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CAPÍTULO I – Encruzilhadas teóricas

1.2 Feminismos, história e experiência

O que significa historicizar as experiências das mulheres negras e quilombolas na contemporaneidade? Como narrar suas práticas sem correr o risco de transformá-las em novas heroínas quilombolas, destituídas de humanidade? Como evitar, portanto, o que foi denunciado por Paul Gilroy, em que as vítimas “primeiro são abençoadas, depois são obrigadas a desempenhar um papel de iluminação e transformação do mundo”64. Levando em consideração a potencialidade das abordagens feministas para problematizar as relações de poder que atravessam determinadas visibilidades femininas, essa seção discute a relação entre história e experiência abordada pelas discussões feministas.

63 Sobre isso ver: SIMMEL, Georg. “Cultura feminina”. In: Filosofia do amor. São Paulo: Martins

Fontes, 1993, p. 67-91; RAGO, Margareth. “Feminizar é preciso. Por uma cultura filógina”. São Paulo

em Perspectiva: Revista da Fundação Seade, São Paulo, v. 15, n. 3, jul-set. 2001, p. 58-66.

64 GILROY. Paul. “Uma história para não se passar adiante: a memória viva e o sublime escravo”. In:

O Atlântico Negro. São Paulo: Editora 34; Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes, Centros de

História e o conceito de experiência possuem atávicas relações nas teorias feministas, já que o projeto político dos feminismos se configura pela necessidade de tornar visíveis práticas femininas que outrora estiveram silenciadas pelos mecanismos de exclusão configurados nas narrativas masculinistas. Por conta desse projeto teórico e político, a História se torna uma ferramenta privilegiada tanto por permitir que as experiências femininas silenciadas no passado possam ser cartografadas por meio da revisão de fontes históricas, como por favorecer a desnaturalização das identidades de gênero, já que nos permite acompanhar como elas foram construídas.

Não por acaso, várias autoras, em diferentes épocas, abordaram o tema da experiência feminina fazendo usos da História. Simone de Beauvoir, no final da década de 1940, argumentou que ninguém nasce mulher, mas torna-se. A filósofa francesa discutiu que a vida de uma mulher não é um dado natural, como a cor dos olhos ou as batidas do coração, pois passa por um processo de transformar-se no Outro do masculino. Seu trabalho abriu importante espaço para as teorias feministas sobre as intrínsecas relações que estabeleceu entre experiência e história.65

Dando um salto de cinquenta anos, a historiadora Joan Scott66, no início da década de 1990, desenvolveu uma sofisticada crítica sobre a noção de experiência. Scott, alinhando-se às abordagens da Filosofia da Diferença, defendeu que não existe um sujeito preexistente à experiência, mas, ao contrário, são as experiências que constituem os sujeitos, que, então, passam a se reconhecer como portadores de uma determinada prática. Publicado na década de 1990, o trabalho de Joan Scott converge com o contexto de deslocamentos epistemológicos sobre a noção de sujeito universal dentro dos feminismos, quando ganham destaque as teorias pós-estruturalistas questionadoras das noções de autoridade, de identidade e de tradição. Sobre a relação entre experiência e os processos históricos, Scott afirma:

precisamos dar conta dos processos históricos que, através do discurso, posicionam sujeitos e produzem suas experiências. Não são os indivíduos que têm experiência, mas os sujeitos é que são constituídos através da experiência.67

65 BEAUVOIR, Simone. “Infância”. In: O segundo sexo: a experiência vivida. São Paulo: Difusão

Europeia do livro, 1967, p. 9-65.

66 SCOTT, Joan. W. “Experiência”. In: SILVA, Alcione Leite; LAGO, Mara Coelho de Souza e

RAMOS, Tania Regina Oliveira (Orgs.). Falas de gênero. Santa Catarina: Editora Mulheres, 1999, p. 21-55.

Notemos que, na perspectiva abordada por Scott, o que interessa não é apenas o uso da história, mas como utilizamos a abordagem histórica para narrar como as experiências foram historicamente construídas. Sendo assim, tornar visível a experiência implica dar conta dos processos históricos que, por meio dos discursos, posicionam sujeitos e produzem suas experiências. Isso significa recusar a separação entre experiência e linguagem, além de pensar a capacidade produtiva dos discursos na construção das diferenças de gênero. A historiadora, inspirada pelas abordagens foucaultianas em torno das condições históricas em que os discursos, saberes e sujeitos são configurados, aponta que a própria ideia de experiência feminina em termos identitários precisava ser historicizada.

