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O homem não possui espaço interior soberano, ele é inteiramente e sempre uma fronteira, olhando em seu interior, ele olha dentro dos olhos de outrem ou através dos olhos de outrem. (BAKHTIN, 1997, p. 147).

Ao examinarmos discursivamente os três livros de Calvino, notamos que existem várias vozes vindas dos personagens, o que não é estranho em uma obra literária. Essas vozes são orquestradas pelo sujeito-enunciador-narrador, importante “peça” na engrenagem discursiva, pois a ele foi delegado, pelo sujeito-comunicante (autor), a tarefa de testemunhar as experiências, de nos demonstrar as características, as vissicitudes e outros aspectos dos personagens das narrativas.

Segundo o criador da Semiolinguística, “o narrador é um ser de papel (ou de fala) que existe no mundo da história contada, não tem, portanto, outra identidade a não ser aquela, anônima, que lhe confere o papel de sujeito que conta” (CHARAUDEAU, 2009, p. 186).

Por conseguinte, é importante considerarmos que o “processo de narração” pode ser constituído por diversos tipos de sujeitos, com papéis específicos na encenação narrativa. Desse modo, o narrador pode apresentar dois papéis, entre outros: o de historiador, que se ancora nos fatos de uma realidade dada, e o de narrador – contador, ou seja: “[...] aquele que organiza a história contada como pertencente a um mundo inventado, criado por seu organizador, em relação com todos os outros mundos inventados; um mundo que não aceita outros códigos e outras leis além daqueles da ficção” (CHARAUDEAU, 2009, p. 188).

Entre vários estudos realizados sobre o assunto, o teórico prefere adotar apenas dois pontos de vista no que tange ao papel do narrador: o interno e o externo. Segundo ele:

Nossadistinçãoapóia-senãonofatodequeonarradorsaberiamais,tantoou menos que a personagem– já que ele sabetudo por definição –,mas na resposta à interrogação seguinte: de onde lhe vem seu saber sobre o personagem,vistoqueeleodescreveassim?(CHARAUDEAU,2009,p.198). Nessa distinção entre o ponto de vista interno e o externo, ele distingue o ponto de vista externo como objetivo, aquele no qual o narrador observa a aparência física do personagem, sua exterioridade. O outro, seria o subjetivo. Evidentemente, Charaudeau faz essas distinções apenas para explicar a ordem concreta dos pontos de vista, pois ele não ignora que a subjetividade percorre tanto um ponto quanto o outro. Trata-se, pois, de uma divisão meramente formal.

As narrativas que constituem nosso objeto de estudo alternam os dois pontos de vista: o externo, com as descrições dos personagens da trilogia. Mas conforme o que foi dito acima, trata-se de uma visão meramente formal, pois, ao descrever os personagens, por exemplo do livro O Cavaleiro inexistente, o narrador faz

descrições-interpretativas, que misturam o externo com o interno, como no excerto em que o personagem Rambaldo se depara com Bradamante:

Rambaldo não acreditava em seus olhos. Porque aquela nudez era de mulher: um liso ventre emplumado de ouro e redondas nádegas cor-de-rosa e rijas, e longas pernas de moça. Essa metade de moça (a metade de crustáceo, tinha agora um aspecto ainda mais desumano e inexpressivo) girou sobre si mesma, procurou um lugar acolhedor, pousou um pé de um lado e o outro na outra parte do riacho, dobrou um pouco os joelhos, aí apoiou os braços com as proteções férreas do cotovelo, jogou a cabeça para a frente e as costas para trás e se pôs tranquila e altiva a fazer xixi. Era uma mulher com harmoniosas luas, plumagem tenra e fluxo delicado. Rambaldo apaixonou-se imediatamente. (CALVINO, 2003, p. 47).

Além disso, no regime fantástico criado por Calvino há uma sarabanda de narradores que se misturam e se separam. Assim, ainda tomando o excerto acima como exemplo, veremos que o autor estabelece a existência do narrador em 1ª pessoa (eu/nós) e esse narrador é também um narrador-testemunha-dos-fatos e, mais ainda um narrador-personagem.

