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Cadências no período Galante

No documento ANAIS ISSN (páginas 133-144)

A perspectiva analítica com base nas schemata proposta por Gjerdingen (2007), se baseia no movimento das vozes externas e suas respectivas figurações, somadas ao seu valor e posicionamento métrico. Além disso, também se leva em consideração a posição em que estas agem dentro da ideia da forma musical e define como estes recursos estão posicionados em uma determinada obra. A base fundamental do argumento é o vínculo destes esquemas ao projeto discursivo empenhado pelo compositor que, concomitantemente à percepção cultural, estabelecem fundamentos significativos. Assim, a análise de cadências inserida nessa perspectiva deve se fixar no contorno melódico que se converge na intenção de obter diferentes efeitos musicais e significativos. Destarte é possível uma analogia entre cadências à pontuações discursivas e neste sentido “pode-se comparar a cadência completa a um ponto no final de uma frase e a meia

cadência a dois pontos ou ponto de interrogação” (GJERDINGEN, 2007, p. 156). Para melhor definir esta ideia, Gjerdingen (2007) apresenta dois autores contemporâneos ao período galante.

“Em 1797, Vincenzo Manfredini (1737-1799) escreveu que ‘cadência significa um fim ou estado de repouso... [Que pode] servir não apenas para terminar uma composição inteira, mas também para encerrar uma frase ou período musical, sendo esse o caso, a música, como o discurso verbal, tem frases, períodos, sinais de pontuação de todos os tipos, digressões etc.’ Manfredini estava expressando uma noção difundida. Alexander Malcolm (1687-1763) fez as mesmas considerações no início do século, quando declarou que ‘por fechamento ou cadência significa encerrar ou levar uma melodia a um período ou descanso, após o que começa e expõe novamente, o que é como o acabamento de um propósito distinto em uma oração’” (GJERDINGEN, 2007, p. 155-156).

Herdadas da tradição medieval, onde o movimento melódico determinava encerramentos chamados Clausulas , termo que na época era utilizado para definir figuras melódicas que transmitiam um sentido de fechamento ou finalização e posteriormente passou a se relacionar a fórmula que envolve duas vozes em contraponto e adiante às sucessões de acordes que envolviam as diversas vozes, de tessituras polifônica e homofônica (GJERDINGEN, 2007), as cadências do período galante recebem as classificações conforme tais ocorrências melódicas no baixo. É a partir da clausula formalis perfectissima , em seu modelo de quatro vozes, que surgem tais classificações: quando o baixo executa o que é esperado ( - ), a cadência se classifica como clausulae perfectissimae; se o movimento esperado do soprano ( - ) ocorre no baixo, recebe o nome de clausulae cantizans, como uma clausula semelhante ao cantus; se ( - ) clausulae tenorizans, lembrando que este deve ser um movimento descendente de um tom; e por fim o movimento ( - ), clausulae altizans, que possui meio tom no modo maior e um tom no menor.

Os professores do período se valiam das mesmas ideias para transmiti-las de forma eficiente aos seus alunos. Assim, com base nos partimentos napolitanos, as cadências podem significar tanto o fechamento de uma determinada fórmula, quanto a primeira estrutura tonal significativa (SANGUINETTI, 2007). Nos cadernos de partimento de Fedele Fenaroli (1775), considerado um dos mais importantes nomes da escola napolitana, são encontrados três tipos de cadências com a clausulae perfectissimae, ou seja, baixo - (figura 1), nomeadas como cadenze semplici (cadência simples), que necessita de uma unidade métrica no quinto grau com a figura 53; cadenze composte (cadência composta), onde há uma divisão na unidade métrica do soprano, ou seja, as figuras 54 e 53 respectivamente. Giovanni Furno (1817), um importante mestre da escola napolitana, apresenta uma variação com a figura 64 na primeira unidade métrica. Esta variação é encontrada com bastante proeminência na obra do Pe. José Maurício, como veremos posteriormente. Por fim, a cadenze doppie (Cadência dupla), que era utilizada no fechamento de diversos partimentos e que também era utilizada com o mesmo fim pelos compositores do período.

