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2 Uma visão alternativa da obra musical

No documento ANAIS ISSN (páginas 192-197)

Após a compreensão dos problemas envolvidos na concepção ontológica representacional, onde a da obra musical se vê como duplo da partitura, se propõe uma formulação sobre a sua identidade capaz de abarcar para além do registro escrito. Para que a performance musical pudesse ser englobada na análise musical, tendo vista os principais problemas que impediram a adoção de uma concepção ontológica tradicional da obra musical, propomos aqui uma visão alternativa desta mais alinhada com os propósitos e posicionamentos da pesquisa maior no qual este artigo se insere.

2.1 A morfologia da obra musical

A compreensão adotada parte em direção ao que se pode chamar de uma morfologia da obra musical, onde a questão principal estaria relacionada com o aspecto perceptual da música e das transformações sofridas de performance a performance e a maneira como essas transformações ocorrem. Em outras palavras, passa-se de uma obra musical enquanto objeto ideal representado

pela partitura e parte-se para a uma aproximação da mesma enquanto acontecimento.

Ao se encarar a performance como elemento crucial da morfologia, a metodologia de investigação parte da observação das condições efetivas de realização das performances musicais. O caráter mutável, instável e provisório da performance revela em si características que são em realidade constituintes da obra musical, de modo que as obras não são um objeto acabado que o intérprete apenas comunica. Nesta situação, surge a ideia de que a relação entre proposta e resultado depende, necessariamente, daquilo que ocorre até o ato da performance: o modo como o intérprete entende ou segue a partitura, mas também as demais circunstâncias do entorno, que podem levá-lo a escolhas mais ou menos desviantes.

Neste contexto, a partitura passa a ser um veículo que incita uma ação performática e que permitirá a reconhecibilidade de determinada obra musical. Porém, há a possibilidade de que tais conformações sejam desobedecidas, sendo usadas para a criação de uma performance, evidenciando que a performance possui prioridade em relação à obediência à partitura, numa ética não tanto determinada pelo conceito-obra, mas sim pela própria performance como obra. Em uma análise ancorada por esta visão específica, o papel determinante da partitura seria relativizado e posto sempre sob a perspectiva do ato performático e do processo percorrido até este último.

No entendimento da obra musical “não se apela então a um organismo central, representado na partitura, tida como absoluto, que se instancia em execuções, mas sim situações nas quais estão inseridos intérpretes e compositor” (CARON, 2013, p. 19). Evidencia-se assim o foco do olhar no processo, mais do que em qualquer suposição ontológica sobre o ser da obra musical em algum local ideal e, por consequência, fora dela.

A ênfase do olhar nos processos “permite uma atitude mais flexível com relação à notação musical, que passa não mais a definir um objeto musical fixo, mas as condições de performance para se chegar a um resultado” (COSTA, 2016, p. 33), entendendo que este resultado é específico àquele momento singular e redefine continuamente a identidade da obra. Esta desvinculação da notação abre margem para uma compreensão da obra onde elementos ligados a cada um destes momentos singulares tenham significância para a compreensão do fenômeno em si, assumindo a performance como elemento essencial, já que a “obra só existe enquanto performada” (COSTA, 2016, p. 10), dependendo de que alguém a recrie a cada execução.

Em uma análise onde o olhar se volta para as particularidades de performances individuais, a multiplicidade de resultados e variantes traz consigo justamente a possibilidade de observar os impactos das interferências performáticas comportadas pela obra musical, além da observação do quanto cada performance em particular pode alterar a aparência de determinada obra. Neste caso, a aparência remeteria “à série total das aparências e não a uma realidade oculta que drenasse para si todo o ser do existente” (SARTRE, 1994, p. 11), de modo que uma performance em específico nos remeteria à série total de performances, mesmo que o que aparecesse, de fato, fosse somente um dos aspectos do objeto, uma vez que o objeto acha-se totalmente neste aspecto e totalmente fora dele: “totalmente dentro, na medida em que se manifesta neste aspecto: indica-se a si mesmo como estrutura da aparição, ao mesmo tempo razão da série. Totalmente fora, porque a série em

si nunca aparecerá nem poderá aparecer” (SARTRE, 1994, p. 13). A impossibilidade da aparição da série completa das possíveis aparências justifica também a observação de apenas um exemplar dela.

