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2 CACHOEIRA: CONTEXTO HISTÓRICO E RELIGIOSO DA CIDADE

2.2 CACHOEIRA: ESPAÇO DE CONCORRÊNCIA SIMBÓLICO-RELIGIOSA

2.2.1 O Culto a Nossa Senhora da Boa Morte

Na Bahia barroca, os santos passaram a ser objeto de adoração mais do que de veneração, crendo-se que as imagens tinham caráter sagrado e delas emanava poder.79 Muitos

fiéis passaram a manter uma relação próxima com seus santos de devoção, a que recorriam nas horas difíceis, faziam promessas, pediam e agradavam quando alcançavam alguma graça. A imposição da religião católica desde o século XVII, na região do Recôncavo, não poupou os africanos, que tiveram de erigir templos, cultuar santos católicos, participar de cultos, festas e procissões. A fim de aumentar seu número de seguidores, o Ocidente Católico valeu-se do uso de imagens pintadas e depois esculpidas, como recurso que ajudaria a ensinar

76 Ibid., p. 37.

77 IBGE. Cachoeira. Histórico. Disponível em:

<http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/dtbs/bahia/cachoeira.pdf>. Acesso em: 6 jan. 2013.

78 BAHIA. Secretaria da Indústria e Comércio. IPAC – BA. Inventário de Proteção do Acervo Cultural da Bahia:

monumentos e sítios do Recôncavo. II Parte. Salvador, 1982. v. 3, p. 329.

79 PINTO, Tânia Maria de Jesus. Os negros cristãos católicos e o culto aos santos na Bahia Colonial.

a doutrina e atrair pagãos, levando-os a se converter ao catolicismo. Esse instrumento utilizado desde a Idade Média ganhou força nas colônias católicas lusitanas. No Brasil, o culto aos santos se perpetua.

A constituição de irmandades de leigos desempenhou o papel legitimador da ascensão social e da religiosidade de brancos, negros e pardos desde o período colonial no Brasil, mais particularmente no Recôncavo da Bahia. A identificação dos negros e descendentes com santos católicos podia estar fundada na cor da pele, mas, sobretudo, nas suas necessidades materiais, sociais e espirituais.80

Apesar do processo de catolização, nem todos abandonaram o culto a suas divindades de origem africana. No século XIX, o candomblé formado em Salvador e no Recôncavo da Bahia, resultante do contato entre africanos de diversas etnias, passou a ser alvo de perseguições.

Entre as irmandades de negros e descendentes de Cachoeira, mantém-se em atividade a Irmandade da Boa Morte. No final dos anos 1980, houve uma tentativa de unificar as Irmandades de Bom Jesus dos Martírios, de Bom Jesus da Paciência e de Nossa Senhora do Rosário do Monte Formoso, relevantes no século XIX, mas suas atividades foram interrompidas81. Nesse mesmo decênio, a Irmandade da Boa Morte sofreu pressões do

segmento eclesiástico católico por sua postura, a ponto de romper laços com a Igreja, de forma litigiosa, mais tarde recuperados.

O culto a Nossa Senhora da Boa Morte82 acontece em várias cidades do Recôncavo da Bahia, como Santo Amaro, Maragojipe, São Gonçalo, além de Cachoeira. A devoção em Cachoeira data do século XIX, é realizada por uma associação composta exclusivamente por mulheres negras, com mais de meia idade, tradição que se mantém. Elas tinham, naquela época, o objetivo de ajudar escravas a obter alforria, além de socorrê-las em suas necessidades, seguindo o princípio desse tipo de associação.

80 Entre essas irmandades religiosas fundadas em Cachoeira, está a Irmandade de Nossa Senhora do Amparo,

constituída de “homens pardos” no final do século XVII. No século seguinte, foram instituídas a Irmandade de Nosso Senhor Bom Jesus dos Martírios, no Convento do Carmo, composta por africanos da nação jeje; e a de Nosso Senhor Bom Jesus da Paciência, constituída por crioulos, ambas compostas por homens e mulheres. Além destas, surgiram outras, como a Irmandade de São Benedito, criada em 1818; a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário do Santíssimo Coração de Maria do Monte Formoso (“do Rosarinho” ou “dos Nagôs”), formada por crioulos e africanos, que construíram um cemitério (1864) contíguo à sua igreja; e a Irmandade da Boa Morte, constituída no século XIX.

