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Parece-nos oportuno ao tratarmos da questão do cânone, encetarmos um diálogo com a paratopia, já que a referência ao que é cânone nos remete à noção de paratopia que, resumindo bem, seria a difícil negociação entre o lugar e o não lugar de um autor. Para Maingueneau (2005, p. 109): “Toda paratopia envolve no mínimo o pertencimento e o não pertencimento, a inclusão impossível numa topia”. Assim, a paratopia pode ser vista por dois planos: o do discurso constituinte que é caracterizado como condição da literatura, e pelo plano da singularidade das obras, que é a condição de todo criador, já que a paratopia depende dessa integração para existir.

Ainda para este pesquisador (2005), quem enuncia dentro de um discurso constituinte8 não pode ser colocado nem no interior, nem no exterior da sociedade. Segundo ele: “[...] para produzir enunciados reconhecidos como literários, é preciso apresentar-se como escritor, definir-se com relação às representações e aos comportamentos associados a essa condição” (MAINGUENEAU, 2005, p. 89).

E, mesmo se a obra carrega consigo a pretensão de ser universal,

[...] sua emergência é um fenômeno fundamentalmente local, e ela só se constitui por meio das normas e relações de força dos lugares em que surge. É nesses lugares que ocorrem verdadeiramente as relações entre o escritor e a sociedade, o escritor e sua obra, a obra e a sociedade. (MAINGUENEAU, 2005, p. 94).

Maingueneau (2005) classifica a paratopia em tipos. Assim temos, por exemplo, paratopias de identidade, espaciais e temporais que se mostram pertinentes para se compreenderem as singularidades da estrutura narrativa.

No que tange à paratopia de identidade, Maingueneau (2005) a resume neste enunciado: “Meu grupo não é meu grupo”. Vemos aí a presença de uma dissidência ou marginalidade: ela pode ser de ordem familiar, sexual ou social. Pode ser representada por aqueles que apresentam um desvio na árvore genealógica, como é o caso dos filhos bastardos.

8 De acordo com Maingueneau (2005, p. 61), os discursos constituintes são a fonte, a origem e designam um poder, uma autoridade. Tais discursos associam “o trabalho de fundação no e pelo discurso, a determinação de um lugar vinculado com um corpo de locutores consagrados e uma elaboração de memória”. Assim, “A obra literária, por sua vez, constrói as condições de sua própria legitimidade ao propor um universo de sentido e, de modo mais geral, ao oferecer categorias sensíveis para um mundo possível” (MAINGUENEAU, 2005, p. 65).

Ainda, no que se refere à paratopia de identidade (p. 110), aparecem outros elementos tais como o sexual, o social, o racial ou o psíquico. Tal paratopia pode ser representada por aqueles que a sociedade discrimina: os homossexuais, boêmios, negros, deficientes, criminosos, loucos, etc. Encontram-se ainda, nesse rol, a marginalidade tolerada como é o caso das prostitutas, dos clandestinos e dos selvagens, os primitivos. Evidentemente tais classificações são puramente subjetivas e dependem de preconceitos que, infelizmente, ainda existem em diversas sociedades e culturas.

Seguindoessapremissa,oheróidoscontosfantásticosé,assimcomoCosme,

emOBarãonasárvores,aquelequebuscaumapertinênciaquejustifiquesuadiferença.

Cosmebuscaextrairsualegitimidadenãoapenasemsuagenealogia(p.112),masem suasobras,emsuasações.Abuscapelaalteridadeconfiguraopersonagemcomoum serselvagem, àmargem dasociedade. Ainda,no casodocavaleiro advogado, eleé excluídodaárvoregenealógica,porserfilhobastardodobarão,mastemconvivência pacíficacomafamília,residindo, inclusive, namesmacasa.

Por outro lado, em O Cavaleiro inexistente, a figura de Agilulfo representa a

paratopia da identidade em sua essência, ele não se relaciona com apenas um não

estar no mundo, ele simplesmente não existe. Contudo, ele é uma representação do

cavaleiro, de seus ideais mais nobres, e é isso o que sustenta, o que lhe confere à mobilidade e o senso de “desumanidade” e, ao mesmo tempo, uma sensibilidade ímpar. É nesse paradoxo que essa personagem se constitui. Assim, seu estatuto não advém de sua genealogia e sim de seus atos: ele é aquele que produz lendas, o herói do qual se conhece o nome, mas não o rosto.

A asserção que destacamos de Maingueneau, na página 131 desta pesquisa, traz sentido ao existir de Agilulfo, cavaleiro sem rosto, no entanto, capaz de façanhas corajosas e humanas, portador dos valores ímpares das narrativas Calvinianas. Assim, Calvino se submete a exigências morais e estéticas representadas pela forma nobre e dentro dos códigos cavalheiresco que ele concede ao seu cavaleiro inexistente.