Figura 1: Cadências: simples, composta e dupla Fonte: O autor

Para uma compreensão do funcionamento de certas cadências, vamos agora para o caso de José Maurício Nunes Garcia: a recorrência de esquemas e por consequência, cadências galantes, é mais um dos elementos que demonstram como sua obra é herdada desta tradição. Na figura 2 apresentamos o fechamento do primeiro movimento da Missa São Pedro de Alcântara que, entre os compassos 50 e 52 é possível visualizar uma cadência composta. A unidade métrica é a semibreve e são necessários dois compassos para a construção da cadência. O movimento - encontra-se na voz “Alto” e a figura do acorde é 64 seguido por um 53, há, portanto, uma variação nesta cadência, seguindo o modelo de Furno (1817). Encontramos uma recorrência deste formato da cadência composta ( 64 - 53 ) na Missa Pastoril, nos compassos 33~34, quando temos uma tonicização para Sol maior e 49~50 (figura 3) na tonalidade original em Dó maior. Neste trecho, a cadência composta faz parte do movimento que leva a cadência imperfeita, caracterizada pela melodia utilizando-se do movimento característico - , sobreposta ao baixo - - .

Figura 2: Cadência Composta; Compassos 50~52 da Missa São Pedro de Alcântara.

Fonte: O autor

Figura 3: Cadência Composta; Compassos 49~50 da Missa Pastoril.

Fonte: O autor

Nos exemplos acima mostra-se que há, portanto, um âmbito contrapontístico que é preciso observar para a compreensão desse tipo de fechamento. Assim, é necessário vincular além do baixo, que nos fornece uma classificação pela clausula, o papel que a melodia fará no momento da cadência. Isso fará com que o compositor obtenha sucesso na transmissão da ideia de pontuação que falamos anteriormente. Assim, nos compassos 41~43 da missa de São Pedro de Alcântara (figura 4), temos uma outra cadência com a clausula perfectissima, a cadência imperfeita.

Apresentada no exemplo anterior e caracterizada pelo movimento do baixo - - . Diferente da figura 3, em que a melodia faz o movimento - , o compositor utiliza uma variação com o schema Dó-Ré-Mi ( - - ). Esta cadência se diferencia da perfeita justamente por não finalizar no (melodia), dando uma ideia incompleta para esta. A cadência perfeita é vinculada o schema Mi-Ré-Dó.

Figura 4: Cadência imperfeita; Compassos 41~43 da Missa São Pedro de Alcântara.

Fonte: O autor

Nesta missa, temos uma cadência nomeada por Gjerdingen (2007) como convergente (converging). Este schema recebe este nome por se caracterizar pelas duas vozes que se movimentam em direções opostas, com o baixo ascendente - -# - e a melodia descendente - - - , convergindo-se à um ponto central na região da dominante, exercendo assim a ideia de uma semicadência. Na figura 5, vemos como José Maurício tece tal esquema na obra de maneira habilidosa, fazendo uma mudança de vozes da melodia superior; uma descida que se inicia no soprano e finaliza no alto.

Figura 5: Cadência convergente; Compassos 22~24 da Missa São Pedro de Alcântara.

Fonte: O autor

Como é de se esperar de um compositor como José Maurício, há em suas obras um uso versátil e bem articulado de cadências que entram nos jogos composicionais como ferramentas discursivas bem elaboradas - por isso a recorrência de variações em meio aos esquemas -, a partir de um uso consciente das clausulae e articulações de seus efeitos a partir da construção melódica sobre elas.

Entre as cadências com a clausulae cantizans ( - ), encontramos com maior frequência uma chamada comma, ideal para a compreensão desta articulação discursiva. Este schema é caracterizado pelo movimento ascendente do Baixo ( - ) e pela melodia caminhando descendentemente pelo - - ; em algumas passagens pode-se usar apenas - . Como a própria nomenclatura já define, esta cadência cria uma “pequena inflexão que, como uma vírgula, separa uma unidade sintática do que virá a seguir (GJERDINGEN, 2007, p. 156), sendo um schema diversas vezes utilizado nas três missas analisadas, com alguns momentos de até duas commas em sequência.

Na missa São Pedro de Alcântara ela ocorre nos compassos 10-11 em sua forma mais pura, como mostra a figura 6. Vale salientar que neste exemplo ela precede uma Mi-Ré-Dó que é uma continuação muito comum para este tipo de cadência, já que esta faz parte da cadência de fechamento, ou seja, a comma transmite uma ideia de vírgula para a proposta discursiva ser encerrada logo em seguida pela finalização perfeita da cadência simples.

