• Nenhum resultado encontrado

INFORMAÇÕES COLETADAS

No documento ANAIS ISSN (páginas 162-166)

Os entrevistados compartilharam principalmente memórias afetivas, tanto do relacionamento entre eles e Lycia quanto da relação dela com a música. As poucas informações objetivas que forneceram como nomes, datas e lugares, foram de perguntas previamente programadas e conferidas em documentos pessoais pelos próprios entrevistados.

Cecilia contou que Lycia tinha sete irmãs e um irmão, e uma delas morreu afogada na praia de Camburi quando a mãe, Mariarchangela, estava grávida de outra filha. Cecilia e Veronica também pontuaram que Lycia, por causa de seu provável déficit de atenção teve educação domiciliar com professores contratados após o primário, tanto para matérias obrigatórias quanto para a música.

O estudo da música foi um meio que a família achou de desenvolver sua concentração (GARCIA, 2019; GARCIA 2020a).

Segundo Cecilia e Marcos, perto da maioridade, Lycia se mudou para o Rio de Janeiro para aprofundar os estudos na música e morou com uma tia. Na capital carioca começou a ter aulas com o maestro Giovanni Giannetti1. A família era abastada e o pai da compositora, Pietrangelo, alugou o Theatro Municipal do Rio de Janeiro e uma orquestra algumas vezes, para que sua filha pudesse estrear suas composições (GARCIA, 2019).

Cecilia também contou algumas histórias pessoais da família que complementam a narrativa biográfica. Lycia conheceu João Bidart, seu futuro marido, em uma viagem da escola militar que ele fez do Rio à Vitória, casando-se anos depois. Desse relacionamento nasceram suas duas filhas: a própria Cecilia, que nasceu dia 16 de fevereiro de 1935 e ganhou esse nome por causa da padroeira da música; e Lucia, a segunda filha, que nasceu dia 28 de abril de 1937 (GARCIA, 2019).

Marcos e Antonio também moraram com Lycia durante parte da infância e a adolescência, já que Cecilia era diplomata e precisou se mudar para o exterior. Lycia os criou como filhos com a ajuda de uma empregada, que trabalhou para a família por muitos anos. Veronica também frequentava diariamente a casa da avó enquanto sua mãe, Lucia, ia trabalhar. Os netos disseram

1 Giovanni Giannetti (1869-1934) foi um compositor, pianista e maestro italiano que atuou principalmente na Europa. Passou a ser reconhecido mundialmente em 1896, quando ganhou um prêmio no concurso Steiner, em Viena.

Em 1904, foi contratado como diretor artístico do Teatro Lírico, no Rio de Janeiro. Ao longo dos anos seguintes, Gian-netti assumiu a direção de instituições musicais em vários países europeus e passou seus últimos anos no Rio de

que Lycia foi extremamente liberal em sua forma de educá-los, com amor e confiança mútua (GARCIA, 2019; GARCIA, 2020a; GARCIA, 2020b).

Lycia era extremamente católica e frequentava a missa semanalmente com toda sua família. Os entrevistados disseram que, no Rio de Janeiro, ela frequentava a Igreja da Divina Providência e era muito amiga dos padres de lá, que iam constantemente à sua casa (GARCIA, 2019).

A música era muito presente na rotina da família. Veronica recordou que todos os domingos pela manhã a família se reunia para ouvir a Rádio MEC2. Nessas reuniões familiares, Lycia explicava aos netos a evolução dos compositores, características dos instrumentos etc. Os entrevistados disseram que Lycia apreciava muito a música erudita e citaram vários compositores que ela costumava escutar, como Beethoven, Monteverdi, Bach, Schumann, mas Veronica destacou que:

Ela era múltipla. Eu me lembro de Marcos ouvindo Jethro Tull, [...] é aquele rock contemporâneo mesmo que é quase um heavy metal, né? [...] E eu: “Pô, desliga esse som!”, e ela: “Veronica, música não é barulho!”. [...] Então, eu acho que ela não gostaria de falar “Lycia era apaixonada por Beethoven, Mozart e Schubert.”, entendeu? Porque se ela falou isso do Jethro Tull imagina se ela não amava Liszt, ela não amava Debussy (GARCIA, 2020b).

Por mais que os entrevistados tenham citado alguns títulos e compositores, foram poucas as lembranças em relação às composições em si ou técnicas musicais usadas por Lycia. Essas memórias mostraram-se mais afetivas do que propriamente técnicas. Segundo Marcos, quando ele chegava da escola deitava no sofá para ler enquanto Lycia estudava toccatas e fugas de Bach ou compunha em uma mesa. Ele se recorda dela fazer bocca chiusa enquanto compunha para ouvir as linhas melódicas (GARCIA, 2019). Antonio também se lembrou de ficar no mesmo ambiente que ela brincando ou estudando enquanto a avó fazia suas composições (GARCIA, 2020a). Veronica tem memórias parecidas:

Veronica: Aqui numa sala que a gente tem, logo aqui, ficava um piano de armário que tinha uma grande mesa que ela ficava ali escrevendo, aí ela levantava, aí, tocava um pouquinho e sentava. Quer dizer, ela checava o que ela estava escrevendo, mas ela não sentava no piano e saía tocando. Eu tinha impressão que era ao contrário, que ela sentava, escrevia...

