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O “FESTIVAL MÚSICA NOVA” NAS PÁGINAS DOS JORNAIS

No documento É SAL É SOL É SUL DE NOUVEAU POIS!!! (páginas 63-67)

Apesar de o Festival de Música Nova ter dado um grande impulso à ati- vidade jornalística para muitos dos principais atores do movimento, antes de 1963 alguns artigos já indicavam o trato fácil dos músicos com essa mídia. Podemos dizer que o prenúncio do que viria a ser um hábito do Movimento Música Nova surge em um artigo de Willy Corrêa de Oliveira, no jornal A Tri- buna, edição de 2 de outubro de 1960.

pode soar estranho haja vista o estilo cáustico que Willy veio a adotar como princípio de sua expressão extramusical. O objetivo do artigo é desvelar as rotas de influência na música de Gilberto Mendes, sempre comparando-o com ícones canônicos da História da Música Ocidental. Assim, apontando o que transpirava em Gilberto Mendes de Weber, Stravinsky, Prokofiev, Chopin e Schumann, Willy Corrêa apresentava Gilberto Mendes na esteira da grande tradição da arte ocidental. E o faz sem maiores rusgas, preludiando a regra ten- dencial de muitos escritos entre 1970 e 1975: a tendência de criar plataformas de inteligibilidade da música nova com autores consolidados no ordinário da audiência.

Poderíamos questionar essa estratégia, ou seja, mitigar o impacto do novo recorrendo à exposição de uma genética consagrada e conhecida pelo grande público. Porém, de posse do que foi o discurso posterior, percebe-se que a ideia era de que o novo traria a expressão de todas as artes, e por isso teria o “direito” de conclamar sua legitimidade transformadora e de se apresentar com a mes- ma dignidade com a qual se apresentavam os clássico-românticos.

Torna-se mais sugestiva essa tese analisando um artigo publicado por Otto Maria Carpeaux (1960, p.24) na mesma edição de A Tribuna. Em A morte das vanguarda, Carpeaux procede a um pensamento dialético para analisar o porquê da resistência à vanguarda como pressuposto de avanço do pensamen- to artístico. Afirma categoricamente que o grande problema dessa postura/ movimento artístico foi não considerar que existiria uma “arte de sempre” que seria, aliás, insuperável. Mas sim por os “futuristas” acreditarem que a história começaria no “hoje”. Negando essa perspectiva, afirmou que a vanguarda é “utopia” e a “arte reconhecida” é “ideologia”. Por fim, equacionou a importân- cia do “esnobismo” para o movimento, pois criaria um potencial contra-hege- mônico, ou seja, transformaria o que é isolamento em uma falsa consciência de hegemonia, ou pelo menos, de aceitação. Concluiu, no entanto, defenden- do a vanguarda. Para ele, seu único problema era que suas “reivindicações e conquistas são abandonadas antes de terem sido atendidas, respectivamente exploradas”.

Ora, tratando de interpretar o esforço de Willy Corrêa em colocar a obra de Gilberto Mendes na senda da “arte reconhecida”, poderíamos afirmar que existiria uma postura crítica favorável aos dizeres de Carpeaux. Logo, estaría-

mos diante de uma crítica compartilhada por muitos, na época: haveria um habitus construído na qual a arte deve ter pontos referenciais para construir sentidos de análise, logo legitimação; o novo pelo novo seria apenas mais um formalismo.

No entanto, acho que há uma questão que separa os artigos de Otto Maria Carpeaux e Willy Corrêa de Oliveira. Tenho convicção que o trato da arte, re- velado na coluna do então jovem compositor do grupo Música Nova, muito se deve à influência trotskista. Provavelmente a convivência com Patrícia Galvão tenha sido crucial para esta estrutura de pensamento. A autora de Carta de uma Militante (1939) foi decisiva para a retomada da consciência dos antigos comunistas de Santos, na década de 1960. Patrícia, apelidada Pagú, encarnava como poucos o ideal de revolução cultural pelo pleno exercício da grande arte, sem as amarras poéticas que eram a praxe no ideário stalinista do tradicional PCB.

Aliás, tal postura de Pagú não era nova. Ela foi amadurecendo desde a luta que teve ainda em meados da década de 1930, quando se opôs às diretrizes stalinistas do PCB, que então delineavam uma guinada para a “revolução bur- guesa”, através das “frentes populares”. Na década de 1940, Pagú alinhou-se aos trotskistas e passou a militar nos jornais de São Paulo, junto com seu segundo esposo, Geraldo Ferraz. Este era já um escritor, crítico de arte e redator de importantes meios jornalísticos, entre eles a Vanguarda Socialista e o O Estado de São Paulo. Os dois se radicaram em Santos, em 1954, pelo convite de A Tribuna para Ferraz ser editor chefe de redação. Pagú, então, transformou-se na animadora primaz dos movimentos artísticos da cidade. Foi por ela que o movimento de arte amadora de Santos encontrou grande impulso a partir da década de 1950, inclusive promovendo sua divulgação através de uma coluna que assinava no jornal A Tribuna.

Gilberto Mendes e Willy Corrêa de Oliveira não escaparam dessa força centrípeta cultural. Nesse tabuleiro erguem-se muitas certezas que comunga- vam tanto os compositores como os jornalistas socialistas: a arte como ação inerentemente revolucionária, independente do caráter nacional; o trato e im- portância dos movimentos amadores de arte; e a ação de divulgadores dos ideais da grande arte na imprensa.

