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Se buscamos relacionar poesia e pintura, não fazemos por acaso nem sem amparo do ponto de vista fenomenológico. Se há uma imagem cabo-verdiana considerada na pintura de Kiki Lima, tal imagem, entendida como uma construção social, tem sua origem na poética. A geração do pintor aprendeu a sonhar pela imagem evocada pelas palavras dos poetas que inventaram Cabo Verde: os claridosos.

O caráter instaurador da poesia é motivo de larga e minuciosa investigação fenomenológica de Bachelard. Para ele, a imagem poética é deflagradora da própria consciência: "A imagem poética nova - uma simples imagem! - torna-se assim, simplesmente, uma origem absoluta, uma origem de consciência." (2006, p. 1)

Também para Bachelard esse caráter instaurador da poesia deflagra outras formas de linguagem: "Dir-se-ia que a imagem poética, em sua novidade, abre um porvir da linguagem." (2006, p. 3)

E a fonte das imagens poéticas é o devaneio, que Bachelard faz questão de opor ao sonho. Enquanto o sonho leva a uma experiência caótica, a experiência do devaneio gera formas construtivas, de modo que a única utilidade semiótica do sonho é o que nele resta de devaneio: "Em vez de buscar sonho no devaneio, buscaríamos devaneio no sonho." (2006, p. 12)

O devaneio, segundo o filósofo, não se opõe à realidade: "Há horas na vida de um poeta em que o devaneio assimila o próprio real. O que ele percebe é então assimilado. O mundo real é absorvido pelo mundo imaginário." (2006, p. 13). Entendemos, como corolário do pensamento de Bachelard, que o devaneio não só possibilita a reconstrução da experiência real como até pode funcionar como estruturador na semiose de mundos ficcionais, no que incluiríamos a própria noção de história. Se não há devaneio poético, não há profecia, não há história. Longe de ser apenas uma fuga da realidade, o devaneio mais produtivo é uma metarrealidade, uma meta-história, um saber necessário ao poder que o sujeito histórico deve ter, se tenciona a mudança de estado da sociedade em que se insere.

Bachelard chama esse devaneio, que entendemos como histórico, de "devaneio de projetos", opondo a este o "devaneio cósmico", estado "que nos ajuda a escapar do tempo" (2006, p. 14). Semioticamente traduzidos (FLOCH apud PIETROFORTE, 2004, p. 33), o devaneio de projetos seria

a valorização utópica que faz o sujeito sobre o objeto; já o devaneio cósmico seria a valorização lúdica na relação sujeito-objeto.

Refletindo sobre o tema da evasão na poesia de Cabo Verde, Simone Caputo (GOMES, 2008, pp. 134-5) lembra a reação de poetas como Ovídio Martins à pretensa fuga para a Pasárgada dos Claridosos, que de fato tiveram em Manuel Bandeira um duplo modelo: o verso livre de Bandeira serviu de parâmetro para a libertação formal; por outro lado, o escapismo de Bandeira repercutiu intertextualmente na poética dos claridosos. E a mesma pesquisadora adverte quanto ao equívoco ou o excesso da reação dos poetas dos anos de 1960 ao chamado “evasionismo” dos claridosos: “rótulo que se estendeu (de forma precipitada, ao que se pode concluir quando se examina a história da literatura cabo-verdiana) aos poetas da Claridade”. Para ela (p. 135), é certo que a Pasárgada se fixou miticamente entre os poetas cabo-verdianos. Positiva ou negativamente concebido, no entanto, o devaneio configura-se inegavelmente como fecunda matriz poética em Cabo Verde:

O mito de Pasárgada, ressaltado por Bandeira, permanece na memória de vários poetas cabo- verdianos, seja para parafraseá-lo ou recusá-lo ideologicamente, como é o caso de Ovídio Martins no poema “Anti-evasão”.

Observando o quadrado semiótico abaixo, dificilmente se poderia situar a produção poética dos claridosos no campo neutro representado pelo termo complexo do "alheamento". Ao contrário, a poética dos claridosos exercitou, do seu modo e em seu tempo, o termo do "engajamento". Neste termo complexo tanto participaram as forças colonialistas como as que buscavam a "liberdade" mediante a negação da "opressão". Ao optarem por essa negação, esses poetas assumiram um contrato revolucionário: queriam uma realidade política e cultural diferente para Cabo Verde e sentiam-se no dever de mudar essa realidade. Em seu desempenho, ou práxis, as armas que usaram foram a arte da palavra e a forma particular de organização em torno da revista Claridade. Bem-sucedidos em sua competência devido ao saber fazer literatura e poder fazê-la na forma de um movimento literário, não lhes faltou no repertório revolucionário um paradigma programático, qual seja, o modelo brasileiro, constantemente referenciado em sua poética e sua crítica – o que inclui Bandeira e sua Pasárgada. No mesmo quadrado abaixo, usar "Pasárgada" no lugar de "Liberdade" significaria simplesmente metaforizar esse objeto de valor utópico.

LIBERDADE OPRESSÃO NÃO-OPRESSÃO NÃO-LIBERDADE R E V O L U Ç Ã O C O L O N IZ A Ç Ã O ENGAJAMENTO ALHEAMENTO

Gráfico 3 – Quadrado semiótico: oposição entre liberdade e opressão.

Seria, pois, um reducionismo considerar o devaneio poético dos claridosos uma matriz superestrutural alienadora. Entendemos, muito pelo contrário, que a evasão era já um sintoma das condições condições subjetivas necessárias à revolução cabo-verdiana. O devenaio poético não pregava a fuga da realidade, mas projetava senão mesmo instaurava uma realidade qualitativamente superior àquela do colonialismo português. O fato documental, na história de Cabo Verde, é que o último número da Claridade saiu em 1960, ou seja, um ano antes do início da luta armada que, passados quinze anos, efetivaria a independência política – sanção premial não só para os que pegaram em armas, mas também para os que a pressentiram em seus devaneios poéticos.

Foi pelo sonho que os claridosos criaram a mitologia cabo-verdiana. Foi pelo devaneio poético que eles plasmaram as imagens mentais que, nas gerações posteriores, ganhariam o contorno político ou a forma plástica. Assim, Amílcar Cabral e Kiki Lima são, um e outro, sujeitos justificados profeticamente.