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CAPÍTULO II – Labirintos dos direitos: burocracia e feminização de quilombo

2.4 Os laudos de identificação: as mulheres entram em cena

2.4.3 São José da Serra: Os filhos de Mãe Firina

No relatório antropológico de São José da Serra, comunidade situada no Sul Fluminense do estado do Rio de Janeiro, produzido em 1998, Hebe Mattos e Lídia Meirelles244, Zeferina

do Nascimento, uma liderança feminina que foi uma das principais colaboradoras da pesquisa de construção histórica. Sobre ela, as autoras destacam:

Dona Zeferina exerce claro papel de liderança na comunidade rural de São José da Serra. As festas de comemoração do treze de maio, a mais importante tradição cultural da comunidade, são feitas em torno da sua casa. Ela consegue reconstituir com impressionante precisão a genealogia de sua família desde seus avós, maternos e paternos, no que é acompanhada por seu irmão Manoel Seabra [...] Os atuais guardiães dessa memória, especialmente D, Zeferina e seu irmão Seabra.245

243 Ibid.

244 MATTOS; MEIRELES. Op. cit., 1998. 245Ibid., p.7.

Em termos metodológicos, utilizando-se do conceito de etnicidade de Barth246, as pesquisadoras articulam os relatos de memória aos documentos cartoriais para construir a genealogia do grupo, cuja principal informação é a de que todos os moradores de São José da Serra descendiam de dois casais de escravos, segundo dados de memória confirmados pelas pesquisadoras em documentos cartoriais.

No caso de São José da Serra, destaco, justamente, os efeitos das relações estabelecidas entre os pesquisadores e a comunidade na produção dessa nova etnicidade. A esse respeito, em 2003, Antônio do Nascimento Fernandes, presidente da Associação da Comunidade do Quilombo de São José da Serra, em conferência dada a um grupo de pesquisadores do Laboratório de História Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense, chamou-me atenção pela percepção que revela sobre a relação que se impôs entre a identidade e o acesso a um direito:

Parece que a Constituição Federal em 1988, né? Foi publicado uma lei em 88 e 98... parece que a Doutora Hebe e foi mais um pessoal aí. Sabendo da comunidade, ligou para mim. Botamos a ideia de quilombo na cabeça e foi lá e fez esse trabalho na comunidade. Eu falei assim: “nós somos mesmo; aqui a gente só vive da terra mesmo”. Ninguém sabia que era Quilombo não; que era dos negros mesmo. Aí ela falou: “Vocês são quilombo, mas só com o laudo da comunidade que a gente reconhece o que é da comunidade”.247

A fala de Fernandes explicita alguns jogos de verdade e relações de poder que atravessam o processo de tornar-se quilombola. O autor cita duas datas importantes: 1988 e 1998. A primeira refere-se à Constituição Federal, que criou o sujeito de direito chamado “remanescente de quilombo”. A segunda alude ao momento em que o relatório antropológico de identificação do grupo como quilombola foi concluído. Em conjunto, essas datas e as relações que estabeleceram com os meios acadêmicos, simbolizados pela imagem da “Doutora Hebe”, referindo-se à historiadora Hebe Mattos, fizeram com que parte do grupo, segundo Fernandes, “botarem” a ideia de quilombo na cabeça. A abordagem de quilombo que permeou o texto do relatório da comunidade de São José da Serra se coaduna ao conceito de quilombo que emerge em meados da década de 1990. Essas configurações permitiram o encontro entre os pesquisadores e as comunidades, favorecendo a construção de novos saberes, novas formas

246BARTH, Fredrik. “Grupos étnicos e suas fronteiras”. In: POUTIGNAT, Phillipe; STREIFFERNART,

Jocelyne. Teorias da etnicidade: seguido de grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrick Barth. São Paulo: Ed. Unesp, 2011, p. 186-227.

de sujeitos e novas práticas. Nesse contexto, Mãe Firina, como os moradores se referem a Zeferina, e o jongo, são transformados em símbolos importantes para a comunidade.

