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CAPÍTULO 3: SOCIABILIDADE POLÍTICA

3.2. Espaços de sociabilidade política para além do centro republicano

3.2.3. Os cafés

Outro dos principais locais onde se discutia política era o café. Segundo Jürgen Habermas, a esfera pública, entendida como um espaço de debate sobre questões de interesse geral, desenvolveu-se nos salões e nos cafés das grandes cidades europeias, nomeadamente Paris e Londres. “As pessoas costumavam encontrar-se nesses salões para discutir questões do momento, usando, como meio para esse debate, folhas de notícias e os jornais que estavam a começar a surgir. O debate político tornou-se um assunto de particular importância. Embora, apenas, uma pequena parte da população estivesse envolvida, Habermas, afirma que os salões foram vitais para o início do desenvolvimento da democracia. Foram eles que introduziram a ideia de ser possível a resolução de problemas políticos através da discussão pública. A esfera pública – pelo menos em princípio – envolve indivíduos que se encontram de igual para igual num fórum de debate público.”354

Aquilino Ribeiro relembra a importância do café nas suas memórias da Lisboa de inícios do século XX, confirmando a ideia da importância do café para a sociabilidade política, para a aprendizagem e para a discussão dos temas que se tornaram públicos:

“O Café era a Universidade e a antecâmara permanente da revolução. Cada um tinha os seus clientes, agrupados pela cor das ideias e da gravata: republicanos, aficionados, poetas, batoteiros, e seria milagre se acampasse por ali um só que não acusasse estigma. Desconhecido que aparecesse era tal um moiro na costa. De mesa para mesa voava a palavra de passe: Cuidado que pode ser bufo!”355.

Local de politização, a tal universidade, e local de discussão, o café interligava o lazer e a política, no mesmo espaço de sociabilidade, ao tempo masculina. Existia, contudo, uma outra opinião sobre estes locais. “E, ao longo do século XIX, os botequins e cafés causaram muitas preocupações. Em torno destes locais foi-se construindo uma imagem negativa devido ao desregramento social a que, aparentemente, davam lugar. O barulho, as cenas de violência, o consumo do álcool, os horários tardios, a mistura de gentes, as conversas segredadas e os receios de conspiração, tudo aí parecia justificar a

      

354 GIDDENS, Anthony, Sociologia, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, pág. 466. 355 RIBEIRO, Aquilino, Um escritor confessa-se, Lisboa, Bertrand, 2008, pág. 144.

suspeição.”356 Assim, o café, num entendimento mais puritano, poderia estar associado à transgressão, a um mundo boémio, podendo ficar a dois passos do prostíbulo357. Existiram cafés que ficaram na história. O primeiro deles é o famoso Gelo, com “(...) uma parte demagógica que dava para a Rua do Príncipe.”358, poiso certo de opositores da monarquia e do franquismo, o local de eleição dos regicidas Manuel Buiça e Alfredo Costa e antes deles da Maçonaria Académica. Luz de Almeida, o chefe da Carbonária também aí podia ser encontrado, nesse local onde os “rapazes” “(...) trabalhavam para o advento da República.”359. Era aí que o carbonário Ferreira Manso se demorava todas as noites em “(…) propaganda discreta, mas infatigável”360. O Gelo era o lugar radical, carbonário, onde se fazia a politização dos indivíduos. Entrava-se para beber e para conversar, misturando o lazer e a aprendizagem e a discussão.

André Brun, ao falar sobre a Baixa em 1910, não podia deixar de fazer referência a este café:

“Quase ao voltar a esquina, o Café Gelo; mas temos que ir pelo meio da rua ou então levar um esquadrão de lanceiros adiante para abrir caminho. Muito estudante, civil e militar, a combinar paredes e greves e a impedir que entre alguém no café onde desde 1830 para cá entraram sete pessoas.”361

O café Martinho era outros dos locais “históricos” de encontro regular, na cidade de Lisboa. Para André Brun, o Martinho fora mais do que um café, fora o centro de agitação. Escrevendo em 1910, afirmava que há 15 anos este café formava opinião e que um ministro, mais do que se preocupar com a apresentação de um projecto no parlamento, pensava: “- O que dirá o Martinho?”