Finalmente, adotando esta compreensão da obra musical, se faria possível recolher de cada experiência musical específica o seu respectivo resultado sonoro e investigar o impacto morfológico de cada “disparador” (usando o termo de Costa) naquela existência específica. Neste caso, o critério geral seria morfológico e a obra poderia ocupar um lugar conceitual enquanto efeito de uma prática performática, admitindo o seu viés de causa, inclusive como algo necessariamente vinculado a uma determinada tradição. Essa mudança na orientação do pensamento acerca da obra pode vir a contribuir para a “estruturação de uma ciência musical performática mais robusta, autônoma, e afim com uma perspectiva de revalorização do músico performer enquanto propositor na área” (COSTA, 2017, p. 15).

2.2 Deriva e conformação morfológica

A partir do momento em que a obra não mais é considerada um objeto estável e identificado diretamente com a notação, nos vemos lidando com um “elemento instável a priori, que passa a se comportar de forma estável por meio das diversas estratégias de invariância postas em jogo para a sua manutenção” (CARON, 2011, p. 49), de maneira que a deriva morfológica aparece como inerente à obra musical, revelando sua instabilidade essencial, a qual se pode ou não assumir dentro do processo performático. Tal instabilidade torna necessário o desenvolvimento de metodologias analíticas adequadas a ela e que sejam capazes de abarcar o que há além do dito “invariante” na obra musical.

Estas forças de desagregação trazem consigo, além da identificação da instabilidade da obra musical, o mote para a reflexão a respeito da zona de tolerância existente. De acordo com Costa, o nexo morfológico é o que garante que uma obra musical continue a ser identificada como si mesma. É possível que o entorno seja alterado, desde que o nexo morfológico continue presente. Entretanto, “o problema da localização do nexo morfológico não é exclusivo da escuta, mas é próprio da vida da obra ao longo do tempo” (CARON, 2011, p. 52). Assim, pode-se observar que o nexo morfológico da obra musical é construído a partir da história de suas performances.

Explicitada a relativização do texto na obra musical e averiguada a sua instabilidade, constata-se que esta pode ser entendida, então, como um sistema aberto, podendo ser reconfigurada, reagindo ou incorporando perturbações em sua composição morfológica. Desta maneira, “uma obra ao longo do tempo sofre modelagens que podem conformar-se ou não aos limites morfológicos propostos anteriormente ou que eram os seus até aquele momento” (CARON, 2011, p. 53). Essa abertura comprova que o problema das versões corretas ou incorretas e da zona

de tolerância morfológica não está unicamente relacionado com o texto (partitura), mas com todo um contexto social de criação, performance e recepção de obras musicais.

O projeto composicional, que pode ou não ocasionar um registro escrito, traz consigo orientação de manutenção e invariância. Entretanto, é somente a partir da realização efetiva da obra que a morfologia desta se define; é a partir da relação entre a invariância e os elementos de perturbação aportados pela performance que a peça passa a existir e iniciar o seu processo de

“assentamento” morfológico.

A obra musical se identifica pelo seu caráter mutável, sendo que “independentemente das prescrições da partitura, ou da expressão do desejo por invariância do autor, cabe ao intérprete ocasional, mediado pelas circunstâncias, definir como se configurará seu resultado musical”

(COSTA, 2016, p. 155). Visto em perspectiva, o processo de conformação morfológica é um vir-a-ser sem fim, onde o estabelecimento de estratégias que buscam invariância se intercalam com a ruptura destas mesmas, gerando um estado de deriva constante, com períodos de conformação morfológica seguidos de períodos de grande quebra. Esse processo se identifica na compreensão de que a obra sofre um desenvolvimento no tempo altamente contingenciado por decisões subjetivas, capazes de forçar ou eliminar diretrizes formais a todo momento.

2.3 O território da obra musical

A partir da concepção da obra como entidade morfológica, sujeita a processos de deriva e conformação dessa morfologia, onde as estratégias de invariância atuam como possíveis reguladores, concebe-se a obra como território a partir deste conceito em Deleuze e Guattari (1995). A presença de marcas territoriais é própria do território, o que leva a entender no contexto da obra musical que tais marcas territoriais influenciam diretamente em seu processo de evolução e conformação morfológica, impondo limites. Costa (2016) sublinha a autoria do projeto composicional como elemento principal no processo de demarcação do território da obra, sendo que o autor se faz presente através de uma assinatura que pode ser mais ou menos evidente de modo que, através disso, a obra tem chances de se conservar dentro de certos limites morfológicos, garantindo os desdobramentos autorizados. Neste sentido é preciso ressaltar que o compositor também faz parte do território, uma vez que sua ação expressiva é moldada pelo cânone da tradição e contexto social nos quais está inserido. Assim, a marca territorial composicional nunca é essencialmente subjetiva nem singular, mas sim ato já previamente territorializado.