Entre o final dos anos de 1980 e início dos anos de 1990, o tema da experiência ganha destaque nos feminismos junto às questões de agência, resistência e identidade. Naquele momento, o tema torna-se central para chamada terceira onda do feminismo, marcada pela reivindicação das feministas negras, latinas e indígenas, entre outras, que questionavam, sobretudo, a naturalização do sujeito mulher em torno das experiências das mulheres brancas de classe média, ainda presente nas abordagens feministas marxistas e socialistas. Nesse período, portanto, consolidam-se os feminismos Multicultural, Global ou Transnacional e o Pós-moderno, que, junto com antigas abordagens Liberal, Marxista, Socialista e da Teoria Crítica, configuraram uma multiplicidade de teorizações feministas sobre as experiências, adotando uma relação diferenciada com a história e narrando as experiências femininas de formas distintas.68

Destaca-se, no contexto estadunidense, a produção das feministas negras, cujas abordagens na década de 1980 tinha como projeto político radical tornar visíveis as práticas das mulheres negras. Naquele momento, muitas daquelas autoras retomam o passado em duas direções: tanto para produzir narrativas outras sobre a escravidão, como para dar visibilidade à produção intelectual de mulheres negras que, no século XIX, já denunciavam a tripla opressão a que os corpos femininos negros estavam sujeitos.

Dentre estas, podemos citar o trabalho de Angela Davis, em 1981, ao lançar Women, Race, and Class. Davis, traduzida recentemente para o Brasil, examinou a história de mulheres negras nos Estados Unidos desde o período escravagista até a emergência do capitalismo moderno, explorando questões relativas aos direitos reprodutivos e ao estupro, em particular.

68 Sobre isso, ver: PERPICH, Diane. “Black Feminism, Poststructuralism, and the Contested character

of experience”. In: DAVIDSON, Maria del Guadalupe; GINES, Kathryn T.; MARCANO, Donna-Dale L. (Eds.). Convergences: Black Feminism and Continental Philosophy. Albany: State University of New York Press, 2010, p. 13-34; McLAREN, Margaret. Foucault, feminismo e subjetividade. São Paulo: Intermeios, 2016.

Sua narrativa procurou demonstrar as profundas diferenças entre as experiências de mulheres negras e de mulheres brancas. Para essaautora, devido à trajetória histórica diferenciada das mulheres negras, éfundamental pensar como o racismo e o sexismo operam em conjunto com a opressão de classe. Davis denuncia como o enorme espaço que o trabalho doméstico ocupa na vida das mulheres negras reproduz um padrão que foi estabelecido durante os primeiros anos de escravidão, o que as faz, na condição de escravas, terem todos os outros aspectos da sua existência ofuscados pelo trabalho compulsório.69

Em 1982, bell hooks, em Ain’t I a woman, é outro exemplo que, partindo do famoso discurso da ex-escrava Sojourner Truth, proferido em 1851, traça o percurso histórico da desfeminilização das mulheres negras ao longo da história estadunidense, discurso este que, via de regra, as desumanizava e ainda continua oprimindo-as. A autora expõe uma nova tese sobre a escravidão, afirmando que ela não apenas oprimiu os homens, mas também produziu a desvalorização do feminino na construção identitária das mulheres negras. Uma implicação disso se manifesta quando elas não percebem que o sexismo é um aspecto que deve ser combatido tanto quanto o racismo:

Na contemporaneidade, nós mulheres negras não pudemos nos unir para lutar por direitos porque não víamos a “feminilidade” como um aspecto importante de nossa identidade. Formas de socialização racistas e sexistas nos têm condicionado a desvalorizar nossa feminilidade e a considerar a raça como o único rótulo importante de identificação. Em outras palavras, fomos instadas a negar parte de nós mesmas – e assim fizemos.70

No capítulo “Sexism and black female slave experience”, bell hooks, de forma contundente, mostra como os corpos das mulheres negras escravizadas estavam expostos a toda sorte de violência, especialmente a violência sexual, porque elas não podiam recorrer aos valores morais, tampouco aos sistemas jurídicos, para se protegerem:

Enquanto o sexismo institucionalizado era um sistema social que protegia a sexualidade do homem negro, ele (socialmente) legitimou a exploração sexual de mulheres negras. A mulher escravizada tinha plena consciência de sua

69 DAVIS, Angela. “O legado da escravidão: parâmetros para uma nova condição da mulher”. In:

Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 15-41.

