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Para Dondis (2007, p. 18), assim com ocorre com o código verbal, as artes visuais também têm seu discurso e sua sintaxe:

A sintaxe visual existe. Há linhas gerais para a criação de composições. Há elementos básicos que podem ser aprendidos e compreendidos por todos os estudiosos dos meios de comunicação visual, sejam eles artistas ou não, e que podem ser usados, em conjunto com técnicas manipulativas, para a criação de mensagens visuais claras. O conhecimento de todos esses fatores pode levar a uma melhor compreensão das mensagens visuais.

No entender da mesma autora, a linguagem visual apresenta três níveis de apresentação: o representacional, o simbólico e o abstrato (DONDIS, 2007, p. 20). Buscando exemplos do século XX, a pintura figurativa expressionista exemplifica o nível representacional; a pintura surrealista de Joan Miró inclina-se para o nível simbólico; e as de Kandinsky ou de Jackson Pollock representam o nível abstrato. Nesse sentido, a própria escrita pode ser apreciada como arte visual. Os ideogramas situam- se entre o representacional e o simbólico; já as escritas silábicas e fonéticas situam-se entre o nível simbólico e o abstrato.

Dondis (2007, p. 24) organiza as técnicas de comunicação visual em dicotomias, categórica e dicotomicamente opostas. Aproveitando o esquema, sublinhamos os procedimentos técnicos utilizados, segundo nossa compreensão, na pintura madura de Kiki Lima:

Contraste Harmonia

Instabilidade Equilíbrio

Assimetria Simetria

Complexidade Simplicidade Fragmentação Unidade Profusão Economia Exagero Minimização Espontaneidade Previsibilidade Atividade Estase Ousadia Sutileza Ênfase Neutralidade Transparência Opacidade Variação Estabilidade Distorção Exatidão Profundidade Planura Justaposição Singularidade Acaso Sequencialidade Agudeza Difusão Episocidade Repetição

A pintura de Kiki Lima, pelos traços acima apontados, é tecnicamente contrastante, visto que somente a “difusão” relaciona estilisticamente sua pintura com a proposta harmônica. Numa breve justificativa dos traços identificados, retomemos a lista acima. Irregularidade: as figuras humanas estão normalmente em movimento. Complexidade: recorrência de grupos humanos, sugeridos por manchas coloridas. Fragmentação: figuras captadas em movimentos simultâneos. Profusão: os temas tendem a ocupar mais da metade da superfície da tela. Exagero: forte oposição de complementares. Espontaneidade: flagrantes do cotidiano. Atividade: a dança e a música são motivos recorrentes em sua pintura. Ousadia: junção cromática das técnicas impressionistas com a ênfase das propostas expressionistas. Ênfase: realce cromático de elementos anatômicos, particularmente as formas femininas, ou de peças do vestuário, como o chapéu. Transparência: superposição de camadas sugerindo simultaneidade de imagens. Variação: recusa ao geometrismo e ao padrão. Distorção: figuras sem rosto, manchas sugerem elementos anatômicos. Profundidade: discreta manutenção da perspectiva. Justaposição: recorrência de temas com grupos humanos. Acaso: cenas tiradas do dia-a- dia cabo-verdiano. Episocidade: os quadros narram a crônica do cabo-verdiano, com cenas de trabalho ou de diversão. Difusão: não há limite preciso entre forma e fundo; além disso, muitas das figuras representadas ultrapassam o limite da tela.

Refletindo sobre a diacronia dos estilos das artes visuais, Dondis (2007, p. 166) sintetiza-os em cinco tendências:

Ao longo de toda a história do homem, quase todos os produtos das artes e dos ofícios visuais podem ser associados a cinco grandes categorias de estilo visual: primitivo, expressionista, clássico, ornamental e funcional.

Quanto ao expressionismo68, Dondis (2007, p. 171) associa-o ao estilo primitivo: “a única

diferença entre os dois é a intenção”. Segundo a mesma autora, o expressionismo tende ao exagero e a distorção da realidade, objetivando “provocar a emoção”. Em sua diacronia, o expressionismo “ultrapassa o racional e atinge o místico, uma visão interior da realidade, saturada de paixão e intensificada pelo sentimento”. Assim entendido, o expressionismo, segundo a mesma autora, ocorreria ao longo do tempo, como na arte gótica medieval, no maneirismo de um El Greco ou mesmo no expressionismo modernista de um Kokoschka (pp. 171-2). O próprio Impressionismo, enfim, não estaria fora do que Dondis categoriza tecnicamente como expressionismo, o que se confirma historicamente, já que o Expressionismo (vanguarda modernista) é um dos ramos de ascendência impressionista.

Do ponto de vista técnico, Dondis (2007, p. 173) relaciona os seguintes traços à diacronia expressionista: Exagero Espontaneidade Atividade Complexidade Rotundidade Ousadia Variação Distorção Irregularidade Justaposição Verticalidade

Observando a pintura de Kiki Lima sob as categorias da sintaxe visual de Dondis, não resta dúvida de que sua obra se alinha tecnicamente ao expressionismo. Apenas o último dos traços acima relacionados seria difícil de apontar na pintura de Kiki Lima. Sendo ele um artista ilhéu, cremos que a horizontalidade do oceano tenha relação fenomenológica com sua composições. Ainda assim, não é a paisagem em si o que o atrai, mas o corpo humano, normalmente disposto verticalmente, quase sempre em movimento, seja o da luta pela sobrevivência (retorno da pesca, comércio, etc.), seja o do batuque ou da morna.

Dondis (2007, pp. 173-5) lembra a oposição diametral entre as técnicas expressionista e clássica. Para a autora, o classicismo é racional, do que decorre a harmonia equilibrada, econômica e previsível de sua produção; já o expressionismo é emocional, do que resulta um estilo que tende ao exagero, ao dinamismo e à imprevisibilidade. Eis os traços por ela pontados para o Classicismo:

Harmonia

68 O termo "expressionismo" aqui empregado por Dondis não vem no sentido sincrônico do Expressionismo (com

inicial maiúscula), ou seja, de uma das vanguardas estéticas do Modernismo. Para a autora, o expressionismo é entendido como um estilo diacronicamente caracterizado pelo domínio da emoção sobre a razão.

Simplicidade Exatidão Simetria Agudeza Monocromatismo Profundidade Estabilidade Estase Unidade

Tais traços, evidentemente, se afastam do estilo de Kiki Lima, que assim dá continuidade ao que já se propunha desde a década de 1930. Vale lembrar que, antes do pintor, os claridosos iniciaram a ruptura com o classicismo estilístico. E afastar-se do classicismo significava distanciar-se do colonialismo estilístico de extração camoniana. Na prática, no dizer de Manuel Ferreira (1986, p. 39) o expressionismo dos claridosos foi estabelecido pela adoção dos versos livres e brancos:

Os sinais da mudança são vários. O abandono dos temas obrigatoriamente europeus, como vinha acontecendo até aí, a renúncia das estruturas poéticas tradicionais (rima, métrica e outras) e a penetração definitiva no contexto humano do Arquipélago: "o drama", "desalento", "tormento", "fome", "tristeza".