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CâMARA, Maria Alexandra Trindade da Gago

A arte de bem viver: a encenação do quotidiano na azulejaria portuguesa da segunda metade de setecentos / Maria Alexandra Trindade Gago da Câmara. - Lisboa : [s.n.], 2000.

orientadores: Rafael Moreira e Maria José Ferro Tavares

http://hdl.handle.net/10400.2/2522

Tese de Doutoramento em História na especialidade de História da Arte Moderna Portuguesa

História de Portugal / Século XVIII / Século XIX / História da arte / Azulejos / Sociedade portuguesa / Vida quotidiana / Mentalidade / Cultura portuguesa / Nobreza / Comportamento social / Habitação / Arquitectura

Resumo: O tema da presente dissertação que apresentamos tem por título “A arte de bem viver”: a encenação do quotidiano na azulejaria portuguesa da segunda metade de Setecentos e centra-se justamente sobre o estudo das questões relativas ao espaço da representação e ao lugar do “espectador”, na sua reciprocidade e na relação essencial entre estes dois aspectos, num suporte plástico específico e durante um período de tempo determinado. O tema em estudo prende-se deste modo com a procura e registo de cenários sociais íntimos e mundanos na azulejaria portuguesa do período em questão, concebidos como um sistema de reflexos das posturas e vivências sociais. Uma visão cruzada entre a azulejaria portuguesa e a própria representação da sociedade coetânea foi a ideia que guiou este projecto de investigação, apresentando-se assim, simultaneamente como um estudo do azulejo civil na região de Lisboa e um contributo para a história das práticas do quotidiano vividas na capital – enquanto corte – num período, se quisermos, balizado entre duas datas significativas: 1750 e 1807. Realidades cronológicas e tempos de mudança, acompanharam na história da azulejaria um longo período de produção, variado e rico de soluções e propostas decorativas. Assim, 1750, correspondeu ao nascimento do reinado de D. José e a um novo ciclo que se inicia na evolução do azulejo português traduzido pelo esgotamento da predominância do azul

de cobalto e pela generalização dos modelos decorativos formais veiculados pelas gravuras de Ausburgo, ao mesmo tempo que se recupera a tradição seiscentista da padronagem, ligada à marca de renovação estética mais evidente da segunda metade do século XVIII: a reconstrução de Lisboa. A segunda data 1807 liga-se esquematicamente ao momento mais agudo das Invasões Francesas e à partida da fami1ia real e da Corte para o Brasil, acontecimentos que provocaram uma estagnação criativa e até mesmo o declínio da produção do azulejo. A depuração ornamental dos meados do século XIX prenuncia o seu fim como material sumptuário das classes dominantes do Antigo Regime e a banalização pela construção burguesa. A área deste trabalho é, assim, a azulejaria civil, entendida numa contextualização cultural e ao mesmo tempo apreendida na sua dimensão e papel eminentemente social, perspectivando-se as relações e as significações entre o discurso da iconografia azulejar e o terreno mais vasto da arte e da cultura portuguesa de Setecentos. Neste percurso, abordámos a azulejaria pelo ângulo dos seus contactos com áreas de estudo tangentes e afins, seguindo sempre uma perspectiva de correspondência e procurando um modelo interpretativo. Foi na intersecção de outros campos que o objecto da nossa pesquisa se foi definindo. Forçosamente, a investigação levou-nos por arrastamento a falar de temáticas diversas que não nos pareceram de modo algum marginais ao objecto do nosso estudo: dos modelos de civilidade aos discursos normativos e às práticas de comportamento social, da identificação de formas e espaços de sociabilidade à tentativa de definição e distribuição do espaço social e físico da casa nobre e sua utência; aspectos mal conhecidos, que podem causar à partida alguma perplexidade numa dissertação em História da Arte, e até mesmo um risco, merecendo portanto uma explicação e um espaço de reflexão. Considerando a relativa abundância de regestes ligados ao quotidiano na azulejaria portuguesa, decidimos apresentá-los como temas iconográficos, intimamente conotados com uma certa “arte de viver” protagonizando e acompanhando a evolução do gosto e tipo especifico de “consumo” estético da sociedade portuguesa de então. Torna-se evidente que a azulejaria deste período se assume como vocabulário social numa espécie de catálogo de regras do “saber estar’ que surgem concomitantemente como contribuiu de prestígio para uma hierarquia social e como veículo do imaginário mundano. Do ponto de vista da recriação do quotidiano, ela é potenciadora de leituras dinâmicas, constituindo inevitáveis testemunhos de uma nova “arte de bem viver”. A questão central que nos interessou responder foi saber que relações encontrar e estabelecer entre a caracterização destes modelos socio-culturais e o discurso plástico do azulejo. O nosso propósito foi assim captar e apreender na sua totalidade a função social do azulejo,

