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4 TRAJETÓRIA DE VIDA DOS SEGUIDORES DOS ESCULTORES

4.1 ESCULTORES DA SEGUNDA GERAÇÃO

4.1.3 Os Sobrinhos de Louco e Maluco

4.1.3.2 Doidão

José Cardoso de Araújo (Cachoeira, 13 de outubro de 1950) (Figura 43), apelidado de Doidão ou Doidão Bahia (Figura 44) é filho de Gregório Araújo e Heliodora Cardoso, irmã de Boaventura (Louco) e Clóvis (Maluco). Seu irmão Lourival Cardoso da Silva (Dory) também era escultor. São cronologicamente os mais velhos da segunda geração. Com o falecimento de seus pais, passaram a morar e trabalhar com os tios. José trabalhou com seu tio Jerônimo na fábrica de bombons Santa Bárbara, onde atendia os compradores. Não tardou a ser levado por Louco para Salvador, a fim de ajudar o comerciante Carlos Teixeira no Mercado Modelo, atendendo clientes que iam comprar esculturas de seus parentes.308 Portanto, a sua trajetória desde menino foi marcada pelo contato com a comercialização produtos artesanais.

Figura 43 – José Cardoso de Araújo (Doidão ou Doidão Bahia), Cachoeira, BA, em 2008.

Foto: Autora

308 SANTOS, José Carlos da Silva. Depoimento oral, 9 set. 2011; ARAÚJO, José Cardoso de. Depoimento oral,

Certo dia, Teixeira comprou para José ferramentas e madeira para que ele pudesse esculpir no próprio stand de vendas.309 José adotou o nome artístico “Doidão”, estabelecendo

elo com os apelidos adotados por seus tios, cujos trabalhos estavam sendo bem aceitos pelos turistas. Cedo constituiu família. Foi casado com uma artesã, que faleceu precocemente, com quem teve dois filhos310.

Figura 44 – Assinatura de Doidão (José Cardoso de Araújo) na escultura Nossa Senhora da Paz. h = 0,96 m. Exposta na Câmara de Vereadores de Cachoeira, BA, em 2014.

Foto: Autora

Em 1974, participou de uma exposição no Teatro Casto Alves, organizada pelo Setor de Artesanato da Secretaria do Trabalho e Bem Estar Social do Estado da Bahia. Nessa ocasião, conheceu a escultora Mercedes Kruschewsky, professora de Escultura e Modelagem da Escola de Belas Artes (UFBA), que deixava a direção dessa unidade e passava a dedicar-se à coordenação do referido Setor de Artesanato, atuando entre 1975 e 1979. Era o governo estadual Roberto Santos e Kruschewsky recebeu muito apoio para dar atenção às comunidades de artesãos da capital e do interior. Foram realizadas mais quatro exposições, todas no foyer do TCA, local de grande visibilidade naquela época, das quais Doidão participou.311

No encontro de Doidão com Mercedes Kruschewsky, ela lhe falou sobre o Curso Livre da EBA, o que o levou a frequentá-lo, mas por pouco tempo. Doidão compreende que houve um cuidado dela para que ele não se afastasse de seu “estilo” e que foi aconselhado pela professora a seguir seu próprio caminho.312 De fato, nessa época (anos 1970), alguns professores da EBA tinham a preocupação de evitar que o ensino acadêmico inibisse artistas considerados “primitivistas” ou “ingênuos” que procuravam a Escola.

309 COIMBRA et al., 2010, p. 136. 310 Loc. cit.

311 KRUSCHEWSKY, Mercedes Kauark. Depoimento oral, 8 abr. 2014. 312 ARAÚJO, José Cardoso de. Depoimento oral, 8 jul. 2008.

Nos anos 1970, Doidão trabalhou para o artista plástico Carybé313, que riscava as peças e formava equipes para executar trabalhos de grandes formatos. Apesar de oportunidades como esta surgidas em Salvador, não se desligou totalmente do interior, onde sempre ia obter matéria-prima, mas seu retorno para Cachoeira ocorreu em 1978, quando seu tio Louco já era bastante conhecido e a escultura era uma referência consolidada para os visitantes.314 Instalou, então, seu primeiro ateliê em Cachoeira (Figura 45).

