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Segundo Bakhtin (1985), a carnavalização é a inversão da “ordem da vida normal”. Resumindo bem, ela consiste na inserção de procedimentos típicos do Carnaval em discursos “sérios”, ou seja “não lúdicos”, por meio da palavra escrita ou falada. Ela pode se dar em qualquer tipo de discurso (fílmico, literário, de imprensa, etc.). Aqui, como era de se esperar, a focalizaremos no mundo romanesco de Calvino, mais especificamente, em sua Trilogia.

A carnavalização estabelece afinidades com tudo o que é marginal e excluído. O Carnaval na concepção bakhtiniana é o local privilegiado de inversão, onde os marginalizados apropriam-se do cetro real simbólico; é a subversão do discurso oficial e a liberação da censura. Bakhtin (1970) introduz esse conceito no livro

L’oeuvre de François Rabelais et la culture populaire dans le moyen âge et à la

renaissance48, traduzido no Brasil como Cultura popular na Idade Média e no

Renascimento: o contexto de François Rabelais.

Em O Visconde partido ao meio, esse efeito torna-se patente no modus

vivendi dos leprosos na Aldeia Prado do Cogumelo. Estes, destituídos do respeito da

comunidade, do temor das leis desta, vivendo em outro espaço social, ainda que marginal, possuem códigos próprios de conduta e uma liberação sexual sem freios nem censura, como podemos observar no excerto abaixo:

A porta se abriu e apareceu uma mulher morena, talvez moura, seminua e tatuada, enfeitada com rabos de pipa, que iniciou uma dança licenciosa. Não entendi bem o que sucedeu a seguir: homens e mulheres se lançaram uns sobre os outros e começaram o que depois fiquei sabendo que era uma orgia. (CALVINO, 2009, p. 63).

48 Para maiores explicações do conceito, enviamos o leitor ao livro acima, bem como a Robert Stam (1992) e a Jean Peytard (1995). Explicações/aplicações bem claras do conceito podem também ser encontradas em artigo escrito Ida Lucia Machado na revista Bakhtiniana (2014).

Bakhtin (1970) explica o conceito de carnavalização como modo de vida para aqueles que fazem pouco das regras, do bom senso, ainda que em certas datas previamente marcadas. “Com a interiorização dos procedimentos de carnavalização na prosa de ficção, a literatura se torna paródica, ou seja, ambígua” (BAKHTIN, 1970, p. 132). Esse discurso carnavalizado inclui outra voz, a voz do outro, voz essa que é a expressão da subversão.

Nesse sentido, Nietzche e Bakhtin veem a festa carnavalesca como um alívio da hiprocrisia social e do medo do corpo (STAM, 1992, p. 45). Enquanto Nietzsche tende a culpar a religião cristã por essa fobia do corpo, Bakhtin prefere culpar a ideologia feudal e a hierarquia de classes. Essas categorias conceituais de Bakhtin, no contexto das três obras do corpus, tornam pertinente analisar sua identificação

com a diferença e a alteridade, o que abordaremos a seguir.

O livro Cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de

François Rabelais (1985) é, pois, precursor da ideia de que existe um literatura carnavalesca, que se aprofunda na Paródia e no Carnaval; veio daí o termo

Carnavalização, que subsidia algumas de nossas leituras.

Bakhtin (1970) classifica Rabelais como escritor de grande destaque que ocupa lugar histórico próximo a Shakespeare, Dante, Cervantes, dentre outros. A sua característica mais importante é o fato de estar ligado às fontes populares que pontuaram sua concepção artística. Enfatiza ainda que para compreendê-lo é necessário empreender uma jornada profunda em seu romance.

Bakhtin (1970, p. 3) propõe abordar e dimensionar a cultura cômica popular da Idade Média e do Renascimento, a fim de compreender a relevância do riso e sua natureza oposta à cultura oficial, à religiosidade e ao sistema rígido da época.

Por esse viés, a cultura carnavalesca, as obras paródicas, o vocabulário grosseiro utilizado nas conversas do cotidiano e na rua pelo povo refletiam o lado cômico da vida medieval e mostravam uma visão do mundo e das relações humanas diferenciada, nem ligada ao Estado, nem à Igreja. O riso aparece, pois, como um elemento liberador em uma sociedade de oprimidos.

O princípio do Carnaval para Bakhtin (1970, p. 7) se consubstancia no cotidiano, em uma forma efetiva de vida: é sua vida festiva, de utopia, de liberdade, igualdade, abolição da hierarquia, ou seja, uma espécie de “segunda vida”.

Ressaltemos também que a literatura cômica e a paródia já eram muito difundidas nos Clássicos da literatura latina, por meio de diálogos e crônicas cuja

popularidade durou até por volta do Renascimento. A partir daí, surgem as paródias sacras dos dogmas, utilizadas em liturgias, orações, salmos etc. Entretanto, a que mais se aproximava do Carnaval – como festa em que as alegres transgressões eram possíveis – era a dramaturgia cômica medieval.

Em Rabelais, tal como é visto por Bakhtin (1970), além das palavras livremente utilizadas, incluindo expressões verbais proibidas, obscenas, – e, por consequinte, em sentido carnavalizado –, há uma imagem do corpo, de suas necessidades biológicas, do sexo, do nascimento e da morte; enfim, há uma concepção mais realista da vida. O cômico, o social e o corporal se unem. O grotesco tem um aspecto essencial, que é a deformidade. O grotesco moderno aproxima-se do estranho, do insólito.