apresentando-o nas suas variantes de discursividade mundana. Nesta perspectiva, preferimos intencionalmente o termo “encenação” do quotidiano ao da “representação “, residindo neste ponto a chave de leitura e a própria legitimidade da azulejaria portuguesa. O conceito de encenação presta-se a diferentes apropriações ideológicas que fazem sentido quando aplicadas e incorporadas no universo da pintura azulejar, como também na percepção que a própria sociedade do século XVIII faz de si própria – na medida em que se estabelecem pontos de encontro entre os que “actuam” e os que “observam”, tendendo a constituir-se momentos privilegiados de “espectáculo”. A azulejaria reflecte, assim, esta atitude de exibição, procurando elevar actividades comuns à dimensão e categoria teatral, trazendo ao nível da consciência, posturas e vivências até então encarados como espontâneas. Considerámos e dividimos este texto em quatro momentos, que sistematizam as diferentes vias de interpretação do objecto em estudo. Em primeiro lugar, a necessidade de tratar questões relacionadas com o quotidiano levou-nos a reflectir e enquadrar experiências sobre um quadro cultural e social, enquanto instrumentos conceptuais da maior importância para se conceber um entendimento alargado das práticas setecentistas. Entendemos neste ponto: a percepção de conceitos como cortesia, etiqueta e civilidade, a evolução de um discurso normativo; o valor atribuído a uma imensa panóplia de textos do “bem viver” como formulários de práticas sociais, a sua operacionalidade e a definição do próprio espaço e contexto geográfico – a cidade de Lisboa, simultaneamente corte e capital – como ideia de lugar social preeminente. Em segundo lugar avaliou-se o espaço da casa, pois a imposição de um papel social, permitiu a uma elite promotora da construção de palácios e casas nobres informada pelas modas europeias e seguindo as “modernas” condutas de civilidade – exigir para o quadro da vida que a envolve, o cenário da decoração, que escolhe como forma de prestígio e de auto-representação. As características particulares desta franja social, a forma como se distinguem socialmente a sua postura e comportamento social, reflectiram-se de forma evidente na organização do espaço que habita e na importância dada à decoração da sua própria habitação. Constatámos o sentido modelar e de representação de que se revela a habitação nobre, com uma ostentação particular em espaços determinados, criados pela luz e brilho do azulejo, relacionado com a ideia de espelho, a que está associada uma linguagem característica, formulada por temas do quotidiano. As figurações vão integrar espaços do edifício caracterizados pelo efeito lúdico e formal, comportarem-se como cenários. Numa dupla leitura que incide na interacção e diálogo entre arquitectura e pintura azulejar, apresentamos alguns exemplos ao nível da vivência dos espaços azulejares civis interiores e exteriores da região

de Lisboa. O terceiro momento foi o da análise de um discurso da iconografia azulejar definindo um elenco de cenas-tipo e formulando um modelo de interpretação particularizado segundo os diversos significados que cada um dos temas reflecte. O quarto e último momento forjaram um percurso formal e estilístico do azulejo civil, indagando locais e ritmos de produção, identificando principais protagonistas e modelos, definindo os ritmos estéticos, as motivações, o perfil e o gosto de encomendadores e clientes, como agentes de inovação que foram neste processo artístico.