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2 CACHOEIRA: CONTEXTO HISTÓRICO E RELIGIOSO DA CIDADE

2.1 CACHOEIRA, CIDADE DO RECÔNCAVO

O Recôncavo da Bahia é uma região cuja formação social decorreu da confluência de diversas matrizes culturais, europeias e negro-africanas, sobretudo. Nesse espaço de dominação e resistência, de rupturas e alianças, de concorrência simbólica, muitas manifestações culturais envolvendo as mais diversas linguagens foram se estruturando ao longo do tempo, enquanto se desenvolvia uma forte religiosidade.

O Recôncavo da Bahia, assim chamado pela sua forma côncava, é o “fértil crescente” que contorna a Baía de Todos os Santos.59 Segundo Milton Santos, o “Recôncavo foi sempre mais um conceito histórico que mesmo uma unidade historiográfica”60, porque a noção do que

é essa região variou ao longo do tempo a depender dos arranjos territoriais, assim como de critérios de análise empregados. As delimitações e os arranjos territoriais, por sua vez, dependem das relações de poder, sejam elas políticas, econômicas ou sociais, e também se relacionam com a identidade dos lugares.

Dessa maneira, Salvador, cidade-porto, era vista como inseparável do “Recôncavo da Baía de Todos os Santos”61, conceito que foi mudando nas últimas décadas. Atualmente, o

Recôncavo é entendido pelo Governo do Estado como território de identidade62, portanto, uma das unidades de referência para implementação de políticas públicas. Compreende 20 municípios63, ocupando uma área de 5.250,51 km², e tinha, em 2010, população total de cerca de 580.000 habitantes.64 (Mapa 1)

59 PEDRÃO, Fernando Cardoso. Novos rumos, novos personagens. In: BRANDÃO, Maria de Azevedo. Recôncavo da Bahia: sociedade e economia em transição. Salvador: Fundação Casa Jorge Amado, 1998. p. 219. 60 SANTOS, Milton. A rede urbana do Recôncavo. In: BRANDÃO, Maria Azevedo (Org.). Recôncavo da Bahia: sociedade e economia em transição. Salvador: Fundação Casa Jorge Amado, 1998. p. 60.

61 BRANDÃO, Maria de Azevedo. Introdução: cidade e Recôncavo da Bahia. In: BRANDÃO, Maria de

Azevedo (Org.). Recôncavo da Bahia: sociedade e economia em transição. Salvador: Fundação Casa Jorge Amado, 1998. p. 29.

62 Em 2006, o Governo do Estado da Bahia, através da Secretaria de Planejamento (Seplan), regionalizou a

Bahia dividindo-a em 26 territórios de identidade, hoje 27, identificados com base na “especificidade de cada região” e “no sentimento de pertencimento”, sobre o qual “as comunidades, através de suas representações, foram convidadas a opinar”. (BAHIA. Secretaria de Planejamento. Disponível em:

<http://www.seplan.ba.gov.br/mapa.php>. Acesso em: 15 jul. 2012.)

63 Cabaceiras do Paraguaçu, Cachoeira, Castro Alves, Conceição do Almeida, Cruz das Almas, Dom Macedo

Costa, Governador Mangabeira, Maragojipe, Muniz Ferreira, Muritiba, Nazaré, Santo Amaro, Santo Antônio de Jesus, São Felipe, São Félix, São Francisco do Conde, São Sebastião do Passé, Sapeaçu, Saubara, Varzedo. (BAHIA. Fundação da Agricultura e Pecuária do Estado da Bahia. Disponível em:

<http://www.faeb.org.br/perfil-de-territorios/reconcavo.html>. Acesso em: 26 jan. 2014.)

64 BAHIA. Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia. Projeções populacionais para a Bahia.

Mapa 1 – Recôncavo da Bahia. Adaptação do Mapa Divisão das Regiões

Econômicas da Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia (SEI).

Fonte: Mapa Divisão das Regiões Econômicas da SEI. Disponível em: <http:sei.ba.gov.brsitegeoambientaiscartogramasregioesecoregioesecohtml>. Acesso em: 7 ago. 2011.

O Recôncavo ocupou posição socioeconômica importante no Brasil Colonial, vez que sustentou parte da economia com a produção de cana-de-açúcar e fumo, e com sua dinâmica atividade comercial. Toda a economia nessa época era mantida por um sistema de poder baseado na mão de obra escrava de africanos e descendentes, que tiveram de se submeter às imposições da cultura dominante branca e ao cristianismo.

