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A cabo-verdianidade em síntese: o retrato falado em “Rapsódia da Ponta-de-Praia”

O poema "Rapsódia da Ponta-de-Praia", do poeta cabo-verdiano Baltasar Lopes, é uma síntese da cabo-verdianidade. Ali está o mar, que emoldura o cabo-verdiano inquieto, que se sente numa prisão insular e deseja evadir-se, migrar, libertar-se.

Alguns traços estilísticos do poema "Rapsódia da Ponta-de-Praia"

Publicado na revista Claridade n.o 5, de setembro de 1947, a "Rapsódia da Ponta-de-Praia"50,

de Baltasar Lopes51 apresenta-se como um políptico52 de quadros anotados das narrativas orais da

região praieira. O poema ocupa a totalidade da página 13, tem estrofação única, versos livres e brancos, com maior número de versos entre quatro e oito sílabas métricas53. O texto forma uma

mancha gráfica de duas colunas.

O fato de os versos serem livres não quer dizer que falte ao poema o senso do ritmo. A maioria dos 93 versos tem esquema ascendente, ou seja, 72 têm pés iambos (o — / átona e tônica) e/ou anapestos (o o — / duas átonas e uma tônica), 17 têm esquema descendente, com pés troqueus (— o / uma tônica e uma átona) e/ou dátilos (— oo / uma tônica e duas átonas)54, e 4 são espondeus (— — /

duas tônicas) . Há inclusive paralelismo rítmico ascendente em muitos trechos, como prova o desenho do pés descendentes da sequência: “Vou fazer serenata" (verso 49: o o — o o — o / dois anapestos), "vou tocar violão" verso 50: (o o — o o — / dois anapestos), "cavaquinho" (verso 51: o o — o / um

49 Esta seção foi apresentada na forma de comunicação no II Encontro Norte / Nordeste de Professores de Literatura

Portuguesa, ocorrido nos dias 1, 2 e 3 de outubro de 2008, na Universidade Federal do Ceará.

50 LOPES, Baltasar (pseud. ALCANTARA, Osvaldo ). "Rapsódia da Ponta-de-Praia". Claridade, São Vicente (Cabo

Verde), n. 5, p. 1-44, set. 1947. p.13. Texto completo no Anexo deste artigo.

51 Quem assina é o pseudônimo Osvaldo Alcantara.

52 Entendemos o poema rapsódico, analogicamente, como um políptico, pois ele apresenta um conjunto de quadros

relativamente autônomos, ligados por contiguidade a uma tema geral.

53 Eis a distribuição das sílabas métricas: 2 sílabas em 5 versos, 3 sílabas e 6 versos, 4 sílabas em 19 versos, 5 sílabas

em 17, 6 sílabas em 18, 7 sílabas em 11 versos, 8 sílabas em 10 versos, 9 sílabas em 1 verso, 10 sílabas em 3 versos, 11 sílabas em 1 verso, 12 sílabas em nenhum verso, 13 sílabas em nenhum verso, 14 sílabas em 1 verso.

anapesto).55

Também não deve enganar o humor dos versos. Se o poema seguisse, pelo fato de ser intitulado como uma rapsódia, o modelo rítmico de Homero na Ilíada, teria tendência descendente (dátilos e troqueus). Uma vez que são predominantemente constituídos de iambos e anapestos, portanto ascendentes, os versos recuperam paradoxalmente a disposição rítmica dos versos da tragédia grega:

O iambo (o —) tem o efeito de prévio estremecimento, de tendência a movimento dramático, por isso é a forma de verso predominante nas tragédias gregas. O anapesto (o o —) impulsiona essa tendência de movimento ao extremo, arrastando o ouvinte a uma espécie de embriaguez de orgia.56

Como o poema é satírico e se apóia num ritmo apropriado à tragédia, o resultado é a negação do caráter heróico das personagens, descritos com humor e amargura.

Outro dado estilístico a considerar diz respeito ao metro do poema. Nesse sentido, o uso do verso livre é diacronicamente análogo à imprecisão do recorte das figuras, característica de estilo impressionista, no final do século XIX. O verso livre insinua-se em 1886 com Rimbaud e com mais abrangência em Whitmann, chegando a constituir obras completas à altura de 1889 até se estabelecer como prática modernista (PROENÇA FILHO, 1991. p. 305). A pintura de Kiki Lima, conforme ele vai amadurecendo estilisticamente, vai saindo de um traço mais realista e delimitado (Figura 10), “Meninos abandonados”, de 1981) para uma imprecisão calculada, que ascendente ao Impressionismo (Figura 11, “Pega queda”, de 2003), ou seja, partiu do "tal como o sinto" da subjetividade expressionista para o "tal como o vejo" da objetividade impressionista (PROENÇA FILHO, 1991. p. 294). Ou ainda, como ensina WÖLFFLIN (1989. p. 23), “a primeira representa as coisas como elas são; a segunda, como elas parecem ser”. Assim procedendo, o pintor sai de si para conferir maior autonomia ontológica ao ser estético ao qual se dedica. A obra vai deixando de ser um pretexto para tornar-se verdadeiramente um texto.

Para WÖLFFLIN (1989, p. 21), existem duas tendências em oposição histórica: a linear e a pictórica. A tendência linear está associada ao Classicismo. Já a pictórica se realiza com a passagem

55 KALOCSAY, kálmán. La klasika metriko kaj Esperanto. La Nica Literatura Revuo, Nice n. 4/5, p. 164-171, maio-

jun. 1959. Original em esperanto: “El la opo de longaj kaj mallongaj tempoj formiĝas la (vers)piedoj. La ĉefaj piedoj estas: duopaj: spondeo (— —), trokeo (— o), jambo (o —); triopaj: daktilo (— oo), anapesto (oo —). Laŭ alia grupigo, oni povas distingi piedojn ascendajn: jambo (o —) kaj anapesto (oo —); / descendajn: trokeo (— o) kaj daktilo (— oo); / neŭtran: spondeo (— —).” Tradução nossa: Do conjunto de tempos longos e tempos curtos formam-se os pés. Os principais pés são: duplos: espondeu (— —), troqueu (— o), iambo (o —); triplos: dátilo (— oo), anapesto (oo —). Conforme seu agrupamento, podem-se distinguir péis ascendentes: iambo (o —) e anapesto (oo —); descendentes: troqueu (— o) e dátilo (— oo); neutro: espondeu (— —).

56 KALOCSAY, kálmán. La klasika metriko kaj Esperanto. La Nica Literatura Revuo, Nice n. 4/5, p. 164-171, maio-

jun. 1959. Original em esperanto: “La jambo (o —) havas la efekton de antaŭsvingiĝo, de drama moviĝemo, tial ĝi estas la reganta versformo de la grekaj tragedioj. La anapesto puŝas tiun moviĝemon ĝis ekstremo, kuntrenante la aŭskultanton en ia bakĥanala ebrio.” Tradução nossa.

para o Barroco. Numa escala gradativa, a ruptura com a linearidade clássica vai culminar no Modernismo, já anunciado, no sentido de negar o limite das figuras e de valorizar as massas coloridas sem fronteira precisa, pelo Impressionismo:

(...) o estilo linear vê em linhas, o pictórico em massas. Ver de forma linear significa, então, procurar o sentido e a beleza do objeto primeiramente no contorno – também as formas internas possuem seu contorno; significa, ainda, que os olhos são conduzidos ao longo dos limites das formas e induzidos a tatear as margens.