Por outro lado, o narrador pode assumir a visão de uma criança, como no caso de Biágio, em O Barão nas árvores. Os tempos verbais se confundem, se

imbricam. O narrador desse livro pode passar da primeira pessoa, em que assume seu lugar de participante-testemunha, para, subitamente, falar com a voz de seu irmão, que estava sozinho no alto das árvores, em uma vida paralela à sua. No livro

O Cavaleiro inexistente, a freira-narradora conta a história, mas de repente para.

Assim agindo ela permite a entrada do narrador-autor-escritor, que vai discorrer sobre essa difícil arte.

Nas três obras, as respectivas narrações permitem a entrada de diálogos, no estilo direto, de outros personagens periféricos. Aí são eles quem assumem a narração no lugar do narrador propriamente dito, como podemos constatar em O

Visconde partido ao meio, no diálogo estabelecido entre o narrador (sobrinho) e seu

tio, o Visconde Medardo:

– Oi, tio! – gritei: era a primeira vez que conseguia cumprimentá-lo. Pareceu muito contente de me ver.

– Estou procurando cogumelos – me explicou. – Conseguiu alguma coisa?

– Olhe – disse meu tio, e nos sentamos à beira do charco. Ele escolhia os cogumelos e jogava alguns na água deixando outros nos cesto.

– pegue – disse, me entregando o cesto com os cogumelos escolhidos por ele – pode fritar. (CALVINO, 2009, p. 19).

O sobrinho-narrador torna-se personagem-narrador. Nesse sentido, podemos observar que a palavra do narrador como participante dos acontecimentos torna-se duplamente digna de confiança. O narrador representado facilita, então, a identificação do leitor com os personagens. Pode ocorrer ainda o que chamaremos, ousadamente, de concorrência entre as “vozes”: estamos “à escuta” de uma voz e nela vislumbramos a voz e a ideologia do autor.

Na trilogia, os narradores internos e testemunhas são Biágio (irmão de Cosme, sendo que os dois são duas crianças), o sobrinho do Visconde Medardo (também criança) e a Freira, irmã Teodora. Calvino toma por sujeitos-narradores

aqueles que socialmente são vistos pelo viés da pureza, da ingenuidade, da fantasia; mas que também, pelas mesmas qualidades, são menosprezados pelos adultos, pelos senhores do poder. Essa escolha calviniana de dar vozes aos “menores” cria uma imagem enevoada dos fatos, uma visão de sonhos que facilita a implantação dos efeitos fantásticos nas narrativas. Ainda observamos a relação desses “eus” narradores com os “eus” protagonistas (sobrinho/Visconde, Biágio/Cosme, freira Teodora/ Agilulfo), além da relação com a identidade do autor.

O primeiro narrador, da obra O Visconde partido ao meio, é o sobrinho do

Visconde Medardo, que não é nomeado, o que consigna um estar no mundo diferente, pois ele nem assinava o sobrenome da família dos Terralba. Emerge, assim, o efeito de uma voz reveladora, mas de uma implicação mais relativizada com o leitor o que nos aproxima ainda mais do fantástico. Assim, Calvino estabelece um jogo lúdico entre os efeitos de confidência e de real e os efeitos de fantástico, como podemos observar no excerto:

Eu era livre como o ar, pois não tinha pais e não integrava a categoria dos servos nem a dos patrões. Fazia parte da família dos Terralba só por reconhecimento tardio, mas não assinava o nome deles e ninguém se via obrigado a educar-me. Minha pobre mãe era filha do Visconde Aiolfo e irmã mais velha de Medardo, porém havia manchado a honra da família fugindo com um caçador ilegal que acabou sendo meu pai. Eu tinha nascido na cabana do caçador, nos terrenos áridos do bosque; e pouco depois meu pai foi morto numa briga e a pelagra liquidou minha mãe naquela mísera cabana. Fui então acolhido no castelo porque meu avô Aiolfo teve pena, e cresci graças aos cuidados da grande ama Sebastiana. Lembro que quando Medardo ainda era jovem e eu bem pequeno, às vezes me deixava participar de suas brincadeiras como se tivéssemos a mesma condição; depois a distância cresceu junto conosco e eu permaneci ao lado da criadagem. Então no Dr. Trelawney descobri um companheiro como nunca tinha tido. (CALVINO, 2009, p. 32).

A partir dessa condição paratópica, o sobrinho nos narra uma história pungente, ao mesmo tempo de descobertas, sofrimentos, decepções e sob um olhar infantil, mas com percepções profundas da existência. Ele é que é responsável por nos apresentar, por meio dos efeitos de surpresa, os fatos mais inusitados possíveis, como o retorno da parte má, de Medardo, de sua da parte boa e a rejunção das duas partes, por exemplo.

