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CAPÍTULO 2: A GALÁXIA REPUBLICANA

2.8. O republicanismo popular, acção directa e a “propaganda pelo facto”

2.8.2. Os radicais

Se a cúpula dirigente do PRP e os mais importantes e respeitáveis políticos republicanos condenaram o atentado, outras vozes tiveram outra opinião. A actuação de Costa e Buiça teve a aprovação de, pelo menos, um sector mais radical do movimento popular. E, provavelmente, cumplicidades inconfessadas e inconfessáveis por parte de alguns. Maria Veleda escreveu um artigo muito interessante sobre esta questão. Na sua forma, tinha como destinatárias as mulheres, mais concretamente as senhoras liberais. É um escrito raro, porque foi escrito por uma mulher e dirigido a mulheres, num mundo ainda masculino. Maria Veleda dispôs-se a pensar a política e o regicídio. Começou por diagnosticar um clima asfixiante que se vivia e que se fazia sentir sobre o homem. A mulher parecia ter o papel secundário de se preocupar com a sorte do homem. A sua visão de D. Carlos era extremamente crítica, escrevendo: “O rei ia chegar: – impudente e provocante, rindo com desprezo de todo esse mar de lágrimas que em volta do seu

      

260 O Mundo, n.º 2625, 27 de Fevereiro de 1908. 261 O Mundo, n.º 3091, 12 de Junho de 1909.

262 Intervenção de António José de Almeida, Diário da Câmara dos Deputados, sessão n.º 22, 3 de Junho de 1908, p. 27.

nome execrado se encapelava em ondas de maldição – o rei ia chegar.”263 Mas continuou, explicando que se o olhar feminino pudesse ferir, muitas mulheres teriam morto o rei, já que esta morte salvava muitas vidas.

As visitas à morgue onde estavam os corpos dos regicidas (e do rapaz morto por engano no Terreiro do Paço) não se limitaram a satisfazer a curiosidade da população, muito embora fossem um espectáculo relativamente usual e não exclusivo de Lisboa. Estas significavam também uma homenagem aos regicidas, patente na necessidade fetichista de recolher um pedaço da roupa, botões ou cabelo dos mortos. Houve mesmo quem não se coibisse de os cumprimentar de forma bastante expressiva. Conta Raúl Brandão que João de Deus Guimarães, indo à morgue, embora sendo proibido tocar nos cadáveres,

arranjou uma forma de dar “(…) um formidável aperto de mão (…)”264 a Buiça,

fazendo de conta que ia averiguar da rigidez do cadáver.

       

As homenagens não se limitaram a visitas à morgue. Testemunhas coevas, de monárquicos a republicanos, deixaram registado, uns condenando, outros com satisfação, os milhares que foram às campas de Costa e Buiça, cujo percurso para a sua última morada foi cautelosamente organizado pelas primeiras horas da madrugada, procurando evitar que se fizesse do enterro uma homenagem. As precauções não serviram de muito. Parte do republicanismo encontrou uma forma de prestar a sua homenagem aos regicidas.

A Associação do Registo Civil, reunida no dia 14 de Fevereiro de 1908, decidiu ir ao Alto de S. João depor flores sobre as campas dos seus falecidos consócios Alfredo Costa e Manuel Buiça. A Vanguarda noticiou a realização de uma “Grande

manifestação de dor”265. Vários milhares de pessoas estiveram junto às campas dos

regicidas. As campas dos regicidas transformaram-se num local de culto para algumas sensibilidades da galáxia republicana e dos campos políticos de esquerda. Em 1909, no primeiro aniversário do atentado do Terreiro do Paço, a polícia, às primeiras horas do amanhecer, já enxameava ao redor do cemitério do Alto de São João. O governo pretendia evitar que se realizassem romagens às campas de Costa e Buiça, tal como tinha acontecido no ano anterior. O jornal O Mundo noticiou a fúria reaccionária e a

proibição de entrada dos visitantes266. Este órgão de imprensa, voz de um

 

263 A Vanguarda, n.º 4332, 1 de Fevereiro de 1909.

264 BRANDÃO, Raul, Memórias, edição literária de José Carlos Seabra Pereira, Lisboa, Relógio d’Água, 1998 (1919-1933), tomo 1, p. 160.

265 A Vanguarda, n.º 3985, 17 de Fevereiro de 1908. 266 O Mundo, n.º 2963, 2 de Fevereiro de 1909.

republicanismo popular e jacobino, explicava que a mãe e a irmã de Alfredo Costa, bem como a sogra e os filhos de Buiça, chegando por volta do meio-dia, foram abordados pelo capitão Craveiro Lopes que lhes pediu explicações. O Mundo conseguiu, esbatendo as fronteiras entre o público e o privado, transformar uma questão pessoal numa questão política, argumentando que os familiares não podiam chorar pelos seus mortos. Não podiam os familiares nem todos os outros que também queriam prestar a sua homenagem.