É claro o vínculo do Festival de Música Nova com esses princípios. É mais claro ainda o impulso desses princípios pelos braços de Pagú e Geraldo Ferraz que, fizeram de A Tribuna, um jornal simbólico para a elite de Santos, o prin- cipal veículo de divulgação do movimento de arte contemporânea e, posterior- mente, do Movimento Música Nova. O círculo das ideologias assim girou, pois Pagú, crítica mordaz da guinada stalinista para as massas burguesas, tornou- -se, na década de 1960, uma ponte para antigos stalinistas realizarem o ideal

Na edição de 14 de março de 1962, a coluna Artes e Artistas do jornal san- tista A Tribuna anunciava a realização da Semana de Música Contemporânea de Santos.(ROBERTO,1962,p.2) Era uma das primeiras manifestações do que viria a ser o Festival de Música Nova. Antes disso, em 1961, o mesmo jornal anunciou o surgimento do coral Ars Viva. Na coluna Crônica Feminina (JOSÉ, 1961,p.2), o coral foi apresentado com o intuito de divulgar um repertório musical inusual nas salas de concerto, principalmente a música contemporâ- nea, a medieval e a renascentista. O articulista garantia que “não se tratava de uma organização com tendências ideológicas (grifo nosso) (...), mas de um movimento independente onde a divulgação da arte é o principal objetivo”. Ora, para uma sociedade vacinada nos movimentos políticos de esquerda, o anúncio era quase uma ingenuidade.

De qualquer forma, estavam assim dispostos os organismos que ampara- ram, de 1962 até 2010, o Festival Música Nova de Santos: o coral Ars Viva e o jornal A Tribuna, onde Gilberto Mendes inclusive tornou-se colunista.

Devidamente apresentado e legitimado pelo veículo “oficial” da elite san- tista, os ideais de resistência pela “grande arte” ganhava novo impulso. Em pouco tempo, desde o concerto “histórico” (assim foi definido por Olivier Toni) (MÚSICA,1962,p.3) de 27 de março de 1962, o Festival de Música Nova se enraizou na agenda cultural da cidade e tornou-se um polo de grande efer- vescência do movimento musical brasileiro.

Surgia também, paralelo a esse movimento artístico-musical, uma lite- ratura jornalística e de fotorreportagem que divulgava os eventos ligados a esse perfil modernista de forma distinta da tradição da crítica musical no Bra- sil. Além dos anúncios dos eventos e de um tênue debate de polarizações das obras executadas, formou-se uma literatura que buscava orientar e explicar o movimento da música contemporânea. Como veremos, no decorrer de quinze anos o Festival recebeu intensa divulgação. E se num primeiro momento a divulgação foi apenas um exercício de informação, no decorrer dos anos, prin- cipalmente na virada da década de 1970, vários tipos de discursos se uniram para transformar a arte de vanguarda numa plataforma de crescimento crítico, sempre mitigando um discurso de fundo: a arte como fonte da subversão dos costumes.

jornalismo cultural na imprensa “chapa-branca” era deliberadamente “infil- trar” uma cultura de resistência é contemplar tudo e todos com olhos na com- preensão da expressão engajada. E isso com certeza não ocorreu na redação de A Tribuna. No entanto, percebe-se que o discurso foi aparecendo, palavra por palavra, pelo velho costume de velar o esclarecimento pela frase de múltiplos sentidos, vestida de elogio à grande arte e ao mesmo tempo de deploração da falta de sentido da sociedade massificada. De qualquer forma, o processo foi se transformando e ganhando forma discursiva no que poderíamos chamar de círculo de divulgação da vanguarda, ou seja, textos de Gilberto Mendes, Willy Corrêa de Oliveira e Geraldo Ferraz.

Já no final da década de 1960, a dinâmica pedagógica da arte-ação, ex- pressa no hábito de publicar textos elucidativos da estética do movimento, re- vivia os tempos do Clube de Arte. Evidentemente podemos considerar que ações nesse sentido era um habitus do ofício. Seja como for, ou seja, um habi- tus ou uma estratégia, o esforço literário de explicar o movimento musical se justifica para dar a ele uma condição de indagação crítica diante da sociedade, ou melhor, justifica-se na vontade de transformação da sociedade. Inclusive porque esse modelo de agenciamento tornou-se uma espécie de dinâmica do grupo, ou seja, pelo jornalismo cultural ligado ao Movimento de Música Nova se expressava um desejo-fantasia coletivo: a conjugação entre a expressão ar- tística e a ação da arte como ácido da realidade sociopolítica.

Em síntese, a preocupação com o extramusical revela o habitus. O que estava em jogo era justamente superar a alienação da recepção da arte através da explicação pedagógica do ato estético. Transformado em ato político-esté- tico, publicar servia, ademais, para contrariar a natureza das vanguarrdas his- tóricas, ou seja, o desejo de ruptura, de estranhamento, enfim, de isolamento. Isolamento que já havia sido fonte de debate no próprio seio da Neue Musik, pela postura crítica de Luigi Nono aos compositores que, diante das novas lin- guagens da música, assumiam apenas a capacidade racional do texto musical, e não o seu potencial de transformação; enfim, desprezavam “as redes de rela- ções entre música e vida” (CARVALHO, 2007, p.160).

EXPLICAR PARA REVOLUCIONAR, OU PELO MENOS

No documento É SAL É SOL É SUL DE NOUVEAU POIS!!! (páginas 63-67)