religiosidade popular e teologia oficial
3. Caminhando com Maria, irmãos no mesmo Amor
Os processos de exploração e proletarização do trabalhador, os con- flitos sociais, as divergências na conduta e de princípios, etc. que permeiam sociedade atual, que têm como base a divisão de classes sociais e consequen- tes processos discriminatórios de natureza étnica e de gênero, parecem ficar em segundo plano quando as pessoas reúnem-se aos milhares para caminhar em direção “a casa de Maria” – o Santuário de Nossa Senhora Aparecida de Passo Fundo. “No gesto significativo de locomover-se se expressam aspectos indentitários comuns. Estes vão construindo na consciência de cada romeiro um sentimento de unidade coletiva e de solidariedade para com o irmão que caminha ao lado9”.
Além disso, permeiam o caminhar motivações semelhantes, que muitos romeiros trazem consigo para depositar aos pés de Maria, tais como: pedidos de saúde, de emprego, de moradia; ou gestos de agradecimento por graças e conquistas alcançadas e que são atribuídas à intercessão de Nossa Senhora Aparecida. Assim, pode-se afirmar que o desejo de realização da vida pessoal, familiar/comunitária, a vivência do mesmo sentimento filial por Maria, sob o título de Nossa Senhora Aparecida, são alguns dos aspectos que congregam e irmanam o povo romeiro.
9 Cf. Relat. da reunião da Equipe de Pesquisa de Religiosidade Mariana - 19 de outubro de 2012.
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Conforme inúmeros relatos registrados, “o fator agradecimento aparece como grande força motivadora para participação na romaria”10. Mas o que exatamente o povo agradece? Na verdade, trata-se de um “acor- do pessoal e íntimo” entre a Mãe (Nossa Senhora Aparecida), e o filho/a (romeiro/a). Por isso, os pedidos são, sobretudo, produto de uma conversa estabelecida no cotidiano da vida entre Mãe e filhos/as, resultante de um ato de amor que é nutrido a partir do diálogo, da escuta e tornado público no sinal da visita ao Santuário
Todo o significado do caminhar peregrino brota de um gesto de amor, e é esse mesmo amor que permite identificar o “outro” como irmão cami- nhante, porque “a mãe é uma só” (Fala de romeiro na 31ª romaria-2012). As- sim, ainda que a Igreja defina oficialmente o tema e o conteúdo da Romaria, os romeiros ocupam com liberdade tempos e espaços do percurso peregrino, organizando-se autonomamente em grupos de oração e de reflexão.
No entanto, as constatações da Equipe de Pesquisa não autorizam afirmar que a hierarquia eclesial caminha na contramão do processo popu- lar. É ela que convoca e congrega os romeiros/as e lhes oferece as condi- ções para caminhar. É ela que lhes garante a recepção de bens espirituais que permeiam a romaria e que são sua marca desde o início: “as bênçãos individuais recebidas das mãos do sacerdote, e o caráter vocacional desse evento, que se realiza anualmente no mesmo espaço do Seminário Nossa Senhora Aparecida11”.
Entretanto, como já afirmado, não se deve alimentar a certeza de que o povo romeiro se mantenha sempre atento às reflexões e motivações prepara- das e emitidas pelas equipes de animação, potencializadas por aparelhos de som ou transmitidas via meios de comunicação social ao longo do percurso da peregrinação. Diante dessa constatação, a Equipe de Pesquisa registrou em relatório de reunião de estudos e análise das entrevistas com romeiros:
10 Cf. Relat. da reunião da Equipe de Pesquisa de Religiosidade Mariana - 19 de outubro de 2012.
11 Cf. Relat. da reunião da Equipe de Pesquisa sobre Religiosidade Mariana - 18 de setembro de 2012.
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Ainda que não se tenha averiguado com profundidade quais são os fatores que agem no sentido de agregar os romeiros, pode-se ante- cipar a ideia de que o congraçamento dos fiéis dá-se com base no encontro, na solidariedade e no sentimento de irmandade, fortalecido no diálogo entre os filhos e a mãe e identificado como princípio comum que une os caminhantes12.