Em Fevereiro de 1911, a Associação do Registo Civil promoveu uma romaria às sepulturas de Costa e Buiça. Segundo A Vanguarda, alguns grupos revolucionários e ligados ao livre-pensamento, convidados pelo Grémio Excursionista José do Vale, promoveram a visita às sepulturas dos “(…) livres-pensadores e revolucionários Alfredo Costa e Buiça, assassinados no dia 1 de Fevereiro de 1908 no holocausto à causa da liberdade.”267As homenagens a estes dois homens correram paralelas a outras, ou seja, promoveram uma romagem a campas de outros consócios, designadamente Cândido dos Reis, Miguel Bombarda e Heliodoro Salgado. A imprensa republicana noticiou a realização de uma manifestação que contou com milhares de participantes. Segundo O

Mundo268, estariam no Alto de S. João cerca de 100 mil pessoas. Para A Vanguarda269,

o povo democrático de Lisboa tinha dado um exemplo de veneração pelos seus mortos gloriosos. A reportagem não citou os nomes das pessoas, alegando que se tratavam de vários milhares. Numa altura em que o reconhecimento internacional da República era uma preocupação e uma prioridade, não convinha que surgissem associados a estas homenagens nomes fortes da política do regime. Muito embora a data remetesse para o regicídio, os organizadores, ao homenagearam também Heliodoro Salgado, recordavam os tempos de propaganda e ao relembrarem Miguel Bombarda e Cândido dos Reis, homenageavam a revolução. De uma forma simples, aqui estava a história do republicanismo, olhado pela perspectiva popular. O acto de Costa e Buiça surgia numa conjuntura mais lata e a homenagem inseria-os numa linhagem de heróis. Esta evocação sugere a existência de um fio condutor e um denominador comum entre estes homens. Exceptuando o caso de Heliodoro Salgado, os outros tinham morrido de forma violenta: Miguel Bombarda assassinado por um doente imediatamente antes da revolução, Cândido dos Reis, suicidara-se, crendo que a revolução estava perdida, e os dois

      

267 A Vanguarda, n.º 48, 5 de Fevereiro de 1911. 268 O Mundo, n.º 3688, 6 de Fevereiro de 1911. 269 A Vanguarda, n.º 49, 12 de Fevereiro de 1911.

regicidas tombaram no Terreiro do Paço. Estes homens (exceptuando Bombarda) tinham morrido por uma causa.

Apesar desta precaução, podemos saber que colectividades estiveram presentes. Assim, encontramos o Grémio Excursionista José do Vale, Juntas Locais do Livre Pensamento, centros republicanos (Centro António José de Almeida, Centro Miguel Bombarda, Centro Rodrigues de Freitas, Centro da Pena, Centro 5 de Outubro e Centro Henriques Nogueira), Batalhões de Voluntários e duas lojas maçónicas, a Montanha e os Obreiros

do Trabalho. Estavam também presentes associações de operários, marinheiros do

cruzador Vasco da Gama e a Liga Republicana das Mulheres Portuguesas. Exceptuando a associação feminina, temos aqui um retrato interessante do republicanismo popular e radical e das suas convergências com o mundo do trabalho.

O interesse nestes dois homens manteve-se, para lá das idas ao cemitério. Os retratos, os postais e a venda de objectos afins permite-nos surpreender a curiosidade mórbida e o

fetichismo que rodeavam Costa e Buiça. Mas, mais uma vez, não se tratava só de um

interesse vago, mas de uma forma de manifestar o apoio à sua acção, de os transformar em de heróis populares.

O republicanismo, sobretudo o jornal O Mundo, acompanhou de perto todas as questões que se relacionavam com o regicídio, de 1908 a 1910. Foram sendo publicadas investigações sobre este assunto e documentos sobre os regicidas. Assim o quereriam os seus leitores, numa relação dinâmica na qual o próprio jornal criava esse apetite no público. O jornal não deixava este assunto cair no esquecimento, relembrando o seu significado para a opinião mais radical. De certo modo, funcionou como um exemplo e um estímulo. A imprensa republicana considerava importante tratar o assunto, desde que definissem a maneira como este era tratado, já que os pedidos de investigação até às últimas consequências, feitos pelo Conde de Arnoso, lhe pareciam já exagerados.

Dos dois regicidas, Buiça foi o que mais captou a atenção, a curiosidade e o apreço do radicalismo, não sendo alheia a este facto a ideia de que foram os seus tiros que mataram tanto o rei como o príncipe. Assentava-lhe bem a imagem de revolucionário, de mártir, de abnegado, de alguém que deu a vida por uma causa. Esta imagem, como veremos, foi sendo trabalhada pela imprensa republicana.