“O Martinho era arruaceiro e irreverente com aquele ar pacato e sensaborão que todos nós lhe conhecemos ainda. Ali se despendeu o melhor da inteligência

      

356 GARNEL, Maria Rita, Vítimas e Violências na Lisboa da I República, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2007, pág. 237.

357 Ibidem, pág. 237.

358 RIBEIRO, Aquilino, Um escritor confessa-se, Lisboa, Bertrand, 2008, pág. 162.

359 ALMEIDA, Luz de, “A obra revolucionária da propaganda. As sociedades secretas.” In MONTALVOR, Luís de (dir.), História do Regimen Republicano em Portugal, Lisboa, Ática, 1932, pág. 231.

360 ABREU, Jorge de, A revolução portuguesa. O 5 de Outubro (Lisboa, 1910), s.l., Casa de Alfredo David, 1912.

361 BRUN, André, A Baixa às quatro da tarde, conferência proferida no Salão da Trindade no dia 8 de Dezembro de 1910, Lisboa, Grifo, s.d. [1999], pág. 56.

portuguesa, pelo menos a espuma dela. Nos ranchos literários, Fialho, Marcelino, Gualdino e tantos outros já mortos expenderam ali primores de espírito. Se essas migalhas se pudessem ter recolhido não teria havido dinheiro que pagasse o trespasse.

A ala dos políticos que chegava à noite e se dividia em grupos era mais agitada e mais vibrante. O Martinho era uma sucursal de São Bento e o Parlamento dos intelectuais que nunca tinham sido nem queriam ser deputados.

Nos dias de motim, o Martinho era quartel-general dos arruaceiros de gravata. As mesas voavam em estilhaços. Sobre os bancos surgiam improvisados tribunos, enquanto os criados iam calculando o prejuízo. No dia da chegada de João Franco a Lisboa, partiram-me lá a cabeça.”362

Aqui se encontravam também pequenos “revolucionários civis” como José de Carvalho363. Utilizando a descrição de Brun, este café era um espaço público, essencial na geografia política de Lisboa. Associava dois tipos de ocupação, a dos intelectuais e a dos políticos, podendo, contudo, estas duas classificações sobreporem-se num mesmo indivíduo.

O Guia de Portugal364 de 1924 não deixou de fazer menção aos principais cafés de

Lisboa, não sem indicar a sua cor política. Assim, temos o Chave de Ouro dos antigos sidonistas, A Brasileira dos democráticos, O Martinho de políticos, jornalistas e escritores e o Gelo dos estudantes.

O Café Bom, na Rua da Betesga, fora o local de reunião dos primeiros anarquistas. Eram estes homens os frequentadores do café na Travessa da Trindade. O café Colon, na travessa da Palha, era, por seu turno, o ponto de encontro de diversos revolucionários.

Para além dos cafés, outros estabelecimentos similares serviam para as reuniões dos conspiradores. João Chagas, por exemplo, tinha uma predilecção pelo Leão de Ouro, que ficou imortalizado para a história com um outro conjunto de pessoas, precisamente, o Grupo do Leão, retratado no óleo de Columbano.

      

362 Ibidem, pp. 60 e 61.

363 CARVALHO, José de, Antes e depois da República. Memórias de um Revolucionário Civil

(oficialmente desconhecido) e empregado público pouco lembrado para recompensas, Lisboa, edição do autor, 1923.

364 PROENÇA, Raul, Guia de Portugal, vol. I, Generalidades. Lisboa e Arredores, apresentação e notas de Sant’Anna Dionísio, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1983 (1924).

Os dissidentes de Alpoim encontravam-se na pastelaria da Avenida, tida como um

baluarte dos monárquicos revoltados365. O comité de resistência formado pela

Maçonaria reunia nos Makavencos e no Grémio Lusitano. Os Makavenkos, de onde podemos destacar a figura do fundador e republicano Francisco Grandela, era um famoso clube, uma tertúlia composta por bons garfos. Esta sociedade gastronómica, fundada em 1884, tinha também objectivos ligados à beneficência.

