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A CAMINHO DA FASE DE MATURIDADE

No documento É SAL É SOL É SUL DE NOUVEAU POIS!!! (páginas 104-111)

Augusto de Campos de 1956. Neste momento, Gilberto Mendes encontrava- se em um ponto de sua vida bastante distinto de quando iniciou sua fase experimental. Em 1975, o compositor se aposentou de seu emprego na Caixa Econômica Federal de Santos, podendo, enfim, dedicar-se integralmente à música. Foi também neste momento que ele começou a se tornar reconhecido, passando a receber encomendas de obras no Brasil e no exterior.

Aquela época exatamente que a gente não tinha acesso aos grupos instrumentais a gente compôs muito para voz, para coro. Aí, de repente a gente fica mais conhecido e vários amigos, um tem um trio, outro tem um duo, gru- pos instrumentais variados que começam a pedir músicas para a gente (ENTREVISTA, 1989a, 1989b)

Com a obra Omaggio a De Sica para trombone e trompa, de 1972, Gil- berto Mendes retorna, a um só tempo, à música totalmente escrita em pen- tagrama e à música instrumental. Entretanto, ainda permaneceu compondo obras importantes de sua fase experimental, como sua Ópera Aberta de 1976, que marca o fim desta fase no campo da música-teatro. Portanto, a década de 1970 é, na trajetória de Mendes, um momento de transição lenta e sem uma ruptura com o experimentalismo, diferente do que aconteceu com alguns de seus companheiros de Grupo Música Nova.

Com Som Sem Som foi composta nos Estados Unidos, quando Mendes passou um ano lecionando na Universidade do Wisconsin-Milwaukee. Esta obra foi uma encomenda para a série Música Nova do Brasil da Funarte, para a qual o compositor recuperou um projeto de composição iniciado anterior- mente e que se destinaria a ser um Kyrie, por sugestão de Olivier Toni (EN- TREVISTA, 1989a, 1989b).

Diferente das obras anteriores, em Com Som Sem Som as melodias fluem mais livremente, com uma maior autonomia entre as vozes. Apesar disso, de- ve-se notar que, na macroestrutura formal, a obra se organiza não por identi- dades melódicas tradicionais (como períodos, frases etc) , mas antes, por opo- sições de texturas. Isso demonstra como, mesmo escrevendo música sobre o pentagrama, alguns resquícios de sua fase experimental ainda resistem.

Nessa minha obra coral depurei toda a minha experiência anterior com os textos da poesia concreta, desde nasce-

morre, tentando elevar a um nível de abstração essa expe-

riência com o objeto musical fonético – a música concre- ta, na acepção de Pierre Schaeffer – para a construção de uma trama polifônica como que renascentista, clássica, helena. Mas sempre num lance de ponta, um salto à frente “poundiano”, tornando nova a cadência Landini, ars nova,

Figura 5: Detalhe da partitura de Com Som Sem Som Fonte: MENDES, 2010

A referência à cadência Landini reforça mais uma vez esse olhar para o passado que será tão presente nessa nova fase, ao passo que a referência ao cromatismo jazzístico também marca o retorno da música popular em sua escrita composicional. Por fim, a mistura desses universos musicais tão distin- tos costurados por procedimentos faturados da música de vanguarda, dão a tônica do que será a última e mais longa fase de Gilberto Mendes, seu período de transformação, onde a convivência de todo seu arcabouço cultural se fará presente em sua música.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Analisar a música coral da fase experimental de Gilberto Mendes nos permite compreender aspectos de sua trajetória composicional como um todo, para além do círculo mais restrito da música vocal. Por ser, junto com a mú- sica-teatro, o elemento central de sua fase experimental, esse pequeno mas significativo conjunto de obras traz em si a chave para se decrifrar o pensa- mento composicional de Mendes no período. Se em alguns compositores a música coral é relegada a segundo plano em relação à música instrumental,

na obra de Gilberto Mendes ela será determinante para o desenvolvimento de sua linguagem.

