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Musicologia in Afrodiáspora

No documento ANAIS ISSN (páginas 177-181)

No percurso das observações atinentes ao termo Musicologia, tem-se a inicial explanação de que a disciplina se formou pela ocorrência em livros, críticas e artigos, objetivando a pesquisa em música de maneira ampla (The Grove’s Dictionary of Music and Musicians, 1954, p. 1021-1027).

Isso transparece, de certa maneira, o surgir dos temas de modo ensaístico e por menção aos assuntos relacionados aos estudos até que se alcance uma acepção disciplinar para determinados padrões de aplicação em pesquisas, como sucede no limiar de temas e nos respectivos métodos de análise, via de regra.

Por seu turno, esses estudos somados aos cenários da afrodiáspora delineiam o ponto de vista de definição da musicologia que considere a subjetividade dos indivíduos da pesquisa (The Grove›s Dictionary of Music and Musicians, 1980, p. 836-845), tendo a música como condutora dos fluxos de memória e reminiscências de criação musical e também de narrativas das histórias que envolvem matrizes relacionadas, neste trabalho, a genealogias com o continente africano, perpassando pela diáspora imposta pela escravização, e circundando a dimensão do incessante

fluxo cultural afro-atlântico.

Ainda, no que respeita à musicologia e suas definições ao longo do tempo, importa evocar

“o estudo acadêmico da música”, concernindo na investigação da música em campos diversos, indicando, ademais, a possibilidade de um estudo “com destaque para os músicos que atuam nos ambientes sociais e culturais” (The New Grove Dictionary of Music and Musicians, 2001, I. 5).

Veja-se que nesse seguimento das abrangências dos campos de estudo da musicologia, acompanhamos as análises de possíveis propensões ponderadas, aqui, na relação com os temas afrodiaspóricos, tendo-se em vista, ainda, a observação das especificidades das performances estéticas dessa musicalidade.

De acordo com a Encyclopedia of the African Diaspora: Origins, Experiences, and Culture (2008, p. 32), a música e a estética de performance na afrodiáspora envolvem qualidades do dinamismo rítmico, antifonia (chamada e resposta), repetição, improvisação, melodias cantadas entre outros.

Assim, seguindo a orientação de Nicholas Cook, em What is Musicology?, de que as compreensões em música permitem “adicionar camadas ou dimensões” (COOK, 1999, p. 31), é viável pensar que os estudos de afrodiáspora em musicologia incorporam, conceitualmente, dimensões na pesquisa pela perspectiva de certas genealogias irradiadas do Continente Africano, especialmente pensadas por meio de afluências observadas do local ao transnacional:

Musicologia (etimologicamente ‹palavra musical› ou ‹palavras sobre música›) trata do conhecimento que está por trás do prazer da música. Quando você estuda a música de outros tempos e lugares, você precisa reconstruir o conhecimento que seus compositores, intérpretes ou ouvintes originais tinham: como era feita, que tipo de estruturas sociais a apoiavam, o que significava. Nesse sentido, toda música implica sua própria musicologia, pois não há música que não acarrete conhecimento; isso é o que Guido Adler (que elaborou as primeiras diretrizes sistemáticas para a musicologia na Viena da virada do século) quis dizer quando escreveu que «todos os povos que podem ser considerados como tendo uma arte musical também têm uma ciência musical».

Acrescenta-se, quanto ao que se observa nos estudos de música em afrodiáspora, que os saberes são experienciados em espaços dispersos, a serem considerados, do que tão somente em instituições tidas como formais, muito embora, na contemporaneidade, todos esses universos dialoguem e se reconheçam mutuamente, entre oralidades e transcrições.

Quer dizer, refletindo sobre a expansão dos escopos dos estudos em musicologia, torna-se possível, por exemplo, falarmos em afrodiáspora também em afluências pelo campo acadêmico e de sensibilidades para com as diversas culturas musicais existentes.

Outro apontamento realizado por Cook, adaptável a essa perspectiva musicológica em afrodiáspora, diz respeito à música como recurso para “reconstruir histórias sociais ou culturais mais amplas”, sem que se olvide da própria música (COOK, 1999, p. 33). Percebe-se, por esse ângulo, que essa hipótese relaciona a música aos seus contextos sociais ou culturais, tendo por objeto o som musical.

Por esse viés, tal como propõe Myriam Chimènes, pergunta-se “inversamente sobre aquilo

que música pode fornecer para a compreensão da história da qual ela faz parte” (CHIMÈNES, 2007, p. 24).

Em continuidade, especificamente sobre o intinerário dos estudos em afrodiáspora, com o propósito de introduzir esse ideário, assim define a Encyclopedia of the African Diaspora: Origins, Experiences, and Culture (2008, xxxiii):

O termo afrodiáspora refere-se à dispersão dos povos africanos por todo o mundo. A palavra diaspora vem do grego diaspora (dia, que significa “através” e espora, que se refere ao processo de semear). Assim, refere-se à dispersão das sementes, bem como ao resultado da dispersão. A implicação de “através” na primeira parte da palavra também dá um sentido metafórico dos aspectos do movimento da diáspora, ou seja, “através de diferentes vias”. Nesta leitura, então, a diáspora pode ser vista como uma espécie de colheita de povos, culturas e conhecimentos que surgem inicialmente da África - uma globalização demográfica e internacionalização de povos africanos criados através de séculos de migração.