Figura 6: Comma; Compassos 10~11 da Missa São Pedro de Alcântara.

Fonte: O autor

Já na missa Pastoril (figura 7) temos um baixo pedal na tônica, que é uma característica importante do gênero expressivo conhecido como pastoral, sobre o qual toda a missa vai se fundamentar. Assim, a clausula cantizans característica da comma, aparece no segundo violoncelo. O vínculo do baixo com a melodia e o seu papel de respiração, contínua a ser percebido como resultante do papel deste schema. Respeitando este formato, a comma ocorre entre os compassos 4 e 5, que estão exemplificados na figura, além dos compassos 6~7, 19~20, 21~22 e 51~52.

Quando nos voltamos para a missa de Santa Cecília, identificamos a comma diversas vezes e nos compassos 14~15 (figura 8), apresentamos esta cadência desempenhando o seu papel de uma pausa momentânea, além de preceder a finalização com um Mi-Ré-Dó, ou cadência perfeita. Devemos salientar que neste trecho o compositor se vale do movimento das cadências na representação do texto, esquivando-se assim, do uso de uma figura retórica. Outros exemplos desta cadência podem ser encontrados nos compassos 26 e 35~36.

Figura 7: Comma; Compassos 4~5 da Missa Pastoril.

Fonte: O autor

Figura 8: Comma; Compassos 14~15 da Missa de Santa Cecília.

Fonte: O autor

Com a atuação analítica sobre os esquemas cadenciais evidenciados na obra de José Maurício, fica, além de demonstrado seus usos, exemplificado a metodologia da análise de schemata. Com isso, apresentamos duas tabelas nas quais demonstramos uma síntese das principais cadências do período galante classificadas em relação às suas clausulae. Na tabela 1, temos as cadências galantes utilizadas neste estudo incipiente e na tabela 2, as demais cadências que utilizamos nos estudos sobre a obra do compositor e que farão parte de trabalhos posteriores.

As bases para a classificação da melodia, do baixo e do baixo figurado foram extraídos do ex. 11.52 de Daube (1756) exposto no livro de Gjerdingen (2007, p. 172), além das outras classificações deste autor.

Tabela 1: Cadências classificadas conforme a clausula neste trabalho.

Tabela 2: Outras cadências classificadas conforme a clausula e utilizadas em análises de obras do período.

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Fonte: O autor

Conclusão

Há, na musicologia latina um claro défice de análises sistemáticas em cima de partituras/

obras que corroboram para um acúmulo acadêmico e consequentemente para o desenvolvimento de pesquisas que necessitam de um campo mais amplo de visualização. É sobre uma grande carga analítica e epistemológica que tal campo floresce em grandes centros consolidados de pesquisa. E é neste sentido que o Laboratório de Musicologia - EACH - USP tem buscado mais que o mero acúmulo teórico: a aplicabilidade de teorias analíticas, afim de uma sistematização de uma ciência que sofre muito com especulações.

É a partir dessa ideia que um trabalho como esse surgiu. José Maurício é um compositor chave para a compreensão da estética galante e devido ao seu sofisticado trabalho inserido nessa tradição, se torna um prolixo objeto de análise. Uma vez compreendido e indexado certos movimentos intra-musicais, que ocorrem de acordo com esta estética, como as schemata - e consequentemente as cadências - o campo de compreensão discursivo e de significação ganha, em seu âmbito acadêmico, consolidações sistemáticas musicológica.

A escolha das três obras analisadas foi baseada na importância deste repertório para a compreensão da significação musical de seu período. As articulações tópicas e discursivas que elas possuem consolidam seu repertório dentro da tradição galante e demonstram sua formação contemporânea ao que era ensinado em centros europeus, como o de Nápoles.

Fica, portanto, demonstrado, exemplificado e indexado, como recurso analítico, a ocorrência de certas cadências sob a perspectiva das schemata, teoria proposta por Gjerdingen (2007), que a partir das relações contrapontísticas e contorno de vozes definem os movimentos e recursos musicais utilizados pelo compositor para a criação de sentido, que no caso das cadências, com sua origem nas clausulae medievais, funcionam como encerramento, sejam eles definitivos ou sobre segmentos.

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Os graciosos na ópera de David Perez: construção da música

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