Raul Brandão, a propósito da sua experiência no jornal Universal, contou o seu encontro com antigos anarquistas do Pátio do Salema, que lhe desvendaram a miséria de Lisboa. “Eram estes românticos que se reuniam num botequim da Rua do Príncipe Real e que publicavam um jornalzinho que prodigiosamente me interessava por preconizar

uma nova vida.”366 Mais uma vez constatamos uma fórmula conhecida: um

determinado grupo político tem um ponto de encontro, o seu lugar de sociabilidade. Neste caso, e isto também é muito comum, um pequeno grupo tinha um “jornalzinho” para publicar e publicitar o seu credo político e as suas opiniões.

       

O café não era apenas um local de discussão para as questões políticas. Podemos encontrar grupos de artistas ou tertúlias como o Grupo do Leão. No entanto, seria redutor separar arte e política, já que no início do século XX, sobretudo com as vanguardas artísticas, há uma vontade de ruptura e uma crítica por vezes bastante feroz à sociedade, aos seus valores e ao seu gosto.

A propósito de Almada e do Manifesto contra Júlio Dantas, José-Augusto França escreveu: “Foi mais uma pedra de escândalo por conta do Orpheu e desse futurismo de que toda a gente falava em Lisboa, no pequeno mundo dos cafés «A brasileira do Chiado» e «Martinho da Arcada» e dos restaurantes «Tavares», «Irmãos Unidos» e

«Vigia», onde se reuniam heróis e comparsas da aventura modernista.”367Nos anos

vinte A Brasileira do Chiado era o ponto de encontro de artistas e intelectuais. Em 1924 Pacheko, seguindo uma ideia lançada por Norberto de Araújo, dinamizou a decoração de A Brasileira do Chiado. De entre os artistas escolhidos, estavam Viana, Soares, Almada, Stuart, Pacheko e Bernardo Marques. “Soares compôs duas cenas de interior, uma com mulheres conversando, mundanamente, com os seus chapéus de último figurino e pormenores excelentes de natureza morta, outra com uma reunião de café só

 

365 ABREU, Jorge de, A revolução portuguesa. O 5 de Outubro (Lisboa, 1910), s.l., Casa de Alfredo David, 1912.

366 BRANDÃO, Raul, Memórias, vol. III, Vale de Josafat, Lisboa, Perspectivas & Realidades, s.d. (1933), pág. 164.

367 FRANÇA, José-Augusto, A Arte em Portugal no Século XX (1911-1961), Lisboa, Livros Horizonte, 2009, pág. 47.

de homens, entre os quais se reconhecem o popular anarquista Norte e o escritor Augusto Ferreira Gomes, amigo de Pessoa, num tratamento de tonalidades surdas que sublinham discretamente a elegância do desenho e caracterizam a sua arte.”368 Desta descrição, é importante salientar o encontro no café entre o anarquista e o escritor, num entretecer de ligações entre a política e a cultura, que se verificavam nestes espaços de sociabilidade.

“Almada como que replicou às composições de Soares, pintando duas mulheres numa praia, num à-vontade de banhistas em maillot, e um grupo de dois homens e duas mulheres a uma mesa de café que é a própria Brasileira.”369 De Almada é importante salientar a presença feminina que nos anos vinte franqueou a entrada – em pequeno número e durante pouco tempo – num universo maioritariamente masculino.

Estes locais de sociabilidade eram um mundo de oportunidades para as múltiplas vozes que os frequentavam. José-Augusto França explicou que A Brasileira em 1925 era “(…) o museu de pintura moderna que Lisboa não tinha – e a dois passos daquele onde Columbano defendia a tradição naturalista, oficialmente considerada contemporânea …”370 O mesmo se poderia dizer do Bristol Club, considerando-o também uma espécie

de museu.