• Nenhum resultado encontrado

Pensar a(s) república(s) e o republicanismo

CAPÍTULO 2: A GALÁXIA REPUBLICANA

2.1. Pensar a(s) república(s) e o republicanismo

Mirabeau, citado por José Gil55 afirmou que o poder deve apoderar-se da imaginação. Subvertendo esta premissa, é importante perceber como é que no processo de se tornar poder a ideia de república colonizou a imaginação de diferentes agentes e de que maneira era imaginada por eles. No entanto, a maneira de colonizar a imaginação não foi igual e foi exactamente a variedade e a diferença que lhe permitiu entrar em tantos sonhos do que poderia ser o amanhã.

O que significava república? Hoje, se procurarmos o seu significado num dicionário encontramos, por exemplo, esta definição:

“s.f. 1. Forma de governo em que o chefe do estado é eleito pelos cidadãos ou seus representantes, tendo a sua chefia duração limitada; 2. Estado que se governa deste modo; 3. Sociedade política; 4. Interesse geral de todos os cidadãos de um Estado; 5. Grupo de estudantes universitários, geralmente oriundos da mesma região, que vivem na mesma casa; 6. Residência colectiva de estudantes universitários; 7. Associação de animais que vivem em comum; 8. (coloq.) casa onde não há ordem nem disciplina; 9. (fig) associação de pessoas que não reconhecem chefe; (fig. Pej.) ~ das bananas país ou Estado, geralmente com um governo instável ou ditatorial e uma economia dependente da ajuda externa, situação em que reina o caos e/ou a corrupção (…)”56

Fazendo o mesmo exercício para o período republicano encontrámos a seguinte definição, de 1913:

      

55 GIL, José, “Poder.” In Enciclopédia Einaudi, vol. 14, Estado/Guerra, Lisboa, INCM, 1989. 56 Dicionário da Língua Portuguesa, Porto, Porto Editora, 2006.

“República: Negócios públicos. Qualquer governo de um Estado. Restict. Estado governado por muitos indivíduos. Forma de Governo, em que o supremo poder é exercido, durante tempo limitado, por um ou mais indivíduos eleitos pela Nação. Comunidade. Fam. (termo familiar) Agremiação sem chefe ou desordenada. * Escol. Conjunto de estudantes, que vivem em comum, na mesma casa (lat. Respublica)”57

Ou ainda, numa definição de 1925:

“República: Governo de um Estado em que se tem em vista o interesse geral de todos os cidadãos. Sistema de constituição e organização política, em que o governo é exercido durante um tempo limitado, por um ou mais indivíduos eleitos pela Nação e investidos de certa responsabilidade. O interesse comum; a comunidade. Associação de pessoas que não reconhece chefe. Fam. Sociedade, reunião, casa em que não há ordem nem regularidade. República federativa, agregação de Estados republicanos reunidos pelo federalismo. (Fam) Balbúrdia, desordem, casa onde ninguém se entende. República das Letras, o complexo dos homens que se entregam ao estudo das letras; os sábios e os literatos em geral, considerados como fazendo um só classe e sem admitirem superioridades: As letras, dizeis bem, são uma república, em que não há distinções (Garrett) lat. Respublica.”58

Há a resgatar um duplo sentido nestas definições de República. Por um lado a ideia de uma chefatura electiva, de tempo limitado. Por outro lado, uma ideia associada a desordem e à ausência de um chefe. Coexistem, portanto, uma definição que poderíamos chamar de clássica e uma ideia preconceituosa, a República das bananas. É curioso constatar este duplo significado simultâneo nos dicionários da época e mesmo nos actuais. A República, até para os monárquicos, pode ser entendida como uma forma ética de governar a cidade. Mas para além desta forma virtuosa, a República surgia associada à guilhotina e aos excessos da Revolução Francesa.

      

57 FIGUEIREDO, Cândido de, Novo Dicionário da Língua Portuguesa, Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1913.

58 Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa, feito sobre o plano de F. J. Caldas Aulete, Lisboa, Parceria António Maria Pereira, 1925.

A ideia de República não deve ser reificada como uma entidade mas pensada nas suas diferenças entre os diversos sujeitos e agentes que a utilizam. República não tinha uma definição única independentemente do sujeito que a utilizava ou pensava. Há uma enorme variedade de entendimentos que num determinado momento podem estar a ser veiculados. A utilização da ideia de República num determinado sentido pelos caudilhos republicanos não excluía a apropriações ou outras leituras, coexistindo significados diferentes ou ligeiras variações sobre o mesmo tema. Neste sentido, república é uma palavra polissémica. Embora não se possa encontrar uma definição única para o que era o conceito de República, este conceito vem para o centro de um campo discursivo, tornando-se a chave de um discurso político.

