Gilberto Osório e Odilon Ribeiro Coutinho falam sobre Natal
O espaço e o homem
Sobre a cidade de Natal – o espaço e o homem –, há duas conferências importantíssimas que deveriam figurar numa antologia especial sobre a capital do Rio Grande do Norte.
A primeira foi proferida pelo saudoso geógrafo per- nambucano, Gilberto Osório de Almeida, a respeito da posição geográfica sui generis de Natal. A segunda, so- bre o traço psicológico fundamental do natalense, foi pronunciada recentemente pelo ensaísta Odilon Ribei- ro Coutinho ao receber a Medalha do Mérito Alberto Maranhão. São duas obras-primas. Ninguém desen- volveu teses mais impressionantes e mais belas sobre “o espaço e o tempo” – o homem natalense, do que eles dois – partindo de escritores de outros estados.
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Gilberto Osório fez a sua conferência nos idos dos anos 1960. Infelizmente, ninguém a guardou para pu- blicação. Temos dúvidas ainda se Gilberto leu a sua palestra ou se a fez de improviso. Foi no tempo em que Sílvio Pedroza era prefeito de Natal, tendo sido proferi- da no Teatro Alberto Maranhão.
Em síntese – já escrevemos a respeito –, Gilberto Osório mostrou que a cidade de Natal só existe por dois motivos essenciais: a presença dos ventos alísios que varrem a cidade diuturnamente, possibilitando clima saudável e habitável; e pela presença das dunas que a circundam. Sem as dunas que a protegem das areias, que os alísios atiram constantemente sobre o chão da cidade, Natal não poderia existir.
Disse mais Gilberto Osório:
“Se percorrermos o meridiano de Natal, onde ela está inserida, só encontraremos desertos ou semide- sertos. Nenhuma sociedade floresceu naquela faixa tórrida. A exceção é a cidade de Natal, protegida pelos ventos alísios e as dunas salvadoras”.
A conferência de Odilon Ribeiro Coutinho é depoi- mento antropológico magistral sobre o caráter do ho- mem natalense em geral. Sendo paraibano, com larga vivência no Recife – além de conhecer bem outras capi- tais nordestinas –, Odilon salientou que o homem na- talense difere de todos os outros do Nordeste, pela sua cordialidade inata e vivência democrata. É o traço que acentua com fundamento histórico e antropológico, até mesmo com base na nossa formação pastoril e agrária do estado. Os poucos engenhos de açúcar trouxeram
para o Rio Grande do Norte um pequeno contingente de escravos, havendo maior assimilação do elemento indígena com os lusos conquistadores e colonizadores através dos sertões norte-rio-grandenses.
Odilon traçou ainda retrato magnífico do mecenas Alberto Maranhão, que chegou a conhecê-lo na juven- tude – destacando igualmente a figura emblemática da escritora Nísia Floresta.
São os dois vultos mais representativos do estado, que merecem cuidadosa e carinhosa interpretação so- ciológica e psicológica por parte do conferencista.
Por sugestão do governador Garibaldi Alves Filho – que declarou, após ouvir a palavra do escritor Odi- lon Ribeiro Coutinho, que vivera “um momento má- gico” naquela tarde inesquecível –, a Fundação José Augusto irá publicar, em livro, a conferência do notável escritor e ensaísta paraibano. O que Odilon proclamou com a ênfase que sabe imprimirá sua palavra culta e fulgurante. É algo que não se pode esquecer.
Março de 1996
Nota: Estes foram os últimos artigos escritos por
Veríssimo de Melo, que faleceu domingo passado.
MANOEL NENEM
“Para amostra, basta um botão”, diz um antigo provérbio espanhol. De fato, o trabalho de José Aloísio
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Brandão Vilela, que acabo de ler, assegura-me que es- tou diante de um dos grandes folcloristas de Alagoas. Usineiro e plantador de cana, morando no próprio engenho, conforme me diz em carta seu primo irmão Théo Brandão (outro esteio dos modernos estudos do populário alagoano): “José Aloísio é um apaixonado de tudo que diz respeito às nossas tradições populares”.
Sua conferência, lida no Centro de Estudos Econô- micos e Sociais daquele estado em 1945 e publicada na Revista do Instituto Histórico de Alagoas (Volume XXV – 1947), revela-o conhecedor seguro da nossa poe- sia popular, pesquisador que não se fadiga, informado de melhor bibliografia brasileira sobre o assunto. E é através desse estudo que travo conhecimento agora com um dos cantadores mais impressionantes do país. Refiro-me a Manoel Nenem (Manoel Floriano Ferreira), mulato alagoano, analfabeto, de poderosa imaginação, senhor de todos os ritmos, esmagando, pela graça ma- ravilhosa de seus repentes, qualquer adversário.
