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O modernismo chegou a Cabo Verde na década de 30 do século passado. Mais precisamente, chegou com a revista Claridade, que teve o primeiro número lançado em março de 1936 e o nono e último, em dezembro de 196028. E chegou sob o signo da luz. Em depoimento a Manuel Ferreira,

Baltasar Lopes, um dos fundadores da revista Claridade, assim rememora a escolha do nome da publicação:

(...) travaríamos o combate por um meio que fosse permissível, embora de uma eficácia menos direta do que um jornal periódico. De aí o nascimento da revista Claridade. Intervieram na adopção deste nome duas ordens de factores. Por aquela altura era-nos familiar o pungente romance Le feu, de Henri Barbusse, que era em França figura importante se não dominante do grupo Clarté; por outro lado, tínhamos conhecimento da existência, na Argentina, de uma revista Claridad; se me não falha a memória, não tínhamos notícias da adopção deste título por qualquer grupo de qualquer outro centro de vida intelectual. (SILVA, 1986, p. XIII)

Além das restrições próprias do regime colonial, os intelectuais reunidos em torno da

Claridade tiveram de conviver com o fascismo lusitano, cuja obtusidade potencializava a censura:

“Em Cabo Verde era-se mais papista que o Papa naqueles anos de salazarismo fascistóide” (SILVA, 1986, p. XIV). A opção por uma publicação literária foi a alternativa possível, já que a crítica direta do jornalismo de opinião seria tratado como caso de polícia:

(...) censura que, inclusivamente, não admitia nem tolerava o emprego em público da palavra

fome, não fossem os cenáculos internacionais saber que em Cabo Verde havia fome, porque, a

haver fome, isto seria um atestado de incapacidade da administração colonial portuguesa... (SILVA, 1986, p. XIV).

E a militância poética sutilmente subversiva serviu de base ideológica ou mitológica para a independência política, visto que estavam eles criando pela palavra a ficção da pátria vindoura:

Pela militância, expressa ou latente nas suas páginas, a acção da revista, e com ela, do grupo, configura-se bem como um movimento precursor da independência política (...) (SILVA, 1986, p. XIV)

A propósito, FONSECA lembra as palavras de Mia Couto, que diz "Não é com a língua que o escritor trabalha, é com a sua própria sombra que é a alma. O escritor cria uma pátria para sonhar". Também recorrendo à metáfora, Eduardo Lourenço assim entende a formulação da mitologia nacional: "Cada um só tem verdadeiramente a pátria que se inventa, quer dizer, a casa ideal onde o

28 Os nove exemplares saíram na seguinte distribuição: n.o 1 em março de 1936, n.o 2 em agosto de 1936, n.o 3 em

março de 1937, n.o 4 em janeiro de 1947, n.o 5 em setembro de 1947, n.o 6 em julho de 1948, n.o 7 em dezembro de

que é e o que faz se lhe volve transparente e fora do qual se sente, por assim dizer, perdido" (2001, p. 10).

Essa independência começou a tomar forma na poesia cabo-verdiana sobretudo a partir da

Claridade. Foi o momento em que alguns intelectuais de Cabo Verde tomaram consciência plena de

todo um processo histórico iniciado em 1460 (ano em que aparece em documento a descoberta do arquipélago) e plasmaram poeticamente a cabo-verdianidade. E quando falamos de independência, temos em vista não apenas a idéia de uma forma peculiar de cultura contraposta a Portugal, o que é óbvio, mas também dialeticamente relativizada em relação à África: “De nossa parte não reputamos a poesia cabo-verdiana uma poesia africana no sentido corrente em que é tida essa expressão, sobretudo quando se pretende fundir o conceito de negro no de africano” (FERREIRA, 1975, p. 20).

Pode parecer estranha essa proposição de Manuel Ferreira, mas é inegável o fato de que o arquipélago de Cabo Verde não conhecera vida humana antes de ali chegarem os portugueses. E foram estes que trouxeram para as ilhas grupos étnicos europeus e africanos, no que resultou uma experiência multi-racial sui generis, já que nas outras colônias preexistiam populações autóctones, cuja mitologia assim sintetiza Manuel Ferreira (1975, p. 44): “(...) se ao mulato africano quadra a designação de homem-de-dois-mundos, para o mestiço cabo-verdiano proporíamos a de homem-

de-'entre'-dois-mundos (1975, p. 44).

Se por um lado a fusão cultural vem-se operando há séculos, a expressão estética desse fenômeno é uma conquista por excelência da modernidade: “Expressão da alma de um povo, de um povo mestiço neste caso, a sua poesia moderna (e a sua ficção) outra coisa não exprime do que a

cabo-verdianidade” (FERREIRA, 1975, p. 70).

Não é pacífica, entretanto, a noção de cabo-verdianidade proposta por FERREIRA. José Carlos Gomes dos Anjos (2003, p. 585) vê no conceito uma adaptação do entendimento de Gilberto Freyre acerca da mestiçagem, em detrimento da identidade africana: “Na reciclagem simbólica do discurso latino da mestiçagem, a intelectualidade cabo-verdiana elimina os pólos branco e negro, vislumbrando a realização completa da mestiçagem.” Para José Carlos Gomes dos Anjos (2003, pp. 595-6), trata-se de projeto ideológico forjado por uma elite intelectual indígena, não passando de mero sofisma que encobriria a diversidade étnica de Cabo Verde:

No caso da identidade cultural forjada pelos intelectuais cabo-verdianos, se tem enfatizado, além da mestiçagem, os temas também míticos das grandes secas e mortandades que teriam homogeneizado cultural e socialmente os diversos estratos da população cabo-verdiana. Certamente, a imagem recriada e repetida na literatura (ensinada ao longo de toda a adolescência) dos cenários de fome funciona como uma memória extremamente violenta que imprime nos espíritos a imagem da morte física dos indivíduos que compõem o grupo e, portanto, da ameaça latente de desaparecimento do grupo. Seu poderoso narcótico reside no fato de se associar a ameaça da morte abstrata do grupo à necessidade individual de se continuar subsistindo.

Sem entrar no mérito do pensamento de José Carlos Gomes dos Anjos, dele aproveitamos o fato de que a imagem de Cabo Verde foi moldada no contexto da modernidade por literatos. Na construção dessa mitologia, não havendo como separar modernidade de cabo-verdianidade, entendemos que a investigação dos traços estilísticos instaurados na modernidade cabo-verdiana por certo revelarão pelo menos um viés estético da autoconsciência cultural.