Ainda no âmbito conceitual, em Nei Lopes, encontramos o elemento Afro da seguinte maneira (2011, p. 23-25):

Afro – elemento vocabular que, na composição de palavras, lhes dá o sentido de origem Africana. Como vocábulo autônomo, desde os anos de 1970, inicialmente nos Estados Unidos, passou a adjetivar diversas expressões da cultura Africana na Diáspora.

No sentido de adjetivação, o elemento de composição “Afro” conduz a significações quanto às genealogias em África, e também aos sentidos simbólicos de reexistência das relações ascendentes para além daquele continente. Conforme Muniz Sodré, em “Pensar Nagô”

(2018, p. 16):

Admitimos que o conceito de África é geográfico e não metafísico. Mas consideramos, como Nietzche (em Além do bem e do mal), que a Geografia é algo a se levar em conta na perspectiva de outros modos de pensar. E o que aqui apresentamos é a perspectiva de um modo afro de pensar tipificado no Sistema nagô, que é de fato uma forma intensiva de existência (forma em que a passagem do biológico ao simbólico e ao “espiritual” é quantitativamente significativo), com processos filosóficos próprios. “Afro” não designa certamente nenhuma fronteira geográfica e sim a especificidade de processos que assinalam tanto diferenças para com os modos europeus quanto possíveis analogias.

Desse modo, nota-se que a compreensão dos estudos em música terá o Continente Africano em determinados planos iniciais agregados à pesquisa nos liames exequíveis dessa temática. Para mais, tem-se em vista a concepção de afro-atlânticos em afluências contínuas, desde antes dos regimes de escravização até as migrações e deslocamentos mais recentes (Figura 1).

Nesse seguimento, os pesquisadores tendem a refletir a quais afluentes da afrodiáspora seus temas estão relacionados, recordando-se que, em razão dos conhecidos apagamentos históricos que impactam nessa área de conhecimento, seja pelo processo de escravização seja pela dependência da transmissão de conhecimento em relação à oralidade, trata-se sobretudo de uma tarefa de percepção e combinação de perspectivas.

Em Diáspora Negra no Brasil, de organização de Linda M. Heywood, datam dos anos de 1990 os estudos voltados para as culturas afrodiaspóricas, indicando ao longo do tempo “uma mudança crucial no pêndulo, de uma superênfase no comércio de escravos e estudos do universo agrícola para um interesse em linguística comparativa, religião, política, arqueologia, música e nas tradições da arte performática, que são os legados das comunidades afrodiaspóricas na África e nas Américas” (HEYWOOD, 2019, p. 16-17).

Sobre esses estudos, na introdução do livro The African Diaspora and The Disciplines, Olaniyan e Sweet assim abordam as relações disciplinares (OLANIYAN; SWEET, 2010, p. 3-4):

Os autores deste volume vêem esses desafios aos cânones disciplinares como um reflexo da saúde e do vigor dos Estudos da Afrodiáspora como um campo emergente. Ao mesmo tempo, há poucos indícios de que os Estudos da Afrodiáspora devam se tornar uma disciplina em si. Na verdade, precisamente por causa da sobreposição e intersecção de métodos, línguas, literaturas e configurações institucionais das várias disciplinas, é absolutamente imperativo

que os alunos e estudiosos da afrodiáspora primeiro se ancorem em seus respectivos cânones disciplinares e, em seguida, ramifiquem-se a partir desta fundação.

Neste seguimento, o que se extrai das leituras da perspectiva dos estudos em música na afrodiáspora? A resposta encontra-se esparsada em uma série de conteúdos temáticos que abordam: música afro-brasileira; performance do jazz, estética do blues e outras formas de música afro-americana; músicas e rituais; músicas em santeria e candomblé; música com interação e participação; personalidades musicais da identidade negra da diáspora; harmonia vocal; a construção sônica de uma identidade diaspórica negra, mediante estilos musicais diaspóricos;

entrelaçamento polirrítmico; ciclos da música africana; ritmo africano e da estética musical;

polifonia vocal; pesquisa de campo em solos africanos; músicas tradicionais; cantores e bandas;

música neo-africana; música haitiana; música afro-caribenha; música afro-cubana; gêneros musicais.

Eis, então, uma demonstração de objetos identificados em pensadores da temática da música em afrodiáspora.

Desse modo, passando-se à aplicação dessa perspectiva, trazendo como expoente o cantor e compositor Mateus Aleluia, no que tange ao aspecto metodológico, recorda-se o que preceitua a Professora Vânia Freire, de que a pesquisa sobre a obra de um compositor importa na subjetividade e em não perder de vista o “processo maior em que a criação dessas obras está inserida”, evitando-se generalizações (FREIRE, 2010, p. 22).

No documento ANAIS ISSN (páginas 177-181)