Não é preciso que os pedidos e agradecimentos sejam os mesmos e que o código de comunicação também seja o mesmo, pois cada caminhan- te expressa com linguagem forjada pelo amor, pela devoção e pela fé, os motivos primeiros que o levam a empreender a caminhada.
A Romaria é o encontro dos irmãos a caminho, tendo Maria como ponto de referência e de chegada. Neste sentido, “os símbolos que são car- regados pelos romeiros (velas, flores, imagens) expressam a relação íntima entre cada fiel e Maria. Tornam-se um presente que será entregue com o mesmo sentimento de afeto que se tem pela mãe terrena13.
Junto aos demais motivos para o caminhar, inserem-se pedidos de segurança e de amparo. Por isso, alguns romeiros caracterizam o gesto de caminhar, metaforicamente falando, “como sendo semelhante aos pri- meiros passos que uma criança dá. Se ela não se sentir segura e amparada não tentará mais caminhar14”. Em Nossa Senhora Aparecida, o processo é
semelhante, a busca de segurança e amparo nas estradas da vida são um elemento marcante entre os inúmeros sentimentos que são levados por cada caminhante. São sentimentos que refletem as angústias e as incertezas vivenciadas no dia-a-dia. Se os que caminham lado a lado não se sentirem amparados durante o percurso da vida faltar-lhes-ão as condições para sua realização humana e espiritual. Onde faltar a paz, o amor e o bem-estar junto ao irmão, também, faltará as condições para o cuidado com o coletivo com a sociedade/comunidade. O cuidado com cada indivíduo e com o social, se expressa como um anseio profético no caminhar solidário que tem como ponto de chegada o encontro pessoal e de todos com a Senhora Aparecida.
12 Idem. 13 Idem.
14 Cf. Relat. da reunião da Equipe de Pesquisa de Religiosidade Mariana - 09 de outubro de 2011.
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Além disso, é importante destacar que a coragem para enfrentar os desafios do peregrinar, e também o bem-estar vivido ao lado do irmão que caminha junto, é conquistado ao longo do percurso, e vem carregado de um espírito profético e desafiador. Por isso, vários caminhantes recordam em suas conversas que “Nossa Senhora Aparecida foi encontrada durante uma “pescaria pobre”, nas águas sujas de um rio sem vida, onde não mais brotava o sustento, a segurança e o alimento para a mesa. A partir deste encontro, recorda o romeiro (31ª Romaria - 2012), a pescaria foi abundante, ou seja, a vida, o sustento, a segurança, as fontes do amor foram reavivadas e alimentadas pela esperança15” – esperança grávida de significado e amor
por um povo, uma nação que vivia explorada. Em vista disso, na compre- ensão da maioria dos caminhantes, Maria como mãe de Jesus, é a mãe de todos. “Com seu amor universal” (Fala de romeiro-31ª Romaria) ela coloca o homem em contato direto com o Salvador.
Cada romeiro, “sem excluir o outro” (FREIRE, 1987, p. 46) é o sujeito de sua trajetória romeira e de vida, é protagonista da “assunção” (FREIRE, 1987, p. 47) de sua autonomia e identidade pessoal. Esse novo modo de ser individual, refletindo-se na comunidade, constitui-se um contributo primor- dial para a construção da paz e da justiça. Em outras palavras, o sentimento solidário que une os viandantes ao longo da vida, é, sem dúvida, o fator primordial para a construção da verdadeira comunidade, inspirada na prática do amor e da caridade, fontes da fé e do compromisso social-transformador. Considerações finais
A romaria de Nossa Senhora em Passo Fundo, para muitos, consti- tui-se, num grandioso evento turístico. Para os cristãos, no entanto, é um momento de expressão coletiva de fé e religiosidade.
A presença constante de aproximadamente duzentos mil romeiros desafia a Arquidiocese e a todos quantos têm a responsabilidade de orga- nizar o evento, de receber os peregrinos, de conduzir as preces. Desafia, igualmente, a pesquisa no sentido de descortinar a complexidade de motivos,
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necessidades, aspirações e princípios que agregam, num só ato, milhares de caminhantes e direção a Cristo, por meio de Maria.
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