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O conceito de identidade e o sujeito Calvino

A identidade é aquilo que permite ao sujeito tomar consciência de sua existência, isso é feito através da tomada de consciência de seu corpo (ou seja, de ‘um estar lá’ no espaço e no tempo), de seu saber (isto é, seus conhecimentos sobre o mundo), de seus julgamentos (suas crenças), de suas ações (seu poder de realizar algo). A identidade caminha então lado a lado com a tomada de consciência por parte do ser humano. (CHARAUDEAU, 2009, p. 37).

44 Notas tomadas em aula ministrada pela Profa. Dra. Ida Lucia Machado em 23.06.1999, no curso

Ao abordarmos a questão do sujeito Calvino na narrativa Nossos

Antepassados, em que um dos grandes eixos temáticos e interdiscursivos é a

fragmentação do sujeito, o sujeito partido ao meio, inexistente, em uma incessante busca de si mesmo e do seu reconhecimento através de um outro, buscamos, além de Charaudeau, as opiniões de Kaufmann que pertence a outro domínio de conhecimentos que o da análise do discurso propriamente dita, mas que a ela se liga de certo modo, a fim de deslindarmos essas identidades multifocalizadas.

A identidade é uma forma de subjetividade. A subjetividade precede, é mais ampla, está no centro da fabricação da identidade, embora não controle tudo. A identidade , tal como é abordada na contemporaneidade, é antes de tudo uma imagem de si e daí uma representação. Pertence mais ao campo das representações sociais/mitológicas e ideológicas. Pode ser considerada uma herança, uma memória, tem como base valores, símbolos e se relaciona ao estatuto do eu e do tu.45 A conceituação da identidade permeia disciplinas de vários eixos tais quais a psicologia, a sociologia, a linguística discursiva dentre outras.

Assim, no caso de Calvino, seu sujeito-enunciador-narrador ao escrever, ao criar seus protagonistas, deixa para seu sujeito destinatário uma imagem do sujeito- comunicante que ordena a escrita (conscientemente ou não): o estilo, o modo de falar e de escrever, suas escolhas lexicais, suas competências linguageiras ou enciclopédicas, suas crenças implícitas...; enfim, ele ali deixa marcas de sua subjetividade. Desse modo, o sujeito-comunicante estabelece uma representação/imagem/espelho dele mesmo como escritor.

Charaudeau (2009), ancorando-se na visão kantiniana acerca da noção de sujeito, afirma que este deve ter consciência do seu corpo no espaço e no tempo e, ao comunicar deve ter ciência de seu conhecimento sobre o mundo. Deve também ser capaz de examinar friamente seus julgamentos fundamentados em crenças e seu poder para colocá-los no papel. Isso significa que a identidade é proporcional à consciência de si mesmo. Ela ocorre a partir do reconhecimento do outro (alteridade). Pode ser caracterizada como uma relação ambivalente de semelhanças e diferenças entre o “eu” e o “outro”, aquele que é exterior ao mundo do primeiro. Enfim, vemos aí um processo de legitimação e justificação do outro e de si mesmo.

Em relação ao processo do estabelecimento das diferenças, Charaudeau

45 Adaptações do Hand-out sobre os conceitos de Ethos, Imagens de si e identidade, fornecido pela Profa. Dra. Ida Lucia Machado, no mês de setembro de 2011, em curso do PósLin/FALE/UFMG

(2009) afirma que é desencadeado um processo duplo de atração e de rejeição vis-

à-vis do outro. É por esse processo que descobrimos nossa incompletude, nossas

imperfeições e inacabamento, tal como ocorre com os heróis da trilogia de Calvino, diga-se de passagem. Se rejeitamos o outro é por medo de que ele possa ter um juízo negativo de nós. Ora, quanto mais essa rejeição se generaliza mais ela se transforma em estereotipia e em casos extremos, em preconceito.

É nesse paradoxo que a identidade é construída/constituída: na necessidade de se marcar uma diferença com o outro. Assim cientes de nossa própria existência, tentamos tornar o outro semelhante a nós – ou nós mesmos nos tornarmos como ele – no intuito de eliminar as diferenças. Nos dois casos, deve existir uma regulação entre a aceitação e a rejeição. O outro é aquele que atrai, mas também intimida. Charaudeau (2009) reflete sobre o pensamento de Rimbaud: “Eu é um outro”. Para ele, “Eu seria um outro “eu-mesmo”, igual e diferente”.

Charaudeau (2009) classifica a identidade em dois tipos:

i) Identidade social – é aquela que necessita do reconhecimento do outro. Nesse sentido, é construída com antecedência, por meio do papel e do estatuto daquele que fala. Ela estabelece o direito do sujeito de se comunicar ou seja, fundar sua legitimidade enquanto ser do mundo.

