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Do ponto de vista semiótico, tanto um poema como uma pintura são textos, evidentemente individualizados por formas distintas de expressão:

Resta ainda um ponto a ser esclarecido nesta rápida exposição da noção de texto: o objeto de estudo da semiótica é apenas o texto verbal ou linguístico? O texto, acima definido por sua

organização interna e pelas determinações contextuais, pode ser tanto um texto linguístico, indiferentemente oral ou escrito - uma poesia, um romance, um editorial de jornal, uma oração, um discurso político, um sermão, uma aula, uma conversa de crianças -, quanto um texto visual ou gestual - uma aquarela, uma gravura, uma dança - ou, mais frequentemente, um texto sincrético de mais de uma expressão - uma história em quadrinhos, um filme, uma canção popular. (BARROS, 1990, p. 8)

Se por um lado um poema e uma pintura se distiguem do ponto de vista da expressão, é perfeitamente possível que tais textos - o linguístico e o visual - coincidam num plano mais abstrato. Se desejamos encontrar pontos comuns entre a pintura e a literatura, o ponto de partida da análise deve ser justamente o lado invisível desses textos, qual seja, a forma de seu conteúdo:

A semiótica sabe da necessidade de uma teoria geral do texto e reconhece suas dificuldades. Por isso mesmo, na esteira de L. Hjelmslev, propõe, como primeiro passo para uma análise, que se faça abstração das diferentes manifestações - visuais, gestuais, verbais ou sincréticas - e que se examine apenas seu plano do conteúdo. As especificidades da expressão, na sua relação com o conteúdo, serão estudadas posteriormente. (BARROS, 1990, p. 8)

Seguindo a semiótica de Greimas ou, mais especificamente, a semiótica visual de Jean-Marie Floch, Antonio Vicente Pietroforte (2004) estabelece uma síntese teórica desses autores e didaticamente aplica esse conhecimento na fotografia, na pintura, na história em quadrinhos, na escultura, na arquitetura e na poesia concreta, considerando-se a cultura brasileira. Segundo Pietroforte (2004, pp. 8-9), Greimas recupera a dicotomia entre plano de conteúdo e plano de expressão de Hjelmslev, dicotomia, aliás, análoga ao signo de Saussure, com o significado e o significante. Greimas denomina a relação entre o plano de conteúdo e o plano de expressão de relação semissimbólica, que pode ser arbitrária (depende do contexto) ou motivada (há um propósito expressivo). Se Greimas estudou essa dicotomia no campo da língua, de modo especial no âmbito da narrativa, Jean-Marie Floch o fez nas artes visuais e na linguagem da publicidade, com destaque para a obra Petites mytologies de l'oeil et de l'esprit. Floch estabeleceu uma articulação entre a categoria greimasiana de semissimbolismo e a categoria da função poética de Roman Jakobson, ou seja, “a projeção do eixo paradigmático no sintagmático”. Ilustrando o pensamento de Floch, Pietroforte (p. 9) dá dois exemplos relacionados com o texto poético, a rima e a metáfora:

Quando no plano de expressão de um texto verbal há uma rima, as relações paradigmáticas estabelecidas entre significantes semelhantes são projetadas no eixo sintagmático; e quando no plano de conteúdo há uma metáfora, são projetadas as relações paradigmáticas estabelecidas entre significados.

Em seguida, Pietroforte (pp. 9-10) reconhece o semissimbolismo no universo pictórico:

Se em uma pintura, por exemplo, as cores quentes são relacionadas a conteúdos do sagrado, e as cores frias, do profano, em seu texto há uma projeção no eixo sintagmático da relação entre os paradigmas que formam a categoria de expressão cor quente vs. cor fria e a categoria de

conteúdo sagrado vs. profano. Assim, toda relação semissimbólica é poética, mas nem toda relação poética é semissimbólica.

E o mesmo Pietroforte (p. 10), citando Floch, arremata: “a semiótica plástica faz parte da semiótica semissimbólica, que por sua vez faz parte da semiótica poética”.

