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CAÇADORES DE CABEÇAS DO AMAZONAS

Veríssimo de Melo

Desde que vi uma cabeça mumificada de um índio do tamanho de uma laranja, senti extrema curiosida- de para conhecer o processo indígena de redução do crânio humano e a finalidade desse estranho troféu.

Das muitas leituras sobre o assunto, guardava apenas observações do livro Índios do Brasil, de Lima Figueiredo. Livro sobre o qual as críticas de Alfred Métraux e de Herbert Baldus fazem séria restrição, apontando-o como: “compilação confusa, pois mistu- ra sem critério, dados dignos de fé e dados errados de autores antigos e modernos, não indicando lugar, nem fonte de observação”.

De qualquer forma, eis o que sabia sobre cabeças mumificadas: estudando índios mundurucus (tupi), que habitam a margem do Tapajós, no Amazonas, Lima Figueiredo assinalou ali mumificação de cabe- ças humanas chamadas pariuá-á. Após os combates, os mundurucus decepavam as cabeças dos inimigos, enfiando uma vara pela boca até o pescoço, para po- der transportá-las. Quanto ao processo de mumifica- ção, adiantou apenas que arrancavam os dentes dos vencidos. Faziam extração dos olhos e ossos, reviran-

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do a cabeça pelo avesso, e raspavam o que sobrava com a faca de taquara, embebendo o crânio em óleo de andiroba. Em seguida, recomposta a cabeça, colo- cavam-na num moquém para secar. Então a cabeça vai se contraindo e o enchimento vai sendo retirado aos poucos.

Um longo cordão é atravessado do alto da cabeça até o pescoço para transportá-la e cosem os beiços, deixando os fios pendurados. A fumaça deixa a cabe- ça negra e a sua redução atinge as proporções das de um macaco comum. Danças e rituais acompanham as diversas fases da mumificação das cabeças.

O sr. Lima Figueiredo, sem indicar fontes, faz tam- bém referências ao processo usado pelos índios pe- ruanos, em que surgem outros detalhes como “areia quente”, a maneira de enchimento e a prática de en- gomar a cabeça com pedras lisas e aquecidas.

Recentemente, em São Paulo, encontrei uma tra- dução portuguesa da obra de F. W. de Graff, intitu- lada Os caçadores de cabeça do Amazonas (Clássica Editora, 3ª edição, Porto, 1958). Nenhuma referência conhecia anteriormente o autor, não tendo, assim, elementos nem para garantir, nem para negar a au- tenticidade do depoimento, que falem sobre o assunto os nossos mestres da etnologia. De qualquer maneira, pareceu-me um relato impressionante sobre os “caça- dores de cabeça” e o processo que o autor descreve coin- cide exatamente com os pormenores já mencionados.

Daí porque acolhi a observação. F. W. de Graff re- lata suas observações nas selvas da América equato-

rial, em busca de ouro e borracha, e os vários contatos que teve com índios. É particularmente interessante para o tema em foco o seu encontro com jivaros nas fronteiras do Peru e do Equador.

Não sendo etnólogo, de Graff vai descrevendo o que viu sem qualquer método de exposição. De modo que suas informações sobre os jivaros estão espalha- das fragmentariamente, o que torna difícil um traba- lho de síntese sobre esses índios ao longo dos vários capítulos a eles dedicados.

Pelo que se registra à página 277, entende-se que os jivaros constituem quatro tribos, com a mesma língua, costumes, métodos de pesca, tecelagem, etc. Lutas intestinas teriam separado as tribos, substi- tuindo rancor mortal entre os irmãos inimigos. Em seus combates, os vencedores sempre exibiam seus troféus de vitória, as cabeças dos vencidos, guardan- do o processo de mumificação como segredo da tribo. Só em raríssimas circunstâncias um europeu pode- ria assistir as diversas fases desse ritual bárbaro. Por isso, diz de Graff, que a sua descrição dos caçadores de cabeças é a primeira e única de um fato que tem sido muito contado, mas do qual na realidade pouco se sabe.