Já no Renascimento, o riso tem grande valor se ligado à concepção do mundo que exprima verdades universais. No século XVII, o riso passa a se referir apenas a certos fenômenos parciais, e seu papel na literatura é mais restrito, bem como o valor do gênero que a ele se ligava.

Em seu livro, Bakhtin ainda discorre acerca do papel dos médicos:

O médico representa um papel capital na luta entre a vida e a morte no interior do corpo humano, e tem também uma função especial no parto e na agonia, na medida em que participa do nascimento e da morte. Ele trata não do corpo terminado, fechado e pronto, mas daquele que nasce, se forma, fica prenhe, dá vida, defeca, sofre, agoniza, é desmembrado, isto é, aquele que encontramos nas imprecações, grosserias, juramentos e de maneira geral em todas as imagens grotescas ligadas ao ‘baixo’ material corporal. (BAKHTIN, 1985, p. 155).

Percebe-se, nesse sentido, que a imagem de corpos despedaçados – e sua simbologia – têm papel fundamental na obra de Rabelais: eles representam uma forma de dissecação carnavalesca. Há muita referência às entranhas, tripas, intestinos, além de imprecações de toda natureza em Calvino, como podemos exemplificar na obra O Visconde partido aomeio:

– Quando o cavalo sente que está sendo atingido na barriga – explicou Curzio – trata de segurar as vísceras. Alguns apóiam a pança no chão, outros se viram de costas para que elas não caiam. Mas a morte não tarda a ceifá-los do mesmo jeito. (CALVINO, 2009, p. 13).

Outro fundamento carnavalesco de destaque está relacionado à maneira como se come na festa popular em Calvino: mistura de batalhas, mesa de açougueiros, matança, destripamento; isso tudo proporciona um apagamento das

fronteiras entre os animais e os homens. A comida e a bebida são uma das características da vida do corpo grotesco. Vejamos dois casos, também na obra O Visconde partido ao meio:

Depois vinham as instalações da cavalaria, onde, entre as moscas, os veterinários trabalhavam sem parar remendando a pele dos quadrúpedes com costuras, faixas e emplastos de alcatrão fervente, todos relinchando e escoiceando, inclusive os doutores. (CALVINO, 2009, p. 15).

No livro O Barão nas árvores, já no que se refere à comida, à mesa, aos

banquetes, às comidas despropositadas, preparadas com animais não comestíveis por Batista, temos um espaço para antagonismos familiares, loucuras e hipocrisias:

[...] Era excelente cozinhando, pois não lhe faltava nem a diligência nem a fantasia, dotes elementares para qualquer cozinheira, mas era impossível imaginar que surpresas surgiriam à mesa quando ela punha as mãos na massa, certas torradas com patê, que ela havia preparado uma vez, finíssimas para dizer a verdade, eram de fígado de rato e ela não dissera nada até que tivéssemos comido e elogiado, isso para não falar das patas de gafanhoto, as traseiras duras e serrilhadas, postas em forma de mosaico numa torta; e os rabinhos de porco assados como se fossem roscas; e daquela vez que cozinhou um porco-espinho inteiro, com todos os espinhos [...]. (CALVINO, 2009, p. 13).

Observamos ainda, em O Visconde partido ao meio, que a inculcação de

valores subvertidos, mordazes, pode gerar um ser humano com certa tendência à fraqueza, a se sujeitar a situações sádicas, impregnadas por um humor negro, ácido, e a questionar-se se isso não é mesmo o correto dentro do contexto social no qual ele se inscreve:

Mas as apreensões de Sebastiana tinham fundamento. Medardo condenou Fiofiero e toda a sua quadrilha a morrerem na forca, culpados de rapina. Mas, como as vítimas eram por sua vez caçadores ilegais, condenou-as igualmente à forca. E para punir os guardas, que intervieram tarde demais e que não souberam prevenir os crimes dos caçadores nem os dos bandidos, decretou que eles também fossem enforcados. (CALVINO, 2009, p. 30). São abundantes as relações com a carnavalização nas narrativas de Calvino, que ao lidar com áreas fronteiriças do ser humano, com suas características peculiares, constrói obras que se apresentam como um tecido que serve de invólucro aos prazeres, vícios, amoralidades, deformações, criaturas carnavalizadas, quebras de paradigmas. Diante disso constatamos que estamos diante de uma escritura que agrupa várias características da paródia carnavalesca, em um

processo de construção e reconstrução em duas histórias de cavalaria, e em um processo de contextualização no Iluminismo. Esse modo de escrever relativiza não só os valores dos romances de cavalaria e da época da razão, como também faz uma intercessão com a paródia contemporânea, por meio de um viés derrisório.

Compete-nos esclarecer que, em nosso percurso interpretativo, o processo de criação da narrativa, evidenciado também pelo viés interdiscursivo e pelo viés intertextual, com suas complexidades, lançaram luz sobre os diálogos destacados para nossa análise.

No próximo segmento, ainda que dela já tenhamos falado, entraremos mais uma vez, rapidamente, no universo da paródia em Calvino, pois ela está na base dos três livros estudados.