Depois da morte de D. Zeferina, ela se torna um ícone na comunidade, sobretudo porque o jongo se tornou a expressão mais evidente da identidade do grupo. Em São José da Serra, naquele momento, emergiram transformações na configuração do jongo, como a introdução de crianças nas apresentações públicas. Não por acaso, D. Zeferina é apontada por vários moradores da comunidade de São José da Serra como aquela que, além de introduzir as crianças no jongo, mudaria as relações de gênero dentro da comunidade. Em 2003, numa entrevista concebida ao LABHOI, seu filho Antônio do Nascimento Fernandes declarou:

Naquele tempo, a criança e a mulher na nossa comunidade eram submissas. [...]A gente apenas chegava até a fogueira pra pegar o calor do fogo. Mas roda de Jongo a gente não participava, não. Uma das coisas que também era pra evitar o perigo, porque a roda do jongo praticamente terminava em briga. Então, o pai também não deixava muito o filho ficar próximo a roda de jongo, porque com o medo da pancadaria, que quando via já tava pegando no cacete. Então ele pegava também, segurava um pouquinho o filho longe do jongo. Uma porque tinha também aquele que achava que o jongo tinha uma influência também e as crianças podia abusar de alguma coisa, e sair com alguma força muito negativa dali. [...] Minha mãe ela contava muita história da comunidade. Então de primeiro quando o pai saía pra fazer compra no sábado, ia em Santa Isabel buscar compra, a minha mãe ficava contando histórias da comunidade [...] porque antes não tinha esse espaço nem para as crianças e nem para as mulheres. Então, quando a minha mãe assumiu a liderança da Comunidade que houve participação das crianças e das donas [...] Antes da minha mãe não tinha essa relação.248

A emergência de um contexto de produção de novos saberes sobre os quilombos permite que a prática de Dona Zeferina seja visualizada em termos contemporâneos. A sua atuação política dentro da comunidade está relacionada com a transmissão de saberes. Além de sua influência no campo espiritual, já que Dona Zeferina era mãe de santo do terreiro de umbanda da comunidade. No campo da política, além de introduzir as crianças no jongo, prática até então interditada, ela modifica as hierarquias de gênero na comunidade. A outra dimensão de Dona Zeferina refere-se à prática da tradição oral, do contar aos mais jovens as histórias dos antepassados.

Sobre isso, Hebe Mattos sugere que a emergência da liderança feminina dessa comunidade pode se referir à construção da identidade do grupo como remanescente de

quilombo. Segundo Mattos, entre as décadas de 1950 e de 1980, a condição masculina era indispensável nas negociações da comunidade com a esfera pública, mas o surgimento de uma liderança feminina ocorreu simultaneamente à construção da identidade do grupo como quilombola e ao uso do jongo como elemento étnico identitário. A emergência da liderança feminina foi de fundamental importância para as transformações na prática do jongo, momento que converge com o aumento da visibilidade da comunidade de São José da Serra como uma comunidade quilombola249.

Em conjunto nos três relatórios analisados nesse item, apesar dos diferentes estilos narrativos e escolhas teóricas, é possível visualizar uma recorrente opção dos seus autores em afirmar que os contornos identitários descritos pelo grupo foram produzidos sem sua interferência, o que sugere que havia nesses grupos uma identidade latente, anterior ao contexto jurídico, e o trabalho do pesquisador seria o de descrever os processos de suas configurações.

O que realmente importa é que esses saberes foram construídos em meio a mediações constantes, em um contexto que possibilitava o acesso ao direito por meio do pertencimento étnico, que favoreceu tanto a seleção dos conteúdos pelas comunidades quanto os filtros analíticos dos próprios pesquisadores. A seleção das mulheres e das práticas femininas fazem parte de um contexto de feminização da cultura que estava em curso desde a década de 1980: um movimento influenciado pelas lutas feministas, que afetaram os valores, os comportamentos e os sistemas de representação.250 A feminização é um processo que favorece que as novas etnias sejam construídas por meio de bases femininas, porque, em seu âmbito, as mulheres são selecionadas como ícones de luta para as comunidades. Homem, negro, viril? Essas imagens não convergiam com os novos símbolos que passaram a ser selecionados pelas comunidades quilombolas. De certa forma, as metodologias de pesquisa usadas para a elaboração dos documentos aqui citados colocaram comunidades e pesquisadores em constante contato, permitindo que os fluxos de saberes, de conceitos e de abordagens fossem constantemente intercambiados.

No Rio de Janeiro, alguns relatórios de identificação que compõem uma das peças da prerrogativa jurídica de tornar-se quilombola foram construídos por meio da seleção de elementos culturais atrelados ao campo do feminino - em especial, os símbolos que reforçavam

249 MATTOS, Hebe. Biografia, racialização e memória do cativeiro na História do Brasil. Niterói,

2004. Tese de Livre Docência (Livre Docência em História) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2004.

a relação afetiva com a terra ou com uma prática cultural específica, a fim de conferir ao grupo um pertencimento e uma trajetória comum no território reivindicado.