Pietroforte (p. 12) ressalta que o estabelecimento do sentido, numa visão greimasiana, segue uma dinâmica gerativa de natureza lógica indutiva, já que vai de uma abstração (simples e genérica) para uma concretização (complexa e particular). Assim entendido, um texto é uma exteriorização figurativa e particularizada de um conteúdo abstrato, relacionado com valores culturais tomados em sua essência e universalidade. Justamente por ser algo cultural e genérico, um mesmo conteúdo ou tema pode gerar textos ou figurativizações as mais diversas, em grau de complexidade que só depende do que concretiza o plano de expressão. Assim, por exemplo, é o tema da luta do mais fraco contra o mais forte, lembrado por Pietroforte (p. 13): “Da história de Davi e Golias à Revolução Cubana, ele aparece recoberto por figuras diferentes.” Um tema, no entanto, ainda não seria a última abstração possível num percurso gerador do sentido, cuja camada mais profunda e abstrata poderia reduzir-se a uma categoria dicotômica mínima, como, por exemplo, o termo simples vida / morte, entendido nesse modelo teórico como o “nível fundamental”, que se representa graficamente no “quadrado semiótico” (GREIMAS; COURTÉS, 2008, pp. 400-4).

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Gráfico 2 – Quadrado semiótico de Greimas.

Greimas e Courtés consideram irredutíveis as categorias vida/morte para o indivíduo (2008, p. 321; p. 535) e natureza/cultura para a sociedade (pp. 109-10; pp. 336-7), para eles entendidos como “universais semânticos” (pp. 520-4). Trata-se de paradigmas sobre os quais se estruturam os mais diversos temas e, no plano discursivo, as mais diversas narrativas.

A título de exemplo, o tema do êxodo, bastante recorrente na poética (e na história) de Cabo Verde, que representa um programa em que um indivíduo busca como objeto-valor a sua sobrevivência, seria gerado a partir do par vida/morte, como em “Desesperança”, de Ovídio Martins (CL 9, p. 35), quando fala dos “Olhos cheios de secas / e de oceanos / Cheios de mornas / e de pouco milho”; no plano cultural, a afirmação da cabo-verdianidade coloca em prova a dicotomia natureza/cultura, já que representa, na realidade histórica das ilhas, o conflito da afirmação de uma

cultura transplantada sobre ilhas desabitadas por seres humanos, como se pode perceber em “Metamorfose”, de Aguinaldo Brito Fonseca (CL 5, p. 17), quando lembra os primeiros momentos da ocupação de Cabo Verde: “Aquilo não era do homem: / era o fim da terra ou o princípio do céu. // Mas um dia, o homem chegou / cheio de vida, cheio de força, cheio de fé...” Na pintura, um quadro como “Chegada animada”, de Kiki Lima, tanto poderia ser visto segundo a dicotomia vida/morte como pela dicotomia natureza/cultura. No primeiro caso, percebe-se a afirmação da vida, figurativizada semissimbolicamente na representação do alegre reencontro da família, que, no nível da manifestação (plano de expressão), recebe as cores quentes do quadro; no segundo, percebe-se a negação da natureza, relacionada, no nível expressivo, com as tonalidades frias de matizes azulados da metade esquerda do quadro, representativas do exílio, da distância e do mar, ao passo que as cores quentes do amarelo e do púrpura da direita da composição são afirmadas, e essa euforia do pequeno grupo de personagens configura, metonimicamente, a vitória da cabo-verdianidade como fenômeno de enraizamento cultural:

Figura 1 – “Chegada animada” (1998) (LIMA, 2003, p. 64).

No plano figurativo ou expressivo, operam categorias tímicas: euforia, disforia e aforia (GREIMAS; COURTÉS, pp. 462-3). No quadro “Chegada animada”, as cores quentes e o lado direito da composição são euforizados; já o lado de onde vem a personagem que regressa passa por uma disforia, fato relacionado com o uso da cor azul da roupa da personagem e do plano de fundo que a

cerca. Em sua narrativa, o quadro representa a negação da condição de emigrado e a conjunção (GREIMAS; COURTÉS, p. 76) com o objeto perdido: a família cabo-verdiana e a terra natal.