No que concerne a esse ponto, o sujeito-comunicante Calvino, como escritor, encontra-se em posição de legitimidade, já constituída através do reconhecimento social de suas obras, o que facilita a ancoragem social de seu discurso.

ii) Identidade discursiva – também construída pelo sujeito-comunicante e relacionada tanto à credibilidade como à captação. A credibilidade refere- se a fatores (internos e externos, ligados à legitimidade/poder ou ao carisma) que dão ao sujeito que fala a possibilidade de ser crível. Já a captação se relaciona ao seu jeito de escrever/falar, de agir, no sentido de levar o outro a aderir às suas intenções ou, pelo menos, aceitá-las em parte.

Nesse âmbito, é necessário não só que Calvino já tenha certa credibilidade, uma boa imagem de si ao se dirigir ao seu leitor, mas também que seja capaz de operacionalizar estratégias que conduzam seu sujeito-interpretante a compartilhar o

que ele faz seus sujeitos-personagens-narradores afirmarem.

Calvino, voltamos a lembrar, foi bastante ativo na política e no processo histórico de sua geração na Itália. Ele era judeu, foi expatriado, portanto era um sujeito “estrangeiro” e detentor de memórias de quem viu os horrores, as angústias e destruições de uma guerra mundial e de suas consequências. Seria difícil para esse

sujeito deixar completamente de lado, em sua escrita, imaginários de toda uma vida nesse contexto.

Para o sociólogo Kaufmann (2007), a identidade é um processo que permite dar sentido à vida, na qual o indivíduo se constrói de maneira individual, porém com vários pertencimentos que o movimento da vida o faz assimilar. Para esse autor, a palavra “identidade” tem duas acepções. Podemos considerá-la como um processo

individual, que diz respeito às diversas maneiras pelas quais os indivíduos tentam dar um corpo/uma personalidade às suas trajetórias (familiares, escolares, profissionais no intuito, por exemplo, de justificar sua posição); podemos também vê- la inserida nos quadros sociais da identificação ou quadros de socialização, que envolvem as categorias utilizadas para identificar um indivíduo em um dado espaço social (identidade para outrem). O autor propõe que utilizemos o termo “papel” para designar esse aspecto da identidade. A identidade é para Kaufmann (2007) também uma condição para a ação. A estima de si é um reservatório de energia que possibilita ao sujeito enfrentar situações desfavoráveis. Nesse sentido, as identidades são colocadas em operação à partir de percepções emocionais. É por essa razão que Kaufmann classifica as identidades em individuais e coletivas.

O modo de pensar e tornar algo operacional está no equilíbrio entre uma identidade pessoal que, para Kaufmann (2007), não existe em estado puro (o que sou/gostaria de ser) e uma identificação coletiva da identidade pelo social. Os dados objetivos (efeitos de contexto, os jogos de interação ou a memória incorporada) Para o referido autor, são trabalhados no sujeito a partir de conflitos que ele vive de forma permanente. Esses traços objetivos não são estáveis, são atravessados por oposições que obrigam o sujeito a se implicar, por exemplo, quando ele se vê diante de vários discursos (interdiscurso). Mas o indivíduo tem iniciativa, goza de arbitragem, e é nesse ponto, que reside o coração do processo identitário.

No estudo que aqui realizamos e que busca a aplicação de pontos teóricos próprios do discurso, dos estudos discursivos à trilogia de Calvino, notamos o seguinte: Calvino mobiliza as memórias discursivas de seus eventuais leitores,

acreditando que eles serão capazes de compreender os imaginários que atravessam suas obras; e também os intertextos, os interdiscursos a fim de que se instaure uma relação de reciprocidade entre aquele que pensa/escreve e seu sujeito-interpretante. Desse modo, Calvino tece sua trilogia, de forma que as narrativas destas espelhem sua existência, em uma dimensão paratópica, haja vista que o escritor viveu recluso durante longos períodos e almejava ser “invisível”. Gestou uma obra em que se estabelece o embate do sujeito não só com o mundo, com o social, mas, sobretudo, consigo mesmo. Nas facetas mais humanas de seus personagens observamos a pungência, a dor, por um existir, encontrar-se, constituir-se, enfim, o que constitui uma das grandes questões do sujeito contemporâneo. Mas a escritura de Calvino engendra também uma esperança de harmonia entre os seres humanos. Entre fragmentação e esperança esse autor vai tecendo suas obras.

logo, estudar a identidade pressupõe compreender as relações sociais, o caráter individual e coletivo do sujeito que escreve, observado através de sua própria vida, de suas ações e, no caso de Calvino, de sua militância política. Assim, percebe-se que uma análise da identidade que desconsidera a mediação do outro, do tempo, do componente histórico, não se consubstancia dentro do quadro de análise da Teoria Semiolinguística.