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CAPÍTULO I – Encruzilhadas teóricas

1.3. Corpo, espaço e subjetividades

Uma tendência, herdada da filosofia do sujeito e da representação, quando abordamos o tema sobre os quilombos, é tomar a identidade quilombola como um dado, bem como naturalizar a relação que os sujeitos estabelecem com o espaço. Nessa linha de análise, pouco se discute sobre os processos de aprendizagem que, em termos contemporâneos, envolvem o tornar-se quilombola. Para problematizarmos essa ordem discursiva, é valiosa a concepção de Michel Foucault sobre os modos de sujeição e de subjetivação.

Em oposição à tradição cartesiana, a partir de uma ampla crítica à filosofia do sujeito, Michel Foucault sustenta que o sujeito não é uma substância ou um dado, mas uma forma construída por saberes e por práticas historicamente situados. Além disso, ele concebe os modos

104 RAGO, Op.Cit., 2013.

105 O Mujeres Creando fui criado, em 1990, por Julieta Paredes, María Galindo e Monica Mendoza. Em

2002, por conta de uma dissidência interna, Julieta Paredes fundou o Mujeres Creando Comunidade/Asamblea Feminista Comunitaria. Para mais informações, conferir: RAGO, Margareth. Op. Cit., 2013.

de subjetivação como práticas de constituição de si que ocorrem, simultaneamente, em duas direções: a primeira refere-se aos modos em que o indivíduo aparece como objeto do discurso ou da prática, enquanto a segunda se relaciona à subjetividade ética concernente às formas como os próprios indivíduos participam da sua construção enquanto sujeitos morais.107

Como antídoto às essencializações, são valiosas as análises sobre a subjetividade corporificada, proposta pela filósofa feminista foucaultiana Margaret McLaren. No seu entender, “Noções de subjetividade que começam com o corpo devem levar em conta a diferença cultural e a especificidade histórica; sujeitos não podem ser separados dos contextos nos quais se desenvolvem e operam”108. A autora lembra que o corpo tem papel central nas

teorizações feministas contemporâneas, destacando que ele é, simultaneamente, fonte de saber, local de resistência e espaço de subjetividade. Para ela, a concepção de subjetividade corporificada dos estudos feministas converge com as problematizações de sujeito de Michel Foucault, já que ambas as propostas problematizam a noção liberal, branca e masculina de sujeito racional universal, que desvaloriza as emoções e o corpo como elementos importantes na constituição de subjetividades, bem como as dinâmicas das relações sociais109.

Tratando das práticas das mulheres negras quilombolas, a abordagem da subjetividade corporificada permite questionar uma narrativa predominante sobre as mulheres negras, vistas como estoicas, que tudo suportam e resistem, bem como permite compreender que seus saberes são resultados de elaborações constantes, motivadas por afecções do presente. Esse discurso, camuflado pela semântica da valorização, exprime uma forma de violência, já que nega às mulheres negras o direito à fragilidade e a valorização de suas criações intelectuais.

Sobre a relação entre espaço e práticas de subjetivação, teóricas feministas têm chamado atenção, ainda, para o fato de que narrativas sobre as mulheres negras, mesmo aquelas que pretendem denunciar a tripla opressão, tendem a enfatizar a semântica da falta e da invisibilidade como forma única de tratar suas experiências. A esse respeito, Lélia Gonzalez discute, por meio de uma abordagem psicanalítica, como a falta tem sido a forma predominante de olhar para as experiências das mulheres negras.110

107 FOUCAULT, Michel. “A ética do cuidado de si como prática da liberdade”. In: Ética, sexualidade,

política. 2a ed. Trad. Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense

Universitária, 2010, p. 264-287.

108 McLAREN, Margaret. Foucault, feminismo e subjetividade. São Paulo: Intermeios, 2016, p. 113. 109 Ibid.

110 GONZALEZ, Lélia. “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. Ciências Sociais Hoje, Anpocs,

Na mesma direção, Gizêlda Melo Nascimento, pesquisadora brasileira de literatura e linguagem, considera que as mulheres negras, por conta da tripla discriminação, foram inseridas naquilo que ela denominou como um “espaço de falta”. Para Nascimento, uma das principais implicações dessa dinâmica reside na desvalorização dos saberes produzidos por mulheres negras, o que reforça a ideia de que elas são incapazes de produzir conhecimento, já que seus corpos e suas subjetividades são considerados atávicos ao campo da natureza e da servidão. Assim, processos históricos de exclusão são naturalizados como constitutivos da subjetividade das mulheres negras, tanto pela forma como os outros as veem, como também pela maneira como elas mesmas se reconhecem. Nascimento também ressalta a necessidade de nos mantermos alertas para as implicações de processos históricos que se transformam em dados atávicos aos corpos, impedindo-nos de visualizarmos outras formas de inscrição no mundo que, na contracorrente da semântica da falta, afirmam a potência por meio de vias alternativas de veicular a palavra111. Trata-se de uma abordagem que possibilite analisarmos os deslocamentos, a criação de espaços outros que rasurem a semântica do espaço de falta, criando, portanto, outras territorialidades.