A sua definição tem uma genealogia e foi mudando de significado ao longo do período de meados do século XIX até 1910. A ideia de República associada à de virtude dos cidadãos podia ter uma variante aristocrática e outra popular. Ao longo do século XIX vai perdendo a definição que poderíamos chamar de clássica, a res publica, para ser investida de novos significados. Tomemos como exemplo o jornalista João Bernardo da Rocha Loureiro, estudado por Maria Helena Carvalho dos Santos. Nos seus escritos, no

Portuguez, utiliza a palavra república. “Emprega-a, no entanto, (e aos seus derivados),

sempre que se quer referir ao melhor governo, ao mais bem administrado país, e às virtudes cívicas, dando portanto, o significado de interesse público, de coisa pública – o significado tradicional no antigo regime. Mas também lhe atribui o significado corrente nos tempos modernos, de um certo tipo de governo, com instituições próprias.”59 Neste sentido clássico, de melhor governo, a república podia ser uma monarquia.

O que é interessante na evolução da ideia de República é que esta foi excluindo qualquer possibilidade de associação com um regime monárquico. A República tornou- se oposta a monarquia.

Inicialmente, para além deste significado clássico, República era um corpo estranho no discurso político aceite. Os primeiros a defender o conceito foram os “lunáticos”. O movimento republicano vai utilizar a palavra procurando dar-lhe uma valoração mais positiva, transformando-a em mais favorável aos olhos de um número crescente de sujeitos. Esta mudança acompanha uma mutação ideológica do significado de república.

      

59 SANTOS, Maria Helena Carvalho dos, As ideias republicanas em Portugal e o jornalista João

Bernardo da Rocha Loureiro (1778-1853), Lisboa e Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, 1983 (separata de Arquivos do Centro Cultural Português, vol. XIX).

Argumentamos que o movimento republicano pode ser lido como uma galáxia de agentes, instituições e organizações. De entre aspectos comuns, é importante realçar a “língua” republicana, diferente da palavra de um orador. Esta língua, falada pelos republicanos, tinha uma unidade essencial, apesar da coexistência de diferentes discursos de oradores individuais ou de facções dentro do movimento. Existia, portanto, um denominador comum. O discurso republicano apropriou-se de determinados vocábulos, conjugou-os e utilizou-os associados uns aos outros, dando-lhes, pela proximidade ou afastamento de outros um significado bastante próprio. O sentido de uma determinada palavra encontrava-se nas relações, nas semelhanças e diferenças com outras. Encaradas nesta perspectiva relacional, as ideias podiam ganhar novos significados.

É fundamental perceber como é que se posiciona a palavra República num contexto linguístico mais vasto. Os republicanos nos seus discursos e escritos associam esta ideia a uma galáxia de outras ideias: democracia, liberalismo, trabalho, ordem, tranquilidade, progresso, regeneração e liberdade. É clara a associação a uma divisa positivista de ordem e progresso. Os republicanos procuram ideias fortes do património político- ideológico disponível para acompanhar a ideia de República.

No início do século XX foi central a associação entre a República e a novidade política: a República era a “Ideia Nova” – repare-se que o sidonismo voltou a utilizar este argumento – que permitiria atingir a “Pátria Nova”. Sem dúvida que uma das associações mais significativas que o movimento republicano se empenhou em fazer foi a que irmanava República e Pátria. No entanto, este mundo novo que aparecia irmanado com a República, numa “Nova Aurora”, era tranquilo e ordeiro, nunca se associando a novidade à violência.

O discurso republicano recorria frequentemente a expressões e comparações decalcadas do cristianismo. Os republicanos eram os homens de fé. Pregavam o Evangelho sublime dos Direitos do Homem e a sua missão era um verdadeiro apostolado. Mais do que um recurso estilístico esta utilização facilitaria a compreensão aos ouvintes menos habituados a termos políticos e colocava os republicanos como homens puros e de valor.

Pouco antes da implantação da República, a partir de 1908, começa ser utilizada com maior frequência a palavra “democracia” associada ao combate do republicanismo. Os republicanos eram aqueles que podiam trazer a democracia, por oposição a uma monarquia que aparecia cada vez mais identificada com o antigo, com o que era 30

reaccionário, com a ditadura e mesmo com o absolutismo. A monarquia era o oposto da separação de poderes, do poder do povo, era algo antigo e que devia ser ultrapassado e isso só era possível com a república. A monarquia era a diferença e o privilégio, e a república era o império de uma lei universal, logo impessoal, e rigorosa. Os republicanos defendiam que não podia existir uma democracia real ou monárquica, já que era uma espécie de oximoro, não concretizável porque contraditório.

A palavra democracia surgia com conotações negativas que os monárquicos se esforçavam por associar a desordem. Perante as campanhas feitas, os republicanos respondem, já em 1910, que não foi a democracia que matou o rei no Terreiro do Paço, nem o Nunes Pedro em Cascais60.

Uma das mudanças mais significativas neste conjunto de significados que vão construindo a ideia de república foi a que associava este conceito ao progresso. Os republicanos associam república a uma determinada leitura da história e das civilizações, pensando-a em termos evolutivos, opondo tradição e progresso.

A ideia de República foi assumindo, ao longo dos anos de propaganda, uma conotação salvífica, de tal modo que a 4 de Outubro de 1910 o jornal republicano radical O Mundo perguntava: “Portugal a caminho da Redenção?” A república, mais do que o bom governo, mais do que o governo eleito pelo povo, era a esperança de dias melhores e a redenção da pátria que se cria doente.