De diversos portos situados na costa da África eram embarcados negros para a Bahia, provenientes da África Central e da Ocidental. Este tráfico, entre os séculos XVI e XIX, foi o mais duradouro da diáspora negra para a América. (Mapa 2)

Os primeiros negros provieram de portos na Guiné, muitos dos quais destinados a trabalhar em engenhos de açúcar estabelecidos no Recôncavo da Bahia. No século XVII, predominou a chegada de africanos provenientes da África Centro-Ocidental, das regiões do Congo e de Angola, do grupo linguístico banto; contudo, durante a primeira metade do século XIX, prevaleceu o fluxo para a Bahia de iorubanos, aqui chamados nagôs.

<http://www.sei.ba.gov.br/images/publicacoes/download/projecoes_populacionais/projecoes_populacionais.pdf> . Acesso em: 13 mai. 2014.

Mapa 2 – Tráfico da África para o Brasil entre os séculos XVI e XIX.

Fonte: ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 250.

Mas também aportaram falantes da língua fon e de outras línguas gbe (chamados de jejes no Brasil) (Mapa 3), haussás, nupes (ou tapas), além de indivíduos procedentes de outros grupos étnicos do antigo Reino do Daomé (atual República do Benim) e da atual Nigéria.65

Mapa 3 – “Área dos gbe-falantes e principais grupos étnicos.”

Fonte: PARÉS, Nicolau. A formação do candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia. 2. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007. p. 30.

65 REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835. São Paulo: Companhia

das Letras, 2003. p. 307-308.

NASCIMENTO, Luís Cláudio Dias do. Bitedô: onde moram os nagôs: redes de sociabilidades africanas na formação do candomblé jêje-nagô no Recôncavo baiano. Rio de Janeiro: CEAP, 2010. p. 22-23.

Segundo Áurea Fonseca: “Os jêjes eram os povos adjás, ayozós, os hulas, habitantes do território que compreendia a Costa da Mina propriamente dita (Uidá, Aladá e Minapopo). Eram denominados jêjes também os povos do Norte: salvalus e angolins, todos localizados no país Mahi”.66

O termo “jeje” foi empregado desde a primeira década do século XVIII no Recôncavo da Bahia, já que os registros conhecidos estão relacionados aos escravos dessa região ou dela exportados para outras cidades; mas a origem etimológica do termo está em aberto.67

De acordo com Fonseca:

[...] os nagôs eram os iorubanos, como os povos de Oyó, Ijebu, Egbado, Ijexá, Ifé, etc. Ketu, no entanto, era um reino localizado entre as duas regiões [Daomé e Beni]. Segundo relatos históricos, Ketu era um dos mais antigos reinos da região ocidental africana. A sua fundação remonta ao século X e ficava localizado fronteiro com o reino de Savi, separado pelo rio Okpara, e com a federação Jêje-Mahi e o Daomé a Oeste.68

Para Nicolau Parés, “nagô” (“anagô” ou “anagonu”) era o etnônimo de um grupo de fala iorubá que habitava a região de Egbado, na atual Nigéria, mas que emigrou e se disseminou por várias partes da atual República do Benim. A denominação passou a ter um sentido pejorativo na língua fon, designando uma série de povos de fala iorubá.69

Nos séculos XVII e XVIII, segundo Nicolau Parés, o termo “nação” foi empregado por traficantes de escravos, missionários e oficiais administrativos que atuavam na Costa da Mina, para designar grupos autóctones. Baseados na ideia de identidade coletiva dos estados europeus identificaram como “nações” grupos africanos cuja identidade étnica se baseava em vínculos de parentesco que reconheciam uma ancestralidade comum, o que determinava a identidade religiosa. Outros aspectos desempenhavam papel na formação da identidade coletiva das sociedades africanas, como o linguístico, o territorial e o político.70

66 FONSECA, Áurea Côrtes Nunes de Oliveira. Aspectos do desenvolvimento regional no Recôncavo Sul Baiano: o caso do município de Cachoeira – Bahia – Brasil. Tese (Doutorado em Planejamento Territorial e

Desenvolvimento Regional) – Universidade de Barcelona, Barcelona, 2006. f. 302.

Cf. Mapa “O país Mahi”. (PARÉS, Nicolau, A formação do candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia. 2. ed. Campinas, SP: Unicamp, 2007. p. 39.)

67 PARÉS, Nicolau, 2007, p. 52.

68 FONSECA, Áurea Côrtes Nunes de Oliveira, 2006, p. 302. 69 PARÉS, Nicolau, 2007, p. 47.

Mapas 4 a e b – Território iorubá na Costa da Mina: início do século XIX.

Fonte: PRÁTICAS Religiosas na Costa da Mina: uma sistematização das fontes europeias. Disponível em:

<http://www.costadamina.ufba.br/index.php?/conteudo/exibir/11>. Acesso em: 29 jan. 2015.

