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Transcrevemos parte do verbete “Interdiscurso”, do Dicionário de Análise do

afirma que é possível

[...] explorar a distinção entre intertexto e interdiscurso. Assim, Adam (1999:85) fala de ‘intertexto’ para ‘os ecos livres de um (ou de vários) texto(s) em um outro texto’, independentemente de gênero, e de ‘ interdiscurso’ para o conjunto de gêneros que interagem em uma conjuntura dada. Por sua vez, Charaudeau (1993) vê no ‘interdiscurso’ um jogo de reenvios entre discursos que tiveram um suporte textual, mas de cuja configuração não se tem memória, por exemplo, no slogan ‘Danoninho vale por um bifinho’, é o interdiscurso que permite as inferências do tipo ‘os bifes de carne tem um alto valor protéico, portanto devem ser consumidos’. Por sua vez, o ‘intertexto’ seria um jogo de retomadas de textos configurados e ligeiramente transformados, como na paródia [...] (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 286). D.M (S.P)

Essa citação vem lembrar que há uma diferença entre intertexto e interdiscurso. Os primeiros referem-se aos ecos de outros textos que atravessam um novo texto, em um movimento que é, geralmente, bem lúdico, podendo levar em alguns contextos à paródia. Já os segundos são mais intrínsecos aos assuntos e temas que organizam os novos discursos. São percepções de algo já visto ou vivido – ou por viver – que o atravessam e norteiam. Dessa forma, são os já ditos e os pré- construídos que atravessam o dizer.

Outras definições nos foram sugeridas por Genette e Bakhtin. Vamos vê-las, de modo rápido. Para Genette (1979) o interdiscurso aproxima-se bem de sua ideia de “arquitextualidade”, já que tanto esta quanto o interdiscurso mostram que um discurso sempre é formado por um texto colocado em face de outros. Para Bakhtin (1981, p. 98), o discurso “[...] reencontra o outro em todos os caminhos que levam a seu objeto, e um não deixa de entrar em relação viva e intensa com o outro”. O teórico russo defende aí a ideia do princípio dialógico. Todo discurso é atravessado por outro, não há nenhum discurso original, afirma ele, salvo o do “mítico Adão”.

Atendo-nos a esses pensamentos, iremos aqui tentar recuperar alguns dos discursos que atravessam a trilogia Nossos Antepassados. Em um primeiro

momento, acreditamos que seriam os discursos da guerra, já que o tema bélico faz parte dos três livros. Tais discursos perpassam várias obras anteriores às de Calvino. Caberia ressaltar que o interdiscurso é um conjunto ou “espaço de troca” entre vários dizeres.

Outro grande eixo interdiscursivo estaria nas buscas realizadas pelo ser humano ao longo de sua vida, na esperança de que elas possam lhe mostrar uma verdade ou que tragam alguma coerência a esta.

Efetivamente, a busca é um dos eixos motores das três narrativas. Os personagens estão sempre em busca de algo que nunca viram, perderam ou não têm. Elas são variadas: a busca de uma identidade, a busca de valores, a busca de reconhecimento dos pares por meio dos títulos obtidos, a busca pela integração em uma comunidade ou em um grupo, a busca de uma verdade... Enfim, são buscas que se apoiam em questões filosóficas e humanas, que possam explicar o que é um ser humano. Essa “procura de si mesmo” já fazia parte do ideal cavalheiresco dos romances corteses. É a busca de Lancelot por um rei que seja tão grande como é grande o valor desse cavaleiro. É também sua busca pela mulher amada e inatingível, pois ela é a mulher do Rei adorado, buscas estas tão bem narradas pela poesia de Chrétien de Troyes, no século XII, entre outros autores. A busca do Graal também empreendida pelos cavaleiros da Távola Redonda, ilustra essa busca infinita de si e de seu absoluto: novamente recorremos a Chrétien de Troyes com seu “Conto do Graal” (1181). É lógico são apenas alguns casos de “buscas”: existem outros, em outras histórias mais contemporâneas.

Ainda podemos citar o discurso religioso, que se constitui no imaginário do divino presente nos três livros. Lembramos que as narrativas O Visconde partido ao

meio e O Cavaleiro inexistente se inserem no período medieval, no qual a Igreja

Católica tinha um grande poder sobre os Reis e suas ações. Os feitos gloriosos se encontram sob o domínio dessa religiosidade. É ela que as pauta e é ela que exige também as “guerras santas”. Mas, no livro O Barão nas árvores, o poder da Igreja

aparece para ser contestado por Cosme, o jovem alter-ego de um Filósofo das

Luzes, que com suas ideias racionais confunde um homem da Igreja, que prisioneiro dos dogmas desta, acaba por se voltar contra Cosme.

A trilogia de Calvino se funda na crença da realidade plural do mundo e do ser. Apresenta representações do que é justo, bom, ideal, etc., mas, não nos esqueçamos disso, são representações que têm suas bases em memórias coletivas, em ideologias. E elas já atravessaram outros discursos, em outras épocas...

Paradoxalmente, acreditamos também que a percepção do ser desestruturado, mutilado, em uma relação paratópica com seu mundo, embora aponte para um discurso da guerra, como dissemos no início desse segmento, oferece também o seu contrário, na forma de um outro interdiscurso, bem mais subentendido que o primeiro: ele se refere à eterna busca do homem por uma humanidade mais justa e onde reine a paz. Aliás, o discurso de Utopia, a ilha

imaginada por Thomas Moore (1516), pode também ser um desses interdiscursos que dialogam com as da Trilogia.

Esses discursos brotam dos imaginários partilhados por aqueles que viveram em épocas tumultuadas, como os heróis de Calvino e o próprio Calvino.

Sem mais esperar, abordaremos, no próximo segmento a intertextualidade, para discorrer sobre os textos que se situam, como palimpsestos, sob o texto calviniano.