do Condomínio Laranjeiras, bem como os contornos da Política Ambiental que limita os usos de territórios tradicionalmente ocupados por quilombolas, caiçaras e indígenas na região da Costa Verde. Para mais informações, ver: <http://www.koinonia.org.br/oq/noticias-detalhes.asp?cod=9938>. Acesso em 10. Nov. de 2017.

***

Os acontecimentos narrados neste capítulo permitem considerar que a emergência do discurso jurídico a partir do final da década de 1980, que criou um sujeito de direito denominado “remanescente de quilombo”, não logrou resolver a situação fundiária das comunidades negras rurais. Em parte, isso ocorreu porque, desde a emergência do artigo 68 do ADCT e dos artigos 215 e 216 da CF/88, o discurso jurídico procurou, em suas variadas formas, visualizar o que era relativo à cultura e o que era relativo à questão fundiária. Conforme vimos, o debate inicial sobre a aplicabilidade do dispositivo jurídico favoreceu que a luta pela terra não pudesse ser dissociada da disputa conceitual, já que as comunidades negras rurais que passaram a reivindicar esse direito não se enquadravam na concepção tradicional e histórica de quilombo, entendido como lugar isolado de negros fugidos, cuja definição remonta ao período colonial, chegando quase inalterada às narrativas históricas e ao imaginário social contemporâneo.

No primeiro momento, as políticas públicas delineadas pela definição tradicional de quilombo pautavam-se na busca de vestígios arqueológicos e materiais, o que dificultava o acesso à terra para os grupos que não se encaixavam em critérios de pertencimento material. Entre 1988 e 1995, nenhuma comunidade foi beneficiada com o ornamento jurídico, pois este carecia de regulamentação.

Como narramos, a redefinição do conceito de quilombo proposto pela ABA, em 1994, representou um marco ao deslocar o termo do sentido histórico para uma dimensão de pertencimento construído sob aspectos étnicos e culturais. As análises de relatórios de identificação da década de 1990 do Rio de Janeiro nos permitem entrever que as novas etnias estavam sendo construídas por meio de uma aproximação com as práticas femininas, indicando que a nova alteridade quilombola estava sofrendo uma inflexão em termos de gênero. Os territórios são, então, feminizados, bem como as mulheres ganham destaque como guardiãs das tradições. Ocorre que, como vimos, a ênfase nas práticas culturais permitiu que a tradição e a ancestralidade fossem capturadas como dispositivo de poder para legitimar o direito, tal como ocorreu com o jongo no Rio de Janeiro. Contudo, as mulheres e as práticas culturais atribuídas ao campo do feminino emergem como novos estandartes da diferença quilombola.

De certa forma, o processo de patrimonialização do jongo, pode ser compreendido como um dos usos uso estratégico do direito, já que, conforme se entrevê ao longo do capítulo, os textos jurídicos publicados até 2001 seguem modelos temáticos ligados à continuidade histórica, o que, por um lado, dificultava o acesso à terra e, por outro, favoreceu a folclorização das

práticas culturais. Em outras palavras, se, em uma perspectiva, os símbolos femininos transformaram-se em uma das formas de explicitar a relação com o território e a tradição; em outra, as práticas como o jongo, por exemplo, passaram a conferir legitimidade identitária por meio da continuidade da prática, que foi pensada como tradicional em termos de imutabilidade, cujas ressonâncias desse pensamento ainda se fazem presentes.

A partir de 2004, o acesso aos programas sociais relacionados ao Brasil Quilombola, coordenado pela SEPPIR, representou uma transformação importante no que tange às demandas internas das comunidades quilombolas e, dentre elas, destaca-se as políticas de gênero, que sugerem, por um lado, a emergência de um protagonismo feminino no ativismo quilombola. A morosidade burocrática, no que diz respeito ao acesso à terra, continuou, por outro lado, dando o tom das práticas, o que exprime como a governamentalidade racista se expressa por meio de inúmeros procedimentos técnicos e jurídicos. Pelo que foi descrito nesse capítulo podemos resumir o que está em jogo a partir de 2004: no mesmo momento que as possibilidades de acesso às políticas públicas são ampliadas para as comunidades quilombolas, os procedimentos de regulamentação fundiária ficam excessivamente morosos, com riscos reais de o direito deixar de existir. Não é mera coincidência que o pedido de inconstitucionalidade do decreto de 2003, tenha ocorrido no mesmo ano de criação do Programa Brasil Quilombola.

É em meio a essas condições de possibilidades que mulheres quilombolas criam práticas que buscam fortalecer laços entre os indivíduos e os territórios onde vivem, bem como ampliar os espaços de subjetivação que rasurem os efeitos dos dispositivos de raça, classe e gênero que incidem sobre corpos e territórios. Trata-se, portanto de contracondutas diante da