70 Manterei no corpo do texto, a grafia da autora em minúsculo, já que é a forma como a autora assina

seus trabalhos. Entretanto, nas notas de rodapé e na bibliografia seguirei as regras de formatação da ABNT. HOOKS, Bell. Aint’ I a woman: black women and feminism. London: Pluto Press, 1982, p. 1. Tradução nossa.

vulnerabilidade sexual e vivia um constante medo de que qualquer homem, branco ou negro, pudesse escolhê-la para ser atacada ou vitimizada.71

Aqui, bell hooks denuncia como o sexismo transformou a situação da mulher escravizada em algo insuportável, já que o patriarcado, via de regra, “poupou” os homens negros da violência sexual, o que não aconteceu com as negras escravizadas, que tinham seus corpos ameaçados pela exploração sexual dos senhores brancos e dos homens negros. Ao retomar o tema da escravidão por meio de uma perspectiva feminista, a autora contraria a tese de que a opressão da escravidão sobre os homens, ao promover a desmasculinização, impediu que o patriarcado pudesse ser desenvolvido nas comunidades negras. Essa desconstrução foi importante porque muitas ativistas negras, em um primeiro momento, negaram o papel do sexismo e elegeram o racismo como foco central de luta.72

Outro exemplo de um esforço de tornar visível a tradição intelectual das mulheres negras do século XIX é a publicação de When and where I enter73, de 1982, por Paula Giddings, que, logo na introdução, defende os usos do passado na busca de inspiração para o presente, especialmente o presente ao qual ela se refere, que é a década de 1980, com a liderança republicana e conservadora na política americana. Giddings, já na epígrafe do livro, retoma a questão colocada, em 1892, por Anna Julia Cooper, escritora e abolicionista:

Apenas a mulher negra pode dizer "quando e onde eu entro”, na calma dignidade, indiscutível da minha feminilidade, sem violência e sem litígio ou patrocínio especial, em seguida, e toda a raça negra entra comigo”.74

Partindo do discurso de Anna Julia Cooper, Paula Giddings vai defender que a experiência não era um problema abstrato para Anna Julia, já que a mãe fora escravizada e seu pai tinha sido senhor de sua mãe. Nessa direção, Giddings também defende que a forma pela qual Anna Julia via o mundo e produzia conhecimento era fruto de sua experiência de mulher negra. A autora afirma que o trabalho de Anna Julia Cooper não se restringia à luta abolicionista, pois também incluía discursos e escritos nos quais expressava seu próprio ponto de vista sobre o significado de sua história. A pesquisadora sugere como a experiência de ser uma mulher negra configura a produção dos saberes, uma criação negada e interditada.

71 Ibid., p. 24. Tradução nossa. 72 Ibid.

73 GIDDINGS, Paula. When and where I enter: the impact of Black women on race and sex in America.

New York: W. Morrow, 1982.

No capítulo “Inventing themselves”75, ainda Giddings retoma o ano de 1892 como um

momento significativo para a tradição entre as mulheres negras na luta contra as opressões de raça e de gênero. No contexto dos linchamentos ocorridos em Memphis, especialmente dos de Thomas Moss, Calvin McDowell e Henry Stewart, linchados em 1892, a pouco mais de um quilômetro de Memphis, emerge a luta de Maria Church Terrell (1863-1954) e Ida B. Wells (1862 – 1931). Paula Giddings constrói uma narrativa mostrando como as condições históricas conformam as experiências dessas mulheres na luta pelos direitos civis, que teve na luta contra os linchamentos o ponto de partida. Ambas eram filhas de ex-escravos que ascenderam socialmente, o que permitiu que elas recebessem formação e se dedicassem à escrita e ao ensino. Elas viveram no difícil período da Reconstrução, momento, como aponta hooks (1989) , em que as mulheres negras lutavam para se desvencilhar das imagens de prostitutas, construídas durante a escravidão, levando à consolidação da imagem assexuada das mamies como uma forma de restaurar a dignidade das mulheres negras que desejavam ser vistas como damas. No entanto, Mary Church Terrel e Ida B. Wells ousavam elaborar uma produção intelectual desde um lugar suspeito para seus corpos. Nas análises de Paula Giddings, elas foram defensoras da promoção da educação entre os negros como uma forma de emancipação. Sobre isso, em 1895, Ida B. Wells, que ficaria mais conhecida por sua pesquisa sobre linchamentos, escreveria em seu artigo “Woman's Mission”, publicado no New York Freeman.

