• Nenhum resultado encontrado

O “TORNIQUETE SEM FIM”: O DISCURSO REVERSO SOBRE A VANGUARDA DISSIMULANDO A AÇÃO PARA

No documento É SAL É SOL É SUL DE NOUVEAU POIS!!! (páginas 81-84)

O ESCLARECIMENTO EM PROL DO ENGAJAMENTO

CONTRA A INDÚSTRIA CULTURAL.

A lógica do discurso sobre o Festival Música Nova de Santos, na década de 1970, parece ter sido a que declara Jean Baudrillard, em Simulacros e Simu- lação. Para o filósofo francês, ao inverter a polaridade do discurso ininterrup- tamente, o que era negação parece ser afirmação. Refletindo sobre a mídia no caso Watergate, apresenta uma visão que bem se adapta ao discurso do jorna- lismo cultural que cobria o Festival, no início da década de 1970:

Todas as hipóteses de manipulação são reversíveis num torniquete sem fim. É que a manipulação é uma causalidade flutuante onde positividade e negatividade se engendram, onde já não há mais ativo nem passivo. É pela paragem ‘arbitrária’ desta causalidade rodopiante que pode ser salvo um prin- cípio de realidade política. É por ‘simulação’ de um campo perspectivo restrito, convencional, em que as premissas e as consequências de um ato ou de um acontecimento são calculáveis [...] Se enquadra o ciclo completo de qualquer ato ou acontecimento num sistema onde a continuidade linear e a polaridade dialética já não existem, num campo ‘desequilibrado pela simulação’, toda a dissimulação se desvanece, todo o ato se abole no fim do ciclo, e todos ten- do aproveitado e tendo-se ventilado em todas as direções. (BAUDRILLARD, 1991, p.25)

O fundamento é simular o objeto transformando um conceito por des- contextualização através de associações de outros conceitos. Esta associação tem a característica da profusão e velocidade de vínculos de tal forma que cada um deles perde seu sentido original em prol da construção do sentido simulado do conceito nuclear. Por exemplo, afirmar que a vanguarda é pop porque é alinhada aos jovens, justificando tal associação com a irreverência, a contestação, a inovação, a inquietude, etc. Quanto estes adjetivos - juventu- de, pop, irreverência, contestação, inovação, inovação - são expostos em um encadeamento contínuo cria-se a descontextualização de cada um deles em prol do conceito que se quer induzir, ou encobrir pelo seu contrário, ou seja, a vanguarda artística é uma expressão complexa e sofisticada, ao contrário do pop, e mais que isto, tem um sentido político de engajamento de movimentos comunistas, em plena Ditadura Militar.

Esta lógica se encaixa perfeitamente na estratégia do discurso sobre o mo- vimento santista, pois ajudava na liquidação do sentido crasso da vanguarda, para adequá-la ao desejo e fantasia de ser vivida como uma ação pedagógica da crítica social e ponta de lança contra os assédios ad continuum da Indústria

O artigo relata, também, a presença de musicólogos argentinos em Santos que advogavam pela metalinguagem como forma de mitigar o impacto da mú- sica de vanguarda. A reportagem conclamava a adesão do público como um ato de convicção e de educação “elevada”:

Acostumados a fazer apresentações semelhantes em países europeus e também no México, Uruguai e Estados Unidos, Jacobo [Romano] e Margarita [Fernandez] acham que seus trabalhos não se destinam a plateias especiali- zadas, mas que são melhores compreendidos nos lugares em que o público é melhor informado. (POUCOS,1972,p.6)

Porém o que é interessante sublinhar é que ao lado da declaração sobre a sofisticação educacional para o entendimento dessa música, o artigo destaca uma laudatória que se tornava mote nas reportagens da época em A Tribuna, sobre o Festival de Música Nova, como vimos acima em outras reportagens: “Em 1969, numa apresentação no TUCA [teatro da PUC-São Paulo] a plateia era constituída de 30 pessoas. Hoje autores como Schoenberg já atraem grande público”. (POUCOS,1972,p.6)

Tal afirmação vela um elogio ao Movimento Música Nova, e ao mesmo tempo, conclama à união a um movimento que já seria uma realidade como mensageiro de uma renovação da escuta musical. Era um entendimento que já estava declarado em É música da época: os jovens entendem.,(É MÚSI- CA,1971,p.6) ou seja, o movimento de vanguarda é um índice inequívoco da qualidade crítica para uma sociedade culta. Mais que isso, apresenta-se ao pú- blico santista como uma terapia à hemorragia intelectual advinda da falta de educação formal; da manipulação absoluta e inevitável vinda da passividade diante da indústria cultural. Em síntese, forma-se um convite subjetivo ape- lando ao contrário; induzindo a um esnobismo pela vanguarda, como signo da boa casta educativa e crítica social.