81 PINTO, Anderson Luiz de Jesus. Depoimento oral, 22 jan. 2014.

82 A vida de Maria, citada em textos apócrifos, foi relatada na Idade Média. Segundo versão dada pela literatura

cristã, Maria, depois de morta, teve seu corpo preservado. Fechou os olhos na terra para abri-los no céu, de forma definitiva, com o seu filho Jesus Cristo. O Oriente chama a esse momento de “Dormição” e o Ocidente latino, de Festa de Nossa Senhora da Glória, da Vitória, da Assunção (THÉO. L’ Encyclopedie Catholique pour Tous. Paris: Droguet et Ardent Fayard, 1993, p. 203 apud COSTA, Sebastião Heber Vieira. A Festa da

Segundo Luís Cláudio Nascimento, a Virgem Maria na sua morte e assunção corporal se tornou modelo da “arte de morrer” ou da “boa morte” para o cristianismo oriental, o que foi passado ao mundo católico ocidental, chegando a Portugal e ao Brasil, onde o culto à Virgem Maria ganhou relevância.

Há controvérsias sobre a origem da Irmandade da Boa Morte em Cachoeira. A tradição oral e a maioria dos autores consideram que se deu na Igreja da Barroquinha, em Salvador83, mas o historiador Luís Cláudio Nascimento, inicialmente partidário dessa hipótese, levantou a possibilidade de uma origem local84.

Segundo a tradição oral, desde a origem da associação, as irmãs, em sua maioria, são membros importantes de terreiros de candomblé. Essa ligação, que aparece de forma explícita ou velada, faz parte da história, logo, essa devoção católica não impediu que as irmãs mantivessem vínculos com a sua ancestralidade africana. Para os adeptos do candomblé, o poder de Nossa Senhora é comparado ao poder de Nanã Burucu, a responsável no sistema nagô pela transição do corpo material do Ayiê (mundo físico) ao Orum (mundo espiritual). Nesse sistema, a morte é a passagem espiritual, quando se completa o ciclo da vida.85

Celebrada entre os dias 13 e 15 de agosto, data dedicada à assunção de Maria, as procissões são o ponto alto nas festas aos santos católicos por seu caráter performático, o limiar do templo é rompido para que o espaço da rua seja pisado pelos fiéis que, carregando santos sobre andores, atravessam as ruas da cidade, ao som das filarmônicas locais Lyra Ceciliana e Minerva Cachoeirana.

83 O primeiro a escrever que a Irmandade da Boa Morte surgiu na Igreja da Barroquinha (Salvador), por volta de

1820, com o objetivo de louvar a Nossa Senhora da Morte e da Glória foi Odorico Tavares no livro Bahia: imagens da terra e do povo, publicado pela José Olympio Editora em 1951. Segundo Renato da Silveira: “Na década de 1820 também foi fundada na Igreja da Barroquinha, por um grupo de africanas ‘do partido-alto’, pertencentes à Irmandade dos Martírios, a devoção de Nossa Senhora da Boa Morte, que organizava sua procissão no dia 15 de agosto [...]”. (SILVEIRA, Renato da. O candomblé da Barroquinha: processo de constituição do primeiro terreiro baiano de keto. Salvador: Maianga, 2006. p. 524.)

84 Para Luís Cláudio Dias do Nascimento, mulheres do “partido alto”, filhas de africanos e africanas, moradoras

da Recuada e donas de quitandas na atual Rua Ana Nery, foram responsáveis pela institucionalização da Irmandade da Boa Morte. Elas eram também membros dos principais terreiros de candomblé, não apenas de Cachoeira, mas de São Félix e Maragojipe. (NASCIMENTO, Luís Cláudio Dias do, 2010, p. 97-98.)

85 BARBOSA, Magnair Santos. Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte: entre o Aiyê e o Orum. In: BAHIA.

Secretaria de Cultura. Instituto do Patrimônio Artístico Cultural. Festa da Boa Morte. 2. ed. Salvador, 2011. p. 63-65. (Cadernos do IPAC, 2).

Figura 3 – Imagem de Nossa Senhora da Boa Morte. Irmandade da Boa Morte, Cachoeira, BA, em 2011.

Foto: Autora

O espaço celestial deixa de ser aquele reproduzido no teto do templo representando a abóbada celeste para ser a atmosfera, pensada como infinito – o céu, para os católicos, ou o Orum, para os adeptos do candomblé. São momentos importantes para a exteriorização da fé. (Figura 4)

Figura 4 – Fotografia Procissão da Assunção de Maria, na Festa da Boa Morte, publicada no jornal A

Tarde, em 1985, acompanhada da legenda: “Como ocorre todos os anos, tradicionalmente, as irmãs da

ordem, vestidas a rigor, acompanham a procissão do enterro”.

Fonte: ALVORADA festiva abre Festa da Boa Morte em Cachoeira, amanhã. A Tarde, 10 ago. 1985. Municípios, p. 2.

A Festa da Boa Morte fez convergir o culto à morte e o culto à vida. Ela atrai para Cachoeira um grande número de turistas, por ser uma manifestação de grande plasticidade, sendo cada detalhe bem cuidado, desde a arrumação das imagens que desfilam nas procissões à indumentária portada pelas irmãs.