Ao colocar essas obras em perspectiva, é possível observar dois diferen- tes processos. O primeiro diz respeito a um retorno gradual à notação musi- cal tradicional após a experiência radical de Nascemorre. Nesta obra, Gilberto Mendes inventa um modo de escrita completamente novo, vislumbrando uma nova forma de expressão musical, sem melodias, onde a oposição de texturas e a combinação aleatória são os elementos centrais. Nas obras seguintes a escrita tradicional vai paulatinamente reconquistando seu espaço, primeiro restrita a uma nota (em Beba Coca Cola), depois ganhando maiores contornos até che- gar em Com Som Sem Som, onde a escrita gráfica é totalmente abandonada.

O segundo processo se refere especificamente à pesquisa das potenciali- dades vocais para além do bel canto. Nesse sentido, Nascemorre também opera um rompimento ao retirar da voz seu principal meio de fluência, a melodia. Neste processo, Beba Coca Cola pode ser vista como o pico da experimen- tação vocal, onde Gilberto Mendes explora ao máximo as possibilidades da voz cantada e não-cantada. Depois, inicia-se um processo de depuração dessas experiências, até que em Com Som Sem Som já não há qualquer exploração além da reminiscência de um som anasalado que persiste na obra.

Da forma como são apresentados, esses processos aparentam indicar o retorno de Gilberto Mendes a uma escrita neoclássica, talvez até reacionária em relação ao credo da música nova. Porém, é preciso considerar que Gilberto Mendes é fruto de seu tempo. Nesse momento, via-se no horizonte a saturação do modernismo e a chegada da pós-modernidade como uma nova realidade, e Gilberto Mendes foi um compositor sensível a este processo. Sua obra reflete o momento em que as bases do edifício moderno começavam a ruir, onde a in- cessante busca pela novidade cede espaço à liberdade de se permitir olhar para o passado sem medo. Essa liberdade será a tônica da última e mais prolífera fase de Gilberto Mendes.

REFERÊNCIAS

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Mendes. São Paulo: Museu da Imagem e do Som, 12 set. 1989a. Parte 1. Disponível em: http://acervo.mis-sp.org.br/audio/entrevista-de-gilberto- -mendes-parte-12. Acesso em: 04 mai:2020.

______. Entrevistadores: Sônia Maria de Freitas, Ênio Squeff e Rodolfo Coelho de Souza. Entrevistado: Gilberto Mendes. São Paulo: Museu da Imagem e do Som, 12 set. 1989b. Parte 2. Disponível em: http://acervo. mis-sp.org.br/audio/entrevista-de-gilberto-mendes-parte-22. Acesso em: 04 mai:2020.

MAGRE, Fernando de Oliveira. A música-teatro de Gilberto Mendes e seus processos composicionais. 2017. 190 f. Dissertação (Mestrado em Música). Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017a.

______. A inserção da música contemporânea no repertório de coros in- fantojuvenis: descrição de uma metodologia. Revista Vórtex, Curitiba, v. 5, n. 3, p. 1-16, dez. 2017b. Disponível em: http://periodicos.unespar.edu. br/index.php/vortex/article/view/2170/1443. Acesso em: 04 mai:2020. MENDES, G. Uma Odisseia Musical: dos Mares do Sul à elegância da Pop Art / Déco. São Paulo: Edusp, Giordano, 1994.

PIGNATARI, D.. Vanguarda em explosão sonora. In: PIGNATARI, D.. Informação linguagem comunicação. 4. ed. Cotia/SP: Ateliê Editorial, 2013. p. 135-144.

SANTOS, A. E.. O Antropofagismo na obra pianística de Gilberto Mendes. São Paulo: Annablume, 1997.

STERNHEIM, A.. Diogo Pacheco: um maestro para todos. São Paulo: Im- prensa Oficial, 2010.

IMAGENS

MENDES, G.. Nascemorre. New York: Pan American Union, 1966. 1 par- titura. Vozes, percussão e fita magnetofônica.

______. Asthmatour. Santos: s.i., 1971. 1 partitura. Coro.

Jornal do Brasil, 1976. 1 partitura. Coro a cappella.

______. Com Som Sem Som. Rio de Janeiro: Funarte, 2010. 1 partitura. Coro a cappella. Projeto Música Coral do Brasil, publicado originalmente na coleção Música Nova do Brasil.

No documento É SAL É SOL É SUL DE NOUVEAU POIS!!! (páginas 104-111)