Manuel de Laranjeira, escrevendo a Miguel de Unamuno, pronunciou-se sobre esta questão:

“Em Portugal, sobre o carácter de Buiça, havia duas correntes de opinião. Uma

que reputava o regicida como um assassino vulgar, alugado para realizar a tragédia de 1 de Fevereiro; outra que o encarava como um místico político, uma espécie de Brutus à moderna, como um Poeta de Acção (foi assim mesmo que lhe chamaram).”270

Manuel de Laranjeira acrescentou ainda que se estava a formar à sua volta uma lenda de heroísmo e que as massas populares divinizavam Buiça. Não é de todo inédito ou estranho a importância de um mártir numa subcultura específica. Aliás, em quase todas as mitologias ou histórias de grupos se constata a existência de alguém que se sacrifica por uma causa comum, seja pela nação ou pela ideia.

A 4 de Fevereiro de 1908, O Mundo publicou as fotografias dos regicidas e um dos seus repórteres foi a casa de Buiça para conhecer mais pormenores sobre a sua vida. Ficámos a conhecer a sua sogra e a filha, vestida de luto rigoroso. A 5 de Fevereiro, o mesmo jornal publicou a fotos dos “filhinhos” do professor Buiça – note-se o tratamento respeitoso – “morto pela polícia” a 1 de Fevereiro. Não surgiu nada acerca do seu acto, nem uma palavra acerca da morte do rei; pelo contrário, Buiça aparecia como uma vítima da violência policial. Os seus filhos eram tratados como pobres crianças que ficaram órfãos. Costa e Buiça eram, para a maioria dos críticos dos seus actos, uma espécie de feras. Para contrariar esta imagem, o jornal apresentava a família de Buiça, humanizando-o. No dia 6 de Fevereiro, o mesmo órgão de imprensa retomou o assunto. Os leitores ficaram a saber que a mulher de Buiça, que se chamara Ermelinda, falecera há pouco e a avó agora tomava conta de Elvira, de 7 anos, e do pequeno Manuel de 5 meses. Por esta altura o jornal já começara a receber donativos para esta família. Os donativos eram uma inequívoca prova de apoio à família de Buiça mas significam também que parte das pessoas que se predispunham a dar dinheiro, apoiavam o gesto dos regicidas.

A 7 de Fevereiro, o repórter de O Mundo noticiou que transmitira à sogra de Buiça, Maria de Jesus Costa, que um leitor lhe oferecia casa e colégio para as crianças. A subscrição aumentava de dia para dia e o jornal continuava a acrescentar donativos, até perto do final desse ano.

      

270 MARTOCQ, Bernard, “Duas cartas inéditas de Manuel de Laranjeira a Miguel de Unamuno”, Revista

Colóquio/Letras, n.º 22, 1974: 59-67.

Há uma comparação que perpassava subterraneamente: de um lado, os filhos de Buiça, órfãos de pai e mãe, pobres e desamparados, e de outro um jovem que perdeu o pai e se tornou rei. Perderam-se dois pais: um rei e um regicida. O republicanismo popular apenas se vai comover, sintomaticamente, com as dores das crianças.

Em 28 de Outubro de 1908 foi publicada uma reprodução em zincogravura das disposições deixadas por Manuel Buiça e datada de 28 de Janeiro de 1908 (o dia da malograda revolta do elevador da Biblioteca). A prosa não podia deixar de encontrar eco no republicanismo popular:

“Meus filhos ficam pobríssimos; não tenho nada que lhes legar senão o meu nome e o respeito e compaixão pelos que sofrem. Peço que os eduquem nos princípios da liberdade, igualdade e fraternidade em que eu comungo e por causa dos quais ficarão em breve, órfãos.”271

Palavras simples, de fundo heróico e romântico, cheias de abnegação. Palavras que chegavam a muita gente e que eram de fácil entendimento. Palavras que provavam, para o radicalismo popular, a nobreza de carácter de Buiça.

As diferentes posições face ao regicídio e aos seus autores demonstram a pluralidade de vozes do campo do republicano. São como duas cidades políticas que coexistem no mesmo campo, mas que não são totalmente coincidentes. Uma das linhas de clivagem que esta questão tornou visível foi a diferença entre os chamados “doutores” do partido e as bases mais radicais, para as quais confluíam elementos de diferentes campos políticos não exclusivamente republicanos, local de cruzamentos com o socialismo e o anarquismo.

Para os que apoiavam a acção de Costa e Buiça, esta fora exemplar, uma espécie de propaganda pelo feito ou propaganda pelo acto. É preciso precisar que a propaganda pelo acto não pode ser limitada nem confundida com uma, já de si complexa e difícil definição, ideia de terrorismo. Tratava-se de dar o exemplo, ou de liderar pelo exemplo, o que não significava que envolva necessariamente qualquer espécie de violência ou de atentado pessoal.

O regicídio não foi planeado pela cúpula do movimento, nem correspondia ao tipo de acção política entendida ou que fizesse parte do património ideológico de muitos dos

      

271 O Mundo, n.º 2867, 28 de Outubro de 1908.

chefes do movimentos mas é inegável que teve um efeito dinamizador nas bases do movimento e no radicalismo republicano. A monarquia não enveredou por um caminho de legítima defesa, retirando e dando, por isso, espaço ao PRP272.