Outra forma de violência contra as mulheres negras pode se expressar por meio das idealizações, presentes no discurso da força da mulher negra. Sobre isso, bell hooks afirma que essa imagem se tornou tão potente para nomear nossas experiências que, às vezes, as próprias mulheres negras passam a se definir por meio desse atributo, sem perceberem as relações de poder que atravessam a semântica da força, porque, conforme lembra a autora, ser “forte” para suportar a opressão não é a mesma coisa que superá-la. Para manter essa postura, muitas mulheres se destroçam, e as estruturas de poder permanecem inalteradas.112 Ainda, bell hooks menciona que essa lógica associa as experiências das mulheres negras ao servilismo, com uma “representação iconográfica da negra que imprime na consciência cultural coletiva a ideia de que a mulher negra está neste planeta para servir aos outros”113, e seus corpos são semiotizados como objetos disponíveis para satisfazer os desejos dos outros, sejam sexuais, sejam de trabalhos domésticos. Entretanto, segundo a autora, quando as mulheres negras experimentam a força transformadora do amor que têm com elas e com outros, elas podem realizar ações capazes de alterar as estruturas à sua volta, acumulando forças para enfrentar o genocídio que

111 NASCIMENTO, Gizêlda Melo. “Grandes Mães, reais senhoras”. In: NASCIMENTO, Elisa Larkin

(Org.). Guerreiras de Natureza: mulher negra, religiosidade e ambiente. São Paulo: Selo Negro, 2008, p. 49-63.

112 HOOKS, Bell. Aint’ I a woman: black women and feminism. London: Pluto Press, 1982. 113 HOOKS, Bell, Op. cit., 1995, p. 468.

mata tantos homens, mulheres e crianças negras114 e construindo espaços outros de subjetivação.

Deslocando-se dessas narrativas de assujeitamento, várias autoras têm abordado, em suas pesquisas, a potencialidade feminina de transformação dos espaços, valendo-se das dores e sofrimentos para construir relações renovadas com a vida.

Patrícia Hill Collins chama a atenção para as especificidades dos saberes produzidos por essas mulheres negras, especialmente aquelas que estão fora dos espaços acadêmicos, sendo professoras, pastoras, artistas, militantes, entre outras115. Collins afirma que esses saberes têm

sido incorporados às produções acadêmicas de pesquisadoras negras, já que fazem parte de uma tradição feminina negra. Por isso, Collins define o pensamento feminista negro como “ideias produzidas por mulheres negras que elucidam um ponto de vista de e para mulheres negras”.116

A fim de explorar a potencialidade dessa produção, Collins baliza três temas que gravitam no pensamento do feminismo negro, com abordagens que inspiram as configurações propostas nesse trabalho. São eles: a autodefinição e a autoavaliação das mulheres negras, cujas práticas expressam uma ética de si tanto pelo esforço de se autodefinirem fora dos modelos de exclusão, como pela atitude crítica em relação às suas condutas; a natureza interligada da opressão materializada nos conteúdos de seus saberes e suas práticas; e, por fim, a importância da cultura das mulheres negras, pois muitas delas fazem da marginalidade um espaço criativo a fim de construírem relações e espaços outros.117

A esse respeito, é valiosa a concepção de safe spaces118, desenvolvida por Patrícia Hill Collins, que, analisando as práticas culturais criadas por mulheres negras estadunidenses, em especial no blues e nas práticas literárias, considera que há uma tradição de transmissão de experiência que se dá por meio da oralidade e que tal tradição se mantém pela criação e manutenção do que ela chamou de “espaços seguros”, locais que permitem a transmissão da experiência e o partilhar da amizade. Em linhas gerais, Collins afirma que os espaços seguros se constituem por três tipos de interações: aquelas que envolvem a amizade e as relações familiares; aquelas desenvolvidas em espaços como as igrejas e, por fim, aquelas construídas pela participação em organizações negras informais. São espaços onde as mulheres se sentem

114 HOOKS, Bell. Black Looks: Race and representation. Cambridge, Ma: South End Press, 2000. 115 COLLINS, Patrícia Hill. “Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do

pensamento feminista negro”. Revista Sociedade e Estado, jan./abr, 2016.

116 Ibid., p. 102. 117 Ibid.

118 COLLINS, Patricia. H. “The power of the Sef-definition” In: Black feminist thought: knowledge,

protegidas das práticas racistas e sexistas, na medida em que podem compartilhar saberes e práticas. Assim definiu Collins:

Historicamente espaços seguros eram considerados “seguros” porque eles representavam os lugares onde nós mulheres negras podíamos livremente lidar com assuntos relativos a nós. Por definição, tais espaços se tornaram menos seguros quando divididos com aqueles que não eram negros nem das mulheres. Os lugares seguros das mulheres negras nunca foram concebidos como um modo de vida. Ao invés disso, eles constituem um mecanismo, entre muitos, desenvolvidos para fomentar o empoderamento de mulheres negras e reforçar nosso hábito de participar de projetos de justiça social. Como estratégia, convenciona-se apoiar em práticas exclusivas, mas seu propósito geral certamente aponta para uma maior inclusão, para uma sociedade mais justa. Assim como o trabalho das cantoras negras de blues e os escritos de mulheres negras, muitas ideias foram geradas em espaços onde as comunidades de mulheres negras encontraram uma boa receptividade. Mas como as mulheres negras puderam criar esses conhecimentos sobre suas realidades sem antes conversarem umas com as outras?119