A experiência do inverossímil é assumida pelo mesmo personagem-narrador (o sobrinho do Visconde), um narrador que conta a história dentro da história; é ele também que nos dará várias explicações e contextualizações para a existência do inverossímil da história. O mesmo ocorre nas outras duas narrativas, com seus

respectivos personagens-narradores.

O segundo narrador, Biágio, da obra O Barão nas árvores, também criança,

pois nos explica ter apenas oito anos quando inicia a narração, fala de si referindo- se porém ao seu irmão Cosme. Na verdade, Biágio conta tudo sobre todos, mas pouco de si mesmo. Chega a admitir que Cosme era o homem da razão, que ele se tornara um símbolo da inovação, do despojamento. Ambos viviam uma dicotomia entre o viver e o conhecer/conhecer-se, entre-lugar próprio da contemporaneidade:

Antes era diferente; havia meu irmão, dizia para mim mesmo: ‘já existe ele que pensa’. E eu tratava de viver. [...] Agora ele não existe, tenho a impressão de que deveria pensar em tantas coisas, a filosofia, a política, a história, acompanho os jornais, leio os livros, quebro a cabeça, mas as coisas que ele queria dizer não estão ali, ele pensava em muito mais, algo que abarcasse tudo, e não podia dizê-lo com palavras, mas apenas vivendo como viveu. Somente sendo tão impiedosamente ele mesmo como foi até a morte, podia dar algo a todos os homens. (CALVINO, 2009, p. 233).

Há uma clara referência a um legado constituído em um mundo possível, do fantástico, mas que gera mitos como Cosme, que adentrou sua mais profunda essência ao se distanciar do convívio social padrão, ao romper com os valores estabelecidos. Sua mitificação fica nítida quando o próprio Napoleão assevera que, se não fosse ele mesmo, desejaria ser Cosme. Nesse exagero que surpreende o leitor, desponta a figura da ironia: ela opera uma reviravolta maior ainda no já tão inusitado mundo fantástico.

O narrador-personagem ainda cumpre a tarefa de enaltecer o papel do irmão e engendra aforisticamente um veio existencialista acerca do sujeito protagonista.

Já a freira Teodora, narradora-personagem de O Cavaleiro inexistente, chama

a atenção para a existência de Calvino, como já sugerimos. Nesse caso, a ruptura, presente também nas outras obras da trilogia, é ainda maior quando a freira cria um irônico efeito de surpresa: ela é Bradamante, a guerreira que amava Agilulfo e que lutava por seu amor. Essa ambiguidade gera uma mudança de perspectiva narrativa, cria um outro ponto de vista que facilita novamente o estabelecimento de efeitos fantásticos ímpares:

Sim, livro. A irmã Teodora, que narrava esta história, e a guerreira Bradamantesãoamesmapessoa.Umtantogalopopeloscamposdeguerra entreduelose amores,outrotantomeencerronosconventos,meditandoe escrevendoas históriasque me ocorrem,para tentar entendê-las. Quando vimmetrancaraqui estavadeseperadadeamorporAgilulfo, agoraqueimo pelojovemeapaixonadoRambaldo.(CALVINO,2003,p.132).

A obra O Cavaleiro inexistente é das três histórias da trilogia Nossos

Antepassados a que mais recorre ao metadiscurso. Esse fenômeno linguageiro,

segundo Maingueneau (1997), acontece quando alguém comenta sua própria enunciação. Assim, ao mesmo tempo em que se realiza, a enunciação se auto- avalia.

Mas, para que a narrativa de Calvino se consolidasse, esse sujeito- comunicante teve que se amparar em certas estratégias que aparecem, de forma consciente ou inconsciente, em narrativas diversas. É a elas que dedicaremos o próximo capítulo.

5 AS ESTRATÉGIAS NARRATIVAS

Neste capítulo abordaremos, ainda que de forma não exaustiva a presença de certas estratégias que percorrem as narrativas, sobretudo as literárias. Lembramos que a Trilogia de Calvino se edifica como um “edifício” e que para deslindar essa construção, cabe-nos mergulhar no universo da sua própria formação. É o que tentaremos fazer neste capítulo.