Figura 45 – Fachada do “Atelier do Doidão” em Cachoeira, BA, nos anos 1980.

Fonte: LODY, Raul; SOUZA, Marina de Mello e. Artesanato brasileiro: madeira. São Paulo: Instituto Nacional do Folclore e Funarte, 1988. p. 198.

A admiração pelo trabalho de Louco e Maluco sempre foi cultivada por Doidão315, que foi conquistando, cada vez mais, a confiança do tio mais velho. Este contou com a experiência do sobrinho na articulação de encomendas e comercialização de seus trabalhos.

Nos anos 1980, José Cardoso uniu-se a Magali Oliveira Santos – perfilhada por Julinda e Aloysio Berto da Silva, proprietários do Bar Cabana do Pai Thomaz –, com quem teve mais duas filhas e um filho. Tem mais um filho de uma relação mantida nos anos 1980 e uma filha da sua relação atual.

No Litoral Norte da Bahia, as suas esculturas foram valorizadas ao ser vendidas a turistas estrangeiros. Nessa região, Doidão fez uma exposição no Hotel Guarajuba, perto de Praia do Forte, no início dos anos 1980. Nessa oportunidade, Klauss Peter o convidou para abrir um ateliê na Praia do Forte, localidade que tinha apenas casinhas de palha, onde não passava carro, mas os grandes investimentos foram crescentes, atraindo turistas de toda parte. Doidão acompanhou o crescimento da vila desde 1981. Ele contou:

313 Hector Julio Páride Bernabó, Carybé (1911-1997).

314 ARAÚJO, José Cardoso de. Depoimento oral, 10 mai. 2013. 315 Cf. COIMBRA et al., 2010, p. 136.

Antigamente meu ateliê era na vila. Levei 31 anos na vila trabalhando. Porque, antes de Sr. Klauss criar o hotel famoso hoje, ele tinha uma pousada – Pousada Praia do Forte. A gente ia para lá, mandava comprar peixe para nós. Ele adorava nossos trabalhos.316

Klauss Peter foi seu maior incentivador, marcou a sua trajetória. O escultor passou a viver entre Praia do Forte e Cachoeira. Para se ocupar das vendas em Praia do Forte, colocou seu irmão Adalberto Araújo (Pretinho), o que garante a sua mobilidade.

Na escultura, os principais trabalhos de Doidão se reportam ao tema orixá, que aparece nas representações de vulto inteiro, relevos e móveis. Também tem uma produção de imagens de Cristo, santos, irmãs da Boa Morte, carrancas etc. O escultor é bastante interessado pela simbologia das representações e demonstra gostar das peças em grandes formatos (Figura 46), o que exige esforço físico, ajudantes e logística.

Figura 46 – ARAÚJO, J. C. de (Doidão). Oxalá e cabeças de orixás. Escultura de madeira. h = 2,5 m. Exposta na Câmara de Vereadores, Cachoeira, BA, em 2014.

Foto: Autora

Em Praia do Forte, esculturas representando tartarugas e móveis decorados com esse motivo317 constituíram uma demanda paralela aos trabalhos sobre temas da religiosidade, muito vendidos nessa localidade.

Além do ateliê no Alecrim, Doidão mantém um espaço situado no centro da cidade, na Rua Ana Nery. Possui licença para exportar trabalhos. Toda a sua aplicação à escultura e disposição para o comércio lhe propiciaram uma condição financeira boa.