Após o assalto, mortos e feridos permaneciam na aldeia. Os jivaros precipitavam-se sobre eles para se apoderarem dos despojos: as cabeças dos vencidos. Munidos de machado de pedra, facas de bambu, con- chas bem afiadas e outros instrumentos, indo de cor- po a corpo, colhendo cabeças.

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Não faziam distinção de sexo nessa colheita macabra.

De Graff assistiu eles se apoderarem da cabeça de uma mulher, huambisa, que fora encontrada ferida: “Enquanto um deles a sustentava no solo, outro se- gurava a cabeça e um terceiro golpeava o pescoço com um machado de pedra”. “Por último, pediram-me em- prestado um machado de pedra para cortar os derra- deiros filamentos”.

Era um espetáculo terrível. “Prosseguiu a pilhagem total das choças, incendiadas depois”.

Um dos grupos atacantes trazia de volta nada me- nos do que nove cabeças. Foram alinhadas na areia da praia de face para o mar. Guerreiros, alternada- mente, assentavam-se em cima de todas as cabeças. Após isso, dois feiticeiros sopravam suco de tabaco que vinham mascando, nas narinas dos índios, o que constituía espécie de antídoto contra o veneno do fei- ticeiro adverso.

Dou aqui a palavra de Graff para narrar uma das fases da preparação das cabeças: “Abriram nas cabe- ças uma risca no meio da testa à nuca, e fenderam a pele ao longo da risca; depois, puxando os dois lábios do corte, despregaram a pele do crânio como se fossem descascar uma laranja. Ao chegarem aos olhos, ore- lhas e nariz, praticaram algumas incisões, mas abso- lutamente desnudo, à exceção dos olhos e da língua. A cabeça desossada formava uma espécie de saco de pele e carne, cuja fenda maior foi cosida com o auxílio de uma agulha de bambu e fibras de folha de palmeira

– a chambira –, que substitui o cordel. Os lábios foram atravessados por três lascas finas de bambu, sobre as quais se cruzaram algumas folhas de fibras de algo- dão, assegurando uma tapadura hermética da boca, donde aqueles fios pendiam em longas franjas”.

As cabeças foram colocadas em enormes potes de barro, em cujo interior já havia água do rio. Quando a água começou a ferver, as cabeças foram sendo reti- radas, voltando depois ao fogo, até ficarem reduzidas a um terço do tamanho normal. Lançados os potes ao rio, atearam as fogueiras para aquecer a areia. Por um instante, os selvagens desapareceram com as cabeças. Havendo um conciliábulo entre eles, seguiu-se uma dança com urros, estando os crânios espetados em lanças fixas no solo.

Encheram depois as cabeças com areia quente, através do pescoço e começaram a “engomá-las com lajes também aquecidas, as quais eram forradas com folhas de palmeira. Isso se repete durante 48 horas, a fim de que a pele das cabeças fique lisa e dura como couro.

“Já agora as cabeças estão do tamanho de uma laranja”, acrescenta de Graff. A semelhança dos tra- ços fisionômicos da cabeça reduzida com os traços da primitiva é atestada nessa passagem do autor: “Cada traço, cada cabelo, cada cicatriz é conservada intacta e, até por vezes, as expressões fisionômicas não desa- parecem por completo”. Até os momentos finais das danças da vitória, as cabeças conservam-se no fumo, para evitar sua destruição pelos insetos.

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Vimos assim o processo de mumificação dos jivaros. Quanto à sua finalidade, creio que as palavras, a seguir, de de Graff, esclarecem bem o assunto: “As ca- beças reduzidas são para os jivaros o que o escalpo é para os peles vermelhas do norte ou a bandeira to- mada ao inimigo pelo soldado civilizado. Na verdade, essas cabeças mumificadas, verdadeiras joias nos mu- seus ou coleções particulares de objetos indígenas, são verdadeiras riquezas, e vendidas hoje a peso de ouro nos bazares do Amazonas.

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