Outro matiz do tipo de paratopia familiar pode ser dimensionado pelo personagem Torrismundo, também no livro O Cavaleiro inexistente. A figura de um

filho ilegítimo existe, mas, mais profunda é a sua busca por reconhecimento não de um parente em si, mas de uma ordem (a do Santo Graal). Após descobrir sua

conde, tem seu título rejeitado pelos moradores de Curvaldia, onde iria governar a mando de Carlos Magno. Diante dessas circunstâncias, Torrismundo decide aceitar sua “não condição” novamente.

Como podemos observar, a paratopia deixa marcas no enunciado, assim como vimos nos excertos acima. Para Maingueneau (2005, p. 120) a noção de paratopia só interessa a uma análise do discurso literário se for remetida ao “contexto”, se for tomada a um só tempo como condição e produto do processo criador. “Essa relação dinâmica e paradoxal deixa marcas nos enunciados” (MAINGUENEAU, 2005, p. 120). Ora, essas marcas ocorrem tanto na paratopia de identidade como também nos outros tipos já citados desse fenômeno.

No caso da paratopia espacial, observamos também uma simplificação: “Meu lugar não é meu lugar” (MAINGUENEAU, 2005, p. 130). Esse tipo de paratopia é representada pelos nômades e pelos parasitas. Em O Cavaleiro inexistente, Agilulfo

representa, de fato, aquele que detém um caráter e uma condição civil, mas, ao mesmo tempo, é um embreante9 paratópico privilegiado: ele é protagonista da história e sustenta a narração.

Para Maingueneau (2005, p. 131), a figura desses cavaleiros andantes tem viéses interpretativos vindos da sociologia: eles podem ser uma espécie de “sonho compensatório de uma aristocracia guerreira em declínio” ou podem ser elevados ao plano espiritual: “o cavaleiro como metáfora de viagem terrestre da alma humana rumo ao céu”.

No que tange a paratopia temporal, que se resume pela máxima “Meu tempo não é meu tempo” (MAINGUENEAU, 2005, p. 132), as três obras da trilogia apresentam essa temporalidade que se define através da referência a personagens históricos, a situações históricas, guerras que de fato já ocorreram, e até mesmo a referência de datas. Além disso, no campo paródico, são localizações temporais que não se consubstanciam, já que no decorrer da narrativa, como no caso daquela do livro O Barão nas árvores, no final da narrativa, tanto o contexto espacial como o

temporal são colocados em xeque.

9 Segundo Maingueneau (2006, p. 121)

: “A embreagem linguística, como se sabe, inscreve no

enunciado sua relação com a situação de enunciação. Ela mobiliza elementos (ou embreantes [embrayeurs] que participam ao mesmo tempo da língua e do mundo, elementos que, embora

continuam signos linguísticos, adquirem seu valor por meio do evento enunciativo que os produz. Naquilo que poderíamos denominar embreagem paratópica, estamos diante de elementos de

variadas ordens que participam simultaneamente do mundo representado pela obra e da situação paratópica através da qual se institui o autor que constrói esse mundo”.

Em toda trilogia essas localizações se encontram na dinâmica paratópica. No livro O Visconde partido ao meio, logo no primeiro parágrafo, a localização temporal

se consubstancia por meio da referência à guerra entre os turcos e católicos, e às atitudes de personagens do mundo medieval. Entretanto, tanto a história quanto os personagens se dividem, se refazem. A ironia crítica do sujeito-comunicante os levam a um contexto que às vezes se aproxima do real, às vezes se aproxima da fantasticidade.

Ainda podemos pontuar que em O Barão nas árvores temos uma narrativa

que se inicia com dia, mês e ano, o que indicaria uma localização precisa temporal. No entanto, a localização espacial do livro nos conduz a um efeito fantástico. As referências ao real sejam elas feitas a Voltaire10, à Companhia das Índias11, à Revolução Francesa12, não condizem com a existência de um país denominado Penúmbria. Vislumbramos aí um viés quixotesco que nos remete a um contexto de um “mundo possível”.

Nesse sentido, talvez o verdadeiro cânone seja instaurado pela utilização do discurso constituinte e pela presença dos espaços paratópicos. Ao sair das amarras textuais, sociais e, conhecedor destas, o autor ou sujeito-comunicante vai além, em busca de um espaço que reflita o âmago daquele que empreende um trabalho artístico/cultural/linguístico, a fim de possibilitar aos seus interlocutores a entrada em um mundo não só possível, mas em um mundo que se imbrique com suas memórias mais pungentes. Nesse viés instaura-se não um poder, mas um prazer e, na contemporaneidade, essa conjugação parece-nos ser o vértice para o estabelecimento/reconhecimento das obras literárias.