Quanto ao contato com terreiros de candomblé, os filhos de Gregório e Heliodora acostumaram-se a assistir festas na infância, levados por uma tia.318 Hoje a visão de Doidão é extremamente eclética e a sua experiência religiosa mais recente foi na Igreja Católica Apostólica Brasileira, que rompeu com a Igreja Católica Apostólica Romana por discordar do celibato do sacerdote. Segundo José Cardoso:

Hoje acredito em todas as religiões. Fui presidente da Igreja Católica Apostólica do Brasil em 2002. Faço parte da irmandade. Essa igreja tem como chefes São Cosme e São Damião. Seu bispo é Dom Roque. Do Candomblé, recebo encomendas de cadeiras e ferramentas. Desde criança ia ao Candomblé de Dona Filhinha, da Feira.319

Em Cachoeira, Roque Nonato Cardoso, que era coroinha da Igreja Católica Apostólica Romana e hoje bispo da Igreja Católica Apostólica Brasileira, foi o primeiro representante, na cidade de Cachoeira, dessa cisão do catolicismo. Ele instalou-se na capela dedicada a São Cosme e São Damião, no Cucuí, onde já havia a comunidade devota a esses santos, que também frequenta terreiros de candomblé.320 José Cardoso, além de membro da Igreja, foi presidente da Irmandade Jesus por Maria, tendo organizado a festa dessa irmandade em 2002.321

Sobre seu pertencimento raça/cor, Doidão foi categórico: “Não sou negro nem branco, sou pardo. A minha pele é avermelhada. Na família tem tipos que lembram índio. Em Cachoeira, o negro predomina”.322 Tem plena consciência da importância da cultura de matriz

africana para Cachoeira. Sobre arte, ele disse que: “Logo que veio a descoberta do trabalho com raízes, logo, chamou para o afro. Talvez porque tenhamos nascido no contexto”.323

317 A tartaruga tornou-se imagem simbólica da localidade, principal lugar de desova das tartarugas marinhas no

Brasil e uma das sedes do Projeto Tamar, voltado para a conservação de espécies ameaçadas de extinção.

318 SANTOS, Bernadete Moreira. Depoimento oral, 5 jul. 2012. 319 ARAÚJO, José Cardoso de. Depoimento oral, 8 jul. 2008. 320 PINTO, Anderson. Depoimento oral, 22 jan. 2014.

321 A Igreja Católica Apostólica Brasileira em Cachoeira mantém o culto em latim como era antes na Igreja

Católica Apostólica Romana e segue um calendário de culto aos santos diferente do da Igreja Católica Romana.

322 ARAÚJO, José Cardoso de. Depoimento oral, 10 mai. 2013. 323 ARAÚJO, José Cardoso de. Depoimento oral, 8 jul. 2008.

Doidão investiu na organização de suas próprias exposições individuais, o que contribuiu para seu reconhecimento artístico. Expôs em Salvador324, Cachoeira325, Itabuna326, Camaçari327 e na Praia do Forte328. Também realizou individuais no Rio de Janeiro, na Galeria Painel (1973) e nas Docas (exposição patrocinada pela Petrobras) (1987); em Recife, na Galeria Nega Fulô (1977); em Belo Horizonte, na Galeria Kid Cabeleira (1981); em Belo Horizonte, no Hotel Itacimirim (1994); e, em São Paulo, na Pousada Pedra Grande (1997), na cidade de Atibaia.

Doidão participou da “Exposition Internationale d’Art” (1985), no Musée de l’Homme, em Paris. Teve trabalhos expostos na Pré-Bienal de Cultura e Arte Negra (1986), no Museu Afro-Brasileiro (MAFRO-UFBA); na I Bienal de Arte Negra, no MAB (1987); e na II Bienal de Cultura e Arte Negra (1992), realizada em Salvador, com extensão em Cachoeira.

Em matéria de jornal da época329, segundo seus organizadores, a I Bienal de Cultura e Arte Negra abrangia seminário sobre os rumos e um balanço da produção artística negra brasileira, associada ao povo, além de ter como objetivo abrir espaço para novos artistas. Notamos que esta e outras exposições, que categorizam os objetos como “arte negra”, se integram a eventos em que há debates sobre a questão do negro na sociedade brasileira. Segundo matéria de jornal veiculada sobre a I Bienal de Cultura e Arte Negra: “[...] é uma proposta ambiciosa que pretende polemizar e estimular a conscientização dos artistas e da própria comunidade para a realidade sócio-cultural em que o negro está inserido”330.