Além disso, entendemos que a tradição de performance (dentro do contexto da música erudita ocidental) também aparece como elemento igualmente relevante na constituição do território, regulando de maneira evidente os possíveis desdobramentos morfológicos. Então, além das marcas do autor enquanto presença territorializante, a obra se vê também na presença de

uma marca territorial constituída pelo corpo de tradição da prática performática. Alguns autores têm refletido sobre o papel da tradição de performance enquanto elemento que conforma a obra musical entendida como resultado sonoro efetivo (LEECH-WILKINSON, 2012; CHIANTORE, 2017). De maneira geral, quando se pensa na música dita erudita, não se está de fato pensando simplesmente em um repertório, mas no repertório executado de uma maneira muito específica (CHIANTORE, 2017, p. 6).

Toda esta regulação, inclusive das práticas de ensino, se sustenta no respeito a um ideal da obra que se relaciona com aquilo que remete à “ideia” ou “entendimento original” da obra pelo compositor. Nesse sentido, Leech-Wilkinson acrescenta que “a noção de que o compositor nos deixou algo que inclui em si uma rede particular de inter-relações que geram (pensando em um comentador ideal) um sentido definível, independentemente dos sons que os performers podem gerar ou das mudanças na mentalidade dos performers e ouvintes, não é sustentável” (2012, p.

10). A performance pode mudar o caráter e mesmo a natureza de uma partitura de uma maneira mais impactante do que se permite pensar. Os dois autores citados, Chiantore e Leech-Wilkinson, mostram que mesmo partituras bastante conhecidas, que aparentam conter em si significados largamente reconhecidos, estão a todo o tempo mudando, não simplesmente como estilos de performance mudam, mas também na sua caracterização, levando a uma mudança em sua natureza perceptiva. Assim, acaba-se que muito do que é dito sobre obras musicais se refere de fato à performance destas obras dentro de uma tradição específica, de modo que algumas maneiras de se executar as obras foram absorvidas no que se imagina sobre o registro escrito das mesmas.

O alinhamento da obra com a maneira específica de se executá-la, em conformidade com a tradição, está em concordância com a ideia de classificação e organização da música erudita, que se disciplina para manter um status quo. Entretanto, esta disciplinarização e alinhamento com a tradição se dá de modo que não adotamos outras práticas porque hoje em dia isso não é feito, e não em relação ao passado, mas sim porque adaptamos nossos gostos a certas práticas, que com o passar do tempo se tornaram pontos de referência invioláveis e tão fortes que o argumento central tende a ser ético: fidelidade às origens (CHIANTORE, 2017, p. 13). Porém é preciso frisar que tais origens geradoras de regras são arbitrárias e se escondem por detrás de um processo de classificação que se mantém através de categorias dominantes.

A reflexão sobre a disciplinarização traz à tona a questão da classificação já que tais categorias se provam decisivas inclusive na constituição e demarcação do território das obras musicais.

Classificar significa exilar todas as ordens possíveis, exceto aquelas autorizadas pelos poderes vigentes. E são de fato estas ordens exiladas, que nunca desapareceram, que acabarão por subverter a aparente calma classificatória. De dentro das categorias elas crescem fortemente, se juntarão aos textos pobremente tratados e promoverão o declínio das categorias (GARCÍA-GUTIÉRREZ, 2007, p. 35).

Tais classificações, enquanto enquadramentos, no que concerne à performance, acabam por orientar diretamente o entendimento acerca da obra musical, bem como sua conformação morfológica. Assim, a proposição composicional se manifesta como uma primeira marca territorial, que é seguida pela marca da tradição de performance, ambas fortemente conectadas com os processos classificatórios expostos por García Gutiérrez (2007), que desencadeiam na disciplinarização da música. Em última instância “disciplinar para domar e controlar a música é um ato de autoridade sobre as pessoas e sobre a música em si mesma” (CHIANTORE, 2017, p.

8). Por isso, se faz necessário e urgente refletir sobre mecanismos de desterritorialização dos fenômenos e desclassificação dos sistemas de categoria.

É possível pensar na ruptura com as marcas territoriais iniciais em termos de

“desterritorialização”, que no caso da obra musical pode também ser compreendido aliado ao conceito de “desclassificação”. De acordo com Costa, o procedimento desterritorial seria possível graças à desvinculação das premissas inicialmente territoriais e assunção da obra musical enquanto entidade morfológica e coisa à deriva, “que poderia ser desterritorializada e reterritorializada a qualquer momento, graças a procedimentos autorais a posteriori” (2016, p. 39).

No documento ANAIS ISSN (páginas 192-197)