10 Note-se que, para Voltaire, a razão é fundamental para a superação de preconceitos e de antigas relações de poder existentes na sociedade francesa em sua época. Como autor e filósofo racionalista que é, apresenta a importância da leitura para o enobrecimento dos homens: “Leiam, esclareçam-se; só pela leitura se fortifica a alma” (VOLTAIRE, apud LEAL; OLIVEIRA, 2007, p. 50). E de forma bem explícita, Voltaire apresenta o conceito fundamental para o Século das Luzes: a razão. Mas não é qualquer razão que leva ao desenvolvimento do homem e da sociedade, é preciso que esta esteja vinculada à experiência e à tolerância. Diz ainda Voltaire: “Parece [...] que a Razão viaja por pequenas etapas do norte para o sul, com suas duas amigas íntimas, a Experiência e a Tolerância. Acompanham-na a Agricultura e o Comércio” (VOLTAIRE, apud LEAL; OLIVEIRA, 2007, p. 50).

11 “A Companhia das Índias foi criada em 1587 com o propósito de obter um comércio exclusivo, além de primar pelo desenvolvimento e defesa das colônias portuguesas do Oriente, tendo em vista a competição de outros países como a Holanda, Inglaterra e a França” (AZEVEDO, 1997, p. 102).

12 “A Revolução Francesa ocorreu na França no período de 1789 a 1799 e foi responsável por transformações de ordem política, social e econômica, e como consequência houve a consolidação dos princípios republicanos burgueses” (AZEVEDO, 1997, p. 364).

Para Calvino, a arte é sempre algo errante, seu lugar é sempre ligado a um movimento, e este movimento ocorre devido ao fato de ser impossível ela se fechar em si mesma. Paradoxalmente, a arte não pode se deixar absorver por esse outro, o leitor/crítico, que os artistas rejeitam, mas de quem esperam um reconhecimento. Calvino também se coloca frequentemente neste entrelugar. Para ele, no livro Por

que ler osClássicos:

O clássico não necessariamente nos ensina algo que não sabíamos, às vezes descobrimos nele algo que sempre soubéramos (ou acreditávamos saber) mas desconhecíamos que ele o dissera primeiro (ou que de algum modo se liga a ele de maneira particular) E mesmo esta é uma surpresa que dá muita satisfação, como sempre dá a descoberta de uma origem, de uma relação, de uma pertinência. (CALVINO, 1991, p. 12).

Parece-nos oportuno abarcarmos a questão da legitimidade social do autor a partir da análise do discurso. Neste sentido acreditamos que o estabelecimento de

um ethos prévio13 seja uma das maneiras pelas quais o autor pode ancorar sua

escritura na legitimidade social.

Para tal reconhecimento, o autor deve gerir, de forma abrangente, os mecanismos de representação social que se imbricam com a memória coletiva, ou seja, legitimar-se para se dirigir a alguém que desconhece e detém um saber compartilhado que não será o mesmo, de acordo com as diferentes culturas ou seja, um saber que pressupõe maneiras diversas de conceber o mundo, as narrativas, os estilos.

Na verdade, o autor vive em posição paratópica, e, assim, pode servir-se de estratégias que mobilizem imaginários sociodiscursivos bastante abrangentes, a fim de estabelecer uma escritura que transcenda o paradoxo entre o individual e o universal. Não iremos aqui tratar de questões que remetem a teoria da recepção da forma como é vista na literatura. Ressaltamos, porém que Análise do Discurso, e sobretudo, a Semiolinguística têm uma forma específica de tratar a recepção: basta lembrarmo-nos do princípio da influência, próprio da teoria, princípio este inerente a todo ato de linguagem.

Para se expressarem em épocas de incertezas e repressão ideológica, vários autores e artistas foram obrigados a limitar seus domínios criativos e a transitar por outros, subliminares, a fim de continuar exercendo suas atividades sem o risco de

13 Segundo Amossy (2006, p. 79) o ethos prévio constitui a imagem que determinado auditório ou público têm de um locutor, antes mesmo que este comece a falar.

serem presos e rechaçados, em um mundo dividido, em uma Europa em reconstrução e ainda com fortes resquícios dos regimes totalitários. Para melhor compreendermos como esse quadro se formou e desenvolveu, discorreremos no próximo segmento sobre o período pós-guerra que é justamente o pano de fundo no qual Calvino escreveu e publicou Nossos Antepassados e se legitimou como grande

autor, cânone da literatura.