Igualmente, em 1981, Gloria Anzaldúa e Cherríe Moraga, em This bridge called my back: writings by radical women of color76, por meio de uma escrita que borra as fronteiras entre a experiência pessoal e a criação acadêmica, alertavam sobre a necessidade de as mulheres de diferentes origens sociais, étnicas e de diferentes orientações sexuais encontrarem uma linguagem que supere a naturalização da opressão. Era preciso, segundo as autoras, encontrar outras formas de narrar nossas experiências para além da semântica da opressão, ao mesmo tempo que alertavam para a necessidade de dar visibilidade para uma tradição dos agenciamentos das mulheres em torno do ato de narrar suas próprias experiências.

Desse modo, as autoras defendem a criação do conhecimento como uma insurgência necessária no deslocamento de narrativas que focalizam apenas a opressão para a visibilidade dos agenciamentos, sobretudo no campo da criação de saberes por meio da escrita. Assim, provocava Gloria Anzaldúa: “Quem nos deu permissão para escrever? Por que escrever parece

75 Ibid, p. 14-27.

76MORAGA, Cherríe; ANZALDÚA, Gloria. This bridge called my back: Writing by radical women of

tão antinatural para mim? ”77. Em certo sentido, This bridge called my back sumarizava as preocupações centrais do feminismo não branco da década de 1980 nos Estados Unidos: produzir narrativas para a construção de um feminismo mais plural e, portanto, mais inclusivo.

Naquele contexto, essas autoras utilizaram-se da abordagem interseccional para tornar visíveis as experiências das mulheres negras, a fim de reivindicar direitos. Nos Estados Unidos (EUA), desde a luta pelos direitos civis, as militantes negras passaram a denunciar a dupla invisibilidade de suas demandas dentro dos movimentos antirracistas e dos movimentos feministas. Essa situação materializava-se, inclusive, na linguagem. O vocábulo “negro”, no discurso dos movimentos antirracistas, era sinônimo de homens negros, ao passo que a palavra “mulher”, no discurso feminista da época, significava mulheres brancas. Nesse sentido, a categoria “mulher negra” ganha uma dimensão política na medida em que ela colabora para problematizar a invisibilidade das mulheres negras em diversos espaços, inclusive no campo da representação jurídica, eivado pela noção de Sujeito Abstrato. Se, por um lado, o campo jurídico passou a ser usado como um espaço de ampliação dos direitos, por outro, a categoria mulher era dominada pela representação da mulher branca e a categoria raça era dominada pela representação do homem negro.

Apesar de várias feministas negras já estarem adotando em suas análises uma abordagem interseccional, o conceito de interseccionalidade como uma ferramenta analítica aparece no campo do Direito no final dos anos de 1980. Foi tecendo críticas às categorias jurídicas universalizantes do direito que Kimberle Crenshaw78, em 1989, criou o conceito de “intersecionality” (interseccionalidade) para tratar das experiências das mulheres negras de forma multidimensional no campo jurídico.

Em “Demarginalizing the intersection of race and sex”79, Crenshaw defende que,

quando uma mulher negra é discriminada, ela está em uma intersecção, não sendo possível definir a priori se o ato discriminatório se vincula à opressão sexual ou à discriminação racial. Em suas palavras, as mulheres negras podem experimentar discriminação de maneiras similares e diferentes daquelas enfrentadas pelas mulheres brancas e pelos homens negros. Às vezes, elas compartilham das mesmas experiências das mulheres brancas, no que diz respeito ao sexismo; às vezes compartilham as mesmas questões com os homens negros, no que diz respeito ao

77ANZALDÚA, Gloria. “Speaking In Tongues: A Letter To 3rd World Women Writers”. In: MORAGA,

Cherríe; ANZALDÚA, Gloria, Op. cit., 1981, p. 166.