Fonte: GRUPO Étnico Yoruba. Publicado por Aulo Barreti Filho. Disponível em:

No Brasil, os africanos recém-chegados viam-se diante de uma pluralidade de denominações de nação, internas ou metaétnicas, que foram rapidamente assimiladas pela operacionalização do regime escravocrata. As nações africanas no Brasil resultam de um processo dialógico em que diversos grupos foram englobados sob algumas denominações.71 Terreiros de candomblé formados no século XIX passaram a ser identificados por “nações” (jeje, nagô, angola etc.).

Uma das cidades que mais se evidenciam no Recôncavo baiano por sua religiosidade, história e patrimônio cultural e artístico é Cachoeira. Situada a cerca de 110 km de Salvador, pelas rodovias BR-324 e BA-101, é ponto extremo de navegação do Rio Paraguaçu. É a sede do município de mesmo nome que também compreende os distritos de Belém da Cachoeira e Santiago do Iguape, assim como diversos povoados.72

O núcleo urbano Cachoeira, que originalmente ocupou o entorno do atual Largo d’Ajuda e adjacências, cresceu a partir do século XVII. A Vila de Nossa Senhora do Porto da Cachoeira foi criada em 1693.73 Segundo seu Termo (1698), ia até o encontro com o Rio Real,

abrangendo muitas localidades. Em 1837 foi elevada a cidade por sua participação política a favor da independência do Brasil.74 No século XVIII e início do XIX, Cachoeira era uma vila

populosa e rica e o aumento progressivo de libertos fez com que bairros residenciais se formassem em zonas afastadas da área urbana, possibilitando a agregação, principalmente, de jejes e nagôs, que fundaram os primeiros núcleos religiosos.75 (Figuras 1 e 2).

71 Ibid., p. 26-27.

72 O município de Cachoeira ocupa 395 km2. Situam-se no município os povoados de Capoeiruçu, Terra

Vermelha, Alecrim, Boa Vista, Tupim, Saco, Pinguela, Murutuba, Bela Vista, Caonge, Calolé, São Francisco do Paraguaçu, Opalma, Padre Inácio, Tibiri e Tabuleiros da Vitória.

(QUEIROZ, Lúcia Maria Aquino de; SOUZA, Regina Celeste de Almeida (Coords.). Caminhos do Recôncavo: proposição de novos roteiros histórico-culturais para o Recôncavo baiano. Salvador: Programa Monumenta/BID/Unesco/Ministério da Cultura, 2009. p. 38.

SANTOS, Jadson dos. Cachoeira: III séculos de história e tradição. 2. ed. Salvador: EGBA, 2010. p. 25.)

73 Termo de Criação da Vila de Nossa Senhora do Porto da Cachoeira. Transcrição publicada no livro: MELLO,

Francisco José. História da cidade de Cachoeira. Cachoeira, 2001. p. 32. (Editado pelo autor).

74 Na segunda metade do século XIX, uma nova dinâmica foi criada com a construção da Ponte D. Pedro II

(1885), ligando Cachoeira a São Félix, esta elevada a vila em 1889 e a cidade no ano seguinte. (BAHIA. Secretaria da Indústria e Comércio. IPAC – BA. Inventário de Proteção do Acervo Cultural da Bahia: monumentos e sítios do Recôncavo. II Parte. Salvador, 1982. v. 3, p. 329.)

Figura 1 – Expansão urbana de Cachoeira. Desenho aquarelado de autor desconhecido, anexado ao manuscrito Memória sobre as espécies de tabaco que se cultivam na vila da Cachoeira (1792), pelo naturalista e juiz de fora Joaquim de Moreira Castro. Acervo: George Arents Collection da New York Public Library, 1792.

Fonte: FLEXOR, Maria Helena Ochi (Org.). O Conjunto do Carmo de Cachoeira. Brasília, DF: IPHAN/ Programa Monumenta, 2007. p. 14. Disponível em:

<http://www.monumenta.gov.br/site/wp content/uploads/2011/05/carmocachoeira1.pdf >. Acesso em: 7 out. 2012.

Figura 2 – Área urbana da cidade de Cachoeira, em 2013. Essa área se expandiu a partir do século XVII com a construção de edifícios religiosos e civis e, no século seguinte, avançou para as encostas.

Foto: Autora

Entreposto comercial situado às margens do Rio Parguaçu, por Cachoeira escoava a produção agrícola da região em direção a Salvador, importante porto na rota do comércio

transatlântico.76 A comunicação terrestre entre Cachoeira e outras regiões ocorria em caminhos que iam de São Félix a Muritiba, seguindo para as Minas Gerais e Goiás; de Belém, ligando o núcleo urbano à parte sul da província; e do Capoeiroçu, em direção à Estrada Real do Gado, por onde eram conduzidas as boiadas do Piauí.77 Na segunda metade do século XIX, uma nova dinâmica foi criada com a construção da Ponte D. Pedro II (1885), ligando Cachoeira a São Félix, esta elevada a vila em 1889 e a cidade no ano seguinte.78