Entrevistadora: Era um processo muito mais mental do que prático?

Veronica: É. É... eu acho.

(GARCIA, 2020b)

Cecilia contou que além das aulas com o maestro Giovanni Giannetti, Lycia também teve aulas com a pianista Magdalena Tagliaferro, mas não mencionou datas. Vários outros músicos também frequentavam sua casa, como o saxofonista Juarez Araújo. Segundo Marcos, era prática comum da compositora apresentar suas composições a amigos instrumentistas para saber se o

2 A rádio MEC foi fundada em 1923 com o objetivo de transmitir temas educacionais e culturais, com destaque

que ela escreveu era possível de ser executado na prática. Outro músico citado foi o maestro John Neschling, que era amigo de Lycia e estava em sua casa constantemente para conversar sobre música (GARCIA, 2019).

Ao ler os títulos de algumas obras, Marcos relembrou situações em que viveu com sua avó. O Ballet Fantasia3, por exemplo, em que os títulos das danças são cenários dentro do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, remeteu aos passeios que Lycia fazia com os netos no local, que era uma grande inspiração para ela. Ele disse que com o tempo viu que sua avó expressava por meio da música o que a natureza transmitia a ela (GARCIA, 2019). Foi um consenso entre os entrevistados que ela se inspirava na natureza. Cecilia relembrou outra história de uma noite em Vitória em que Lycia viu o mar brilhar por causa de algas fosforescentes e começou a circular a água com um galho pra admirar o que pareciam ser “estrelinhas no céu”. Cecilia diz que aquela noite inspirou Lycia a compor Fosforescência4 (GARCIA, 2019).

Segundo Veronica, as composições de Lycia eram sempre temáticas. Ela contou que ficou encantada ao ver sua avó fazer uma série de canções baseadas nos poemas de Cecília Meireles5, já que a literatura era muito presente em sua vida quando criança (GARCIA, 2020b). Antonio também recordou de momentos em que ela compunha e apresentava para ele suas ideias e inspirações:

E ela contava sempre como é que era, as músicas, mostrava o que estava fazendo, o que estava inspirando a ela. [...] Mas eu me lembro das composições dela, do Jardim Botânico, ela me falando... mostrava os acordes que ela estava fazendo, o que era... isso eu tenho lembrança (GARCIA, 2020a).

Um momento marcante para todos os entrevistados foi o divórcio entre Lycia e João Bidart. Cecilia contou que em uma viagem de férias, Lycia recebeu uma ligação dizendo que seu marido tinha ido embora de casa com outra mulher. Isso a feria não só no nível emocional, mas em nível moral, por motivos religiosos (GARCIA, 2019). Veronica recordou que, ao receber a notícia, Lycia se refugiou na música:

Mas eu me lembro que quando vovô saiu de casa, ela ficou muito triste, muito, muito triste.

Aí um dia ela se isolou, escreveu, escreveu, escreveu, escreveu música e tal. E, aí, um dia ela falou:

- Pronto! Terminou a minha dor.

- Como assim, vovó?

- Está tudo nessa música6. (GARCIA, 2020b)

3 O Ballet fantasia: Simbolismo e Vivência do Jardim Botânico do Rio de Janeiro é datado de 1976. Lycia compôs para orquestra e uma redução para piano. Além da partitura, a compositora anexou a nota aos coreógrafos e o roteiro para cenário, iluminação e figurino. O manuscrito pode ser encontrado na Biblioteca da ECA (USP).

4 Partitura não localizada.

5 Entre 1971 e 1976 Lycia fez uma série de 16 composições para voz e piano baseado em poemas da Cecília Meireles (MINISTÉRIO, 1978).

A neta também contou que no início da década de 1980 Lycia contraiu uma séria meningite e ficou em coma por alguns dias. Ela conseguiu se recuperar, porém perdeu grande parte da audição e passou a usar um aparelho auditivo. Como musicista isso a afetou bastante, porém, como era extremamente religiosa, ela acreditava que tinha passado por uma experiência divina. Sua avó a contou pessoalmente que quando entrou em coma teve a visão de estar em uma carruagem de flores em direção a Nossa Senhora e pediu a ela que não morresse naquele momento porque estava passando por problemas familiares e sua família precisava dela. Lycia acreditava que teve que abrir mão de sua audição para poder retornar do coma (GARCIA, 2020b).