Além de ter tomado parte em coletivas em Cachoeira, Ilhéus, Porto Seguro e Salvador, Doidão também teve trabalhos expostos nas primeiras Bienais do Recôncavo (1991, 1993, 1996 e 1998), promovidas pela Fundação Dannemann, e tem trabalhos espalhados em diversos países.

Depois de organizada a Associação de Artistas Plásticos e Animadores Culturais de Cachoeira, que contou com a disposição de Raimundo Cerqueira para mobilizar os artistas locais, Doidão foi escolhido para ser seu presidente em 1987, assim como foi eleito

324 No foyer do Teatro Vila Velha (1968) e do Teatro Castro Alves (1974), no Instituto Mauá (1976), na Tereza

Galeria de Arte (1977), na Ordem Terceira do Carmo (1978), na Associação Cultural Brasil-Estados Unidos (ACBEU) e no Museu da Cidade (1979).

325 Na Galeria SPHAN-Pró-Memória (1981), na Chácara Vila do Alecrim (1988), na Galeria do IPAC (1991), na

Pousada do Convento do Carmo (1992) e na Câmara de Vereadores (1997).

326 Na Câmara Municipal (1987). 327 No Hotel Canto do Mar (1989).

328 No Salão de Exposições da Fundação Bahia (1990) e no Hotel Praia do Forte (1996).

329 I BIENAL de Cultura e Arte Negra. Tribuna da Bahia. Salvador, 30 set. 1987. Variedades, p. 2. 330 Loc. cit.

novamente em 2007, o que demonstra seu interesse pela organização do segmento artístico na cidade de Cachoeira em diferentes momentos.

É importante situar que a Associação de Artistas e Animadores Culturais de Cachoeira foi, formalmente, fundada em 15 de maio de 1987, na semana do dia 13 de maio, data da Abolição da Escravatura. Nessa ocasião, houve uma programação com seminários e exposições de arte como forma de protesto contra a desigualdade racial ainda vigente no Brasil. Em vez de se render homenagem à Princesa Isabel, que assinou a Lei Áurea, seus participantes prestaram homenagem às irmãs da Boa Morte de Cachoeira, que, no século XIX, foram responsáveis pela alforria de muitos escravos. Vários espaços foram ocupados com exposições: área do Convento do Carmo, sala do SPHAN e a Praça d’Aclamação. Aconteceu, nessa ocasião, o seminário “Libertação, mito, qual a realidade?”, com a participação de sociólogos, historiadores, entre outros, assim como de representantes de entidades da cultura negra331, vindos de Salvador. A programação abrangeu também música e dança, envolvendo grupos culturais da cidade.332

Em outros momentos, a AAACC fez parcerias e organizou eventos importantes que colocavam o negro como sujeito do debate. Esses eventos foram coordenados por amigos de Doidão, que ocuparam a gestão da AAACC. Em 1994 e 1996, Ivan de Oliveira, com apoio da UFBA, organizou as Bienais de Arte Negra (BIENAN) e, na gestão de Davi Casaes Rodrigues, foram realizados os Seminários da Consciência Negra.

Em 2011, Doidão foi eleito representante da categoria Artesanato no Conselho Municipal de Cultura; atua como radialista, profissão que exerceu alguns anos quando morou em Salvador e retomou há cerca de um ano na cidade de Cachoeira. Tem vontade de desenvolver o projeto para a fundação de mercado de arte que venha a contribuir para a melhoria das condições de comercialização dos trabalhos dos artistas da cidade.

331 Esse evento foi apoiado pela Secretaria de Cultura do Estado. Participaram o sociólogo Manoel Almeida; o

historiador João José Reis; João Jorge, representando o Movimento Cultural e Bloco Afro-Olodum; e Zulu, da Fundação Cultural do Estado.

332 LIBERTAÇÃO, mito, qual a realidade? (Em questão a posição do negro). Correio da Bahia. Salvador, 13