78 CRENSHAW, Kimberle W. “Demarginalizing the intersection of race and sex; a black feminist

critique of discrimination doctrine, feminist theory and antiracist politics”. Legal Forum, University of Chicago, 1989 [1981], p. 139-167.

racismo. A autora defende que as experiências são complexas, mas as categorias jurídicas obscurecem completamente as especificidades das mulheres negras, favorecendo o não atendimento pleno de suas necessidades no campo jurídico. Para autora, não se trata de adicionar dimensões como raça, gênero ou classe, mas perceber como esses elementos, em diferentes situações, se interconectam, produzindo um tipo de discriminação que é interseccional. Além disso, a pesquisadora considera que o conceito não deve ser pensado como uma noção abstrata, mas como uma ferramenta teórica que permite levar em consideração como essas dimensões atuam em contextos específicos, evitando-se definir a priori um eixo central para as experiências das mulheres negras, como raça, por exemplo.

Deslocando-se para a cena da produção brasileira, as feministas negras também produziram análises interseccionais que, assim como as estadunidenses, denunciaram a invisibilidade das demandas das mulheres negras no interior dos ativismos negros e feministas brasileiros.

No artigo, “Racismo e sexismo na cultura brasileira”80, de 1980, Lélia Gonzalez, pesquisadora e ativista feminista, afirmou que as opressões de raça e de gênero são aspectos importantes para a análise da situação das mulheres negras no Brasil. Por isso, a autora advogava que a articulação entre o racismo e o sexismo produz efeitos violentos cotidianamente vivenciados pelas mulheres negras. Por conseguinte, na acepção da pesquisadora, era necessário que as pesquisas sobre gênero no Brasil incluíssem as análises raciais como forma de tornar visíveis as múltiplas experiências femininas.

Outro exemplo brasileiro está presente em 1985, ano em que se encerra a década da mulher da Organização das Nações Unidas (ONU). Neste ano, publicou-se o livro Mulher negra, de Sueli Carneiro e Thereza Santos81. Nessa obra, as autoras denunciaram que, na década da mulher, apesar do aumento significativo das produções acerca da questão de gênero, a variável “cor” não foi incorporada de maneira sistemática a essas produções teóricas, de forma que as mulheres negras pudessem beneficiar-se largamente dos estudos. As autoras também apontaram, com base em censos de 1950 a 1980, a posição desprivilegiada das mulheres negras diante dos homens negros e das mulheres brancas na sociedade brasileira.

80 GONZALEZ, Lélia. “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984,

p. 223-244. Esse Texto originalmente apresentado na Reunião do Grupo de Trabalho “Temas e Problemas da População Negra no Brasil”, IV Encontro Anual da Associação Brasileira de Pós- Graduação e Pesquisa nas Ciências Sociais, Rio de Janeiro, 31 de outubro de 1980.

81 CARNEIRO, Sueli; SANTOS, Thereza. Mulher Negra. São Paulo: Nobel/Conselho Estadual da

Ainda vale lembrar que, na década de 1980, há uma maior importância dada às formulações interseccionais brasileiras, com o surgimento das primeiras organizações sociais que se dedicaram especificamente às demandas das mulheres negras82. Núbia Moreira83, pesquisadora das organizações feministas negras no Rio de Janeiro e São Paulo entre 1985 e 1995, enumera a criação de vários grupos feministas. Para citar alguns, em 1983, no Rio de Janeiro, foi criado o grupo Nzinga que, embora tivesse em seus quadros mulheres pobres, era constituído majoritariamente de mulheres de classe média. Ainda no Rio de Janeiro, na década de 1980, surgiu o Coletivo de Mulheres de Favela e Periferia84. Em 1992, é criado o Grupo

Criola, ligado ao Centro de Apoio às Populações Marginalizadas (CEAP). Moreira destaca que uma das ações mais significativas do Criola foi a Campanha Contra Esterilização em Massa, instrumentalizando mulheres, meninas e adolescentes negras para enfrentar o racismo, o sexismo e a homofobia85. Em São Paulo, em 1988, é criado o Geledés Instituto da Mulher Negra, cujo propósito central da instituição era a manutenção de certa autonomia em relação ao poder estatal. Sobre a constituição dessas organizações, a pesquisadora avalia que o feminismo negro que se afirma no Rio de Janeiro e em São Paulo se deu por meio do reconhecimento do