Esse processo de surdez foi lembrado por Cecilia e Marcos de outra maneira. Segundo eles, Lycia já estava perdendo a audição antes da meningite e a doença apenas intensificou essa perda (GARCIA, 2019). Quando Lycia já estava parcialmente surda, Veronica lembrou-se de ver sua avó pedindo para que seus amigos músicos tocassem seus instrumentos perto de seu ouvido para que pudesse escutar melhor e “se deliciar com a música” (GARCIA, 2020b).

DISCUSSÃO

Algumas informações foram confirmadas e enriquecidas por fontes escritas. Veronica encontrou em seus arquivos pessoais uma coletânea de oito poemas que Lycia fez para todas as suas irmãs e sua cunhada, por exemplo. Em um desses poemas, Lycia menciona, com muito pesar, a morte por afogamento de sua irmã, Margarida, aos 15 anos (BIDART, [19--]).

Sobre a mudança de Lycia para o Rio de Janeiro quando jovem, Cecilia não soube precisar a data, mas em uma carta escrita pela compositora e publicada em jornal, ela diz que iniciou seus estudos com o Maestro Giannetti aos 18 anos (GARCIA, 2018, p. 8), então como Marcos disse que ela começou seus estudos com ele no Rio de Janeiro, foi por volta dessa idade que ela se mudou para a cidade (GARCIA, 2019).

Até então, as informações coletadas nos jornais sobre os concertos da compositora no Theatro Municipal se ativeram a sua repercussão e críticas artísticas. A informação de que Pietrangelo de Biase alugou o Theatro Municipal do Rio de Janeiro e a orquestra algumas vezes foi algo novo para a pesquisa (GARCIA, 2019), confirmando que a família era abastada, além de apoiar muito Lycia em sua carreira musical.

Segundo os jornais, Lycia teve suas composições executadas no Theatro Municipal cinco vezes: (1) em 23 de agosto de 1930, estreia do Prelúdio, sob a regência pelo Maestro Francisco Braga; (2) em 20 de agosto de 1931, estreia de Intermezzo, regido por Giovanni Giannetti; (3) em 31 de outubro de 1932, estreia do poema sinfônico Chanaan; (4) em 30 de setembro de 1933, Lycia foi a pianista solista no concerto para piano e orquestra de Giovanni Sgambati, sob regência de Giovanni Giannetti e, no mesmo programa, Lycia regeu Chanaan; e (5) em 29 de setembro de 1934, estreia de Anchieta e Angelus, com Lycia regendo todo o programa, que incluía outros compositores (GARCIA, 2018, p. 5-9). Todos os concertos tiveram uma média de 80 professores compondo a orquestra. Não é possível saber se Pietrangelo alugou o Theatro todas as cinco vezes, ou alguma

delas foram apenas participações especiais. No acervo do Theatro municipal constam apenas dois programas, dos concertos (4) e (5).

A composição Fosforescência, citada por Cecilia (GARCIA, 2019), não foi localizada em nenhum dos catálogos em que constam as obras da compositora. Porém, o jornal Diário de Notícias (1953, p. 11) divulgou um concerto que aconteceu dia 27 de novembro de 1953, no Ministério da Educação e Cultura, no Rio de Janeiro, em que consta a composição Noite de fosforescência na Praia Comprida.

A religião, tão presente na vida da compositora, segundo seus familiares, não é tão perceptível em suas composições, embora alguns títulos remetam ao catolicismo como Ave Maria7 e Vorrei dirti8. Já sua personalidade poética, sua paixão pela natureza e por sua família é algo visível. Grande parte dos títulos possuem referências a elementos da natureza como O lago9 e Estrelas10. Lycia também tem composições que citam nomes de familiares em seus títulos, como Uma rosa para Veronica11 e a Série retratos12.

Em algumas composições Lycia deixa registrado os compositores que usou como inspiração, como em Outonal13, que evoca Ottorino Respighi, Noite14, que evoca Maurice Ravel, e Bruma15, que evoca Claude Debussy. De modo geral, suas composições se aproximam muito mais da música erudita do que da música popular, refletindo seu gosto musical, conforme dito por sua família.

Durante a entrevista, Veronica encontrou diversos documentos que confirmaram ou tiraram dúvidas sobre datas importantes, já que em muitos casos cada entrevistado apresentou uma percepção diferente de tempo sobre o mesmo acontecimento. Segundo os documentos, Lycia e João Bidart se casaram dia 24 de novembro de 1933 e se divorciaram oficialmente dia 9 de setembro de 1976. Sobre os falecimentos, João Bidart morreu dia 28 de abril de 1981, Lycia morreu dia 10 de julho de 1991 e Lúcia morreu dia 31 de maio de 2009 (GARCIA, 2020b).

No documento ANAIS ISSN (páginas 162-166)