Na opinião respeitável de José Aloísio Brandão Vi- lela, Manoel Nenem é “o maior dos nossos cantadores vivos”. Leonardo Mota, o saudoso mestre, dizia ao pró- prio José Aloísio, que o maior cantador do Nordeste era o cearense Anselmo Vieira de Souza. E Luís da Câ- mara Cascudo afirma que o mais original de todos é Jacó Passarinho. Cantadores pernambucanos, com os quais José Aloísio tem convivido, dizem que o maior de todos é Severino Pinto.
De qualquer forma, pode ser que Manoel Nenem não seja o maior, mas o certo é que, atualmente, me
parece insuperável. Tudo que sai da garganta desse mulato tem um sabor inimitável.
Os exemplos que José Aloísio apresenta são de- monstrações irrefutáveis do seu talento genial. Vejam só como Manoel Nenem se apresenta antes de iniciar uma cantoria:
Seu dotô, eu pra cantar Não faço triste figura,
Abro a boca, estendo o verso, Tenho rima com fartura Meu pensamento é um veio Parece com um rio cheio Correndo em toda largura.
Eu me chamo Manoel Floriano Ferreira, Papagaio falador, Curiantã cantadeira, Rosa de todo jardim, Água de toda ribeira. Eu sou o Manoel Nenem O campeão do repente,
Que quando dispara um verso Tem quatro ou cinco no dente E nunca perde uma rima Nem que o diabo arrebente.
Manoel Nenem quando canta Ninguém fica no sereno,
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Todos vêm apreciar Do grande até o pequeno Padre, doutor, bacharel. Branco, cafuzo e moreno.
Falando de sua vida, velho tema que os cantadores tanto gostam, Manoel Nenem faz um jogo de palavras que enche a boca da gente d’água:
Eu não sei o que é que tem Minha viola amarela, Ela combina comigo E eu combino com ela Eu sou dela e ela é minha Ela é minha e eu sou dela.
Que é que tu tens viola velha Que é que tu tens violinha, Minha viola amarela Meu pensamento adivinha Ela é minha e eu sou dela Eu sou dela e ela é minha.
E um homem desses é analfabeto. Ele próprio con- fessa nesses versos interessantes:
Sou cantador atrasado E meus erros ninguém note, Eu só canto porque Deus Foi quem me deu este dote
Mas eu só conheço o “o” “Devido à boca de um pote”.
Mas onde Manoel Nenem se agiganta e rivaliza com os nossos maiores poetas líricos é neste pedaço que adiante transcrevo.
Vejam só com que espontaneidade ele fala de coi- sas prosaicas e poéticas ao mesmo tempo:
O meu verso é uma jaula Que o cantor entra e não sai Minha palavra é uma bala Bate no poeta e ele cai. A fonte do meu repente Ninguém sabe onde ela vai.
Colega tenha cuidado Do meu cantar tome nota. Sou um pé de roseira branca Quanto mais velho mais bota, O meu tanque de repentes Nunca mais ninguém esgota.
Criei-me sem pai nem mãe No meio deste sertão, Andando de déu em déu Fui criado, meu patrão, Com o sol e com a chuva E com os ramos do algodão.
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Cantando desta maneira, Aqui nesta sala bela Canto bem a noite inteira. Estou como um sabiá No galho de uma roseira.
Manoel Nenem sabe que é grande cantador e não tem medo de apregoar:
Pra cantar mais do que canto, Nenhum poeta nasceu
Se nasceu, não nasceu vivo, Se nasceu vivo, morreu Se existe, está muito oculto Que ainda não apareceu”.
E não quero terminar esta nota sem fazer um ape- lo sincero a José Aloísio Brandão Vilela, no sentido de que continue a sua recolha de materiais folclóricos, através dos versos dos cantadores nordestinos. Sobre esse formidável Manoel Nenem escreve José Aloísio, que tanto o conhece e admira. Um cantador desse não é tema somente para uma conferência. Ele é digno de um esforço maior. Pede um livro. E ninguém mais apa- relhado para isso do que José Aloísio Brandão Vilela, que transformou sua sala grande do engenho numa espécie de quartel general dos cantadores do Nordeste que transitam por Alagoas.