Surge aqui o que creio ser uma diferença dos movimentos de vanguarda anteriores, no Brasil. Manipula-se a informação através de um deslocamento ao revés do próprio ideal de vanguarda. Ou seja, se antes a música de vanguar- da fazia questão de ser sectária, agora fazem crer que quem está apartado do movimento é um alienado. Ora, esta é a própria essência do “torniquete sem fim”.

da dificuldade de compreensão do discurso: não há que entender, há que par- ticipar. A indução revela-se em motes como “as obras falam por si”, com a qual os musicólogos argentinos apresentaram seus trabalhos ao público santista. Ademais apela, também, há um lugar comum, antes típico da recepção das obras populares. Ou seja, não há que se explicar, pois a música de vanguarda traz um sentimento universal apesar de sua linguagem hermética.

Igualmente sai ao descampado uma denúncia cara aos que pensavam na arte como um campo da revolução mental. Isso porque ao tirar da recepção da obra uma inteligibilidade como teleologia, consubstanciava a visão de que a estrutura formal da arte sempre trazia uma ideologia de dominação, ou seja, a negação da ideologia na qual a estrutura revela sua definição.

Desta forma, quando a vanguarda se apresenta como evento normal na cadeia da evolução mental do homem culto podemos dizer que estamos no campo da simulação “desequilibrada”. Isto porque, a declaração textual e a rea- lidade musical provoca o desvanecimento da dissimulação, em várias direções.

O que detona essa (in)direcionalidade de sentidos é o discurso na im- prensa. Por um jogo de suspensão da dialética moderno-contestatório, o Mo- vimento Música Nova passou a ser veiculado, num diário conservador, como arte que representava os próprios anseios da sociedade burguesa. Fazia-se en- tender como movimento pop, juvenil e até necessário para a boa cultura cida- dã. Em outras palavras, era o desequilíbrio “pela simulação” (BAUDRILLARD, 1991, p.25).

Pensando na realidade crítica da população brasileira, como poderíamos imaginar esse espaço num jornal da classe média de uma cidade de porte mé- dio? Justamente pelo trato contínuo de uma apologia edificante, que se reve- la em muitos textos de divulgação do Festival. Astutamente, a vanguarda era apresentada pela sua ambiguidade, ou melhor, pela simulação potencializada ao máximo de tal forma que a dissimulação se desvanecia. Tirava-se a des- confiança do engajamento, mas ao mesmo tempo velava o convite à revolu- ção silenciosa pelo crescimento cultural. Ao anunciar que “poucos entendem” apresentava-se, numa lógica linear, uma música que não poderia ser nociva, nem mesmo por uma mensagem subliminar, já que ninguém entendia mes- mo. E não era para ser entendida, como estava ocorrendo no movimento da MPB. Porém, convidava à aproximação, pois significava uma possibilidade de crescimento crítico.

Por esse jogo, delicado e arriscado, tratava-se de encobrir o desejo pri- mordial de quem não abandonava o ideal da revolução cultural. A persuasão e a mensagem política deixava-se à ironia da performance dos gêneros musicais. Ao jornalismo cabia mitigar a desconfiança e a atenção dos órgãos repressivos da Ditadura, construindo um escudo protetor sobre o Movimento usando a

ção desequilibrada” era efetivo, pois mantinha as ações da pedagogia crítica pela arte em plena Ditadura Militar. Assim, a arte de vanguarda apresentava-se tratando de evitar ser “subversiva”, num momento de maior radicalismo do regime castrense, como era os anos circundantes a 1972.

UM TROTSKISMO VELADO INDUZINDO O DISCURSO

No documento É SAL É SOL É SUL DE NOUVEAU POIS!!! (páginas 81-84)