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Trago à memória a trilha que fiz no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, durante o trabalho de campo com o Projeto Oréades, momento em que pela primeira vez entrei em contato Maria Barbosa e Adelídio, moradores nativos de São Jorge e guias no Parque Nacional que, ao traduzirem para nosso grupo aquele cerrado em cultura, demonstravam como experiência e riqueza estão presentes naquele que narra. Esse foi o momento de descoberta do tema desta pesquisa.

Muitas trilhas e caminhos foram percorridos para atingir os objetivos propostos desta pesquisa. Estão apresentados aqui parte dos percursos trilhados, motivações, dificuldades e estratégias que revelam, junto com aspectos metodológicos, a experiência da pesquisa com moradores da Vila São Jorge.

Os contatos com alguns moradores foram iniciados ainda durante a realização do Projeto Oréades. Esses contatos, ainda que informais, serviram para conhecer pessoas que foram entrevistadas depois. Nas idas à Vila São Jorge, foram observados lugares e foram sendo estabelecidos diálogos com as pessoas que serviram principalmente para sistematizar questões que pretendia aprofundar durante o estudo.

Nessas oportunidades, também foram feitos contatos com alguns chegantes que vivem no Povoado. Alguns deles chamaram minha atenção, especialmente por desenvolverem trabalhos com o cerrado, e por apresentarem vínculos afetivos com a comunidade. Muitos deles comentaram que, ainda que tenham formação técnica ou superior, são os nativos que contribuem com o conhecimento que têm do cerrado. Esse grupo faz uso dos saberes tradicionais no trabalho que realiza como guia. A hipótese de inseri-los neste estudo foi cogitada, mas ainda que mantenham relações com os saberes tradicionais a conclusão foi que a inserção desse grupo mudaria o enfoque da pesquisa, pois teriam que abordadas outras temáticas.

Ir a São Jorge e as conversas iniciais ajudaram na definição de caminhos a serem trilhados para realizar as entrevistas: o primeiro passo foi definir quais seriam os entrevistados. Considerando o tema de estudo, os saberes e fazeres do cerrado, e reconhecendo que eles são parte da tradição local, o primeiro critério adotado foi entrevistar moradores nativos da Vila São Jorge. O primeiro grupo foi formado por moradores mais velhos da comunidade, que nasceram ou que escolheram a região para se fixar. Reconhecidos como nativos, eles são ex-garimpeiros, ex-garimpeiras, lavradores da terra, benzedores, benzedeiras e proprietários de terras que vivem na Vila São Jorge ou próximo à ela. O interesse especial por esse grupo justificou-se porque muitos são do tempo em que não existia o Parque Nacional; vivenciaram os vários contextos da história da região e experimentaram mudanças no seu modo de vida. A experiência de vida no lugar legou a esse grupo um conhecimento vasto do cerrado.

O segundo grupo de moradores foram os filhos dos nativos. Esse grupo foi inserido à pesquisa, pois na comunidade muitos deles conhecem o cerrado e seus usos com profundidade. Vivenciaram, juntos com seus pais, as mudanças que o local sofreu. Muitos deles trabalham como guias no Parque Nacional ou estão em atividades relacionadas ao turismo (comércio, campings, pousadas, guias). Maria Barbosa e Adelídio estão entre eles.

O segundo passo foi elaborar o roteiro de entrevistas. Esse roteiro foi essencial para guiar os passos em torno do problema de pesquisa, embora reconheça que as diferentes experiências trazidas pelos entrevistados e expressas em seus relatos são consideradas como informações importantes a serem explorados no trabalho com memórias.

No roteiro foram incorporadas histórias de vida como procedimento essencial em cada entrevista. Elas trazem as experiências passadas de cada narrador num enlace com as experiências do presente, a partir de onde ele aciona a sua lembrança. A história de vida traz o relato do narrador sobre sua existência através do tempo e a intermediação do pesquisador agrega à trajetória de vida de cada entrevistado conteúdos relativos ao tema pesquisado.

As histórias de vida aqui trazidas cruzaram diferentes temáticas que foram surgindo ao longo de cada narrativa, como: cotidiano, mudanças no modo de vida, dificuldades, conflitos, família, festas, trabalho, usos do cerrado, alegrias, tristezas, desejos, entre outros temas. Todos os entrevistados tiveram oportunidade de fazer esse exercício de rememoração e de (re)construir, por meio de suas memórias, a relação com o lugar onde nasceram, ou que escolheram para se fixar. A produção de cada relato reconhece a importância do narrador e de sua narrativa como parte do processo de formação e transformação histórico de cada lugar, isto é, reconhece cada entrevistado como um sujeito da história.

Considerando que um dos objetivos da pesquisa era (re)construir a tradição dos saberes e fazeres do cerrado compartilhado por aqueles moradores, inicialmente as questões foram dirigidas para o uso medicinal das plantas, mas fui orientada a buscar outros usos, e as narrativas revelaram que as práticas com o cerrado são múltiplas, diversas. O caráter cotidiano dos usos tradicionais foi revelando isso em cada relato. A partir das entrevistas, foram observados na Vila São Jorge e nos lugares visitados na Chapada dos Veadeiros, como esses usos estavam presentes nesse cotidiano. A observação dessas práticas possibilitou reconhecer aspectos do universo cultural daquela comunidade. Mesmo com tantas modificações culturais vividas pelos moradores, eles ainda fazem usos das plantas para muitas de suas necessidades e articulam seus saberes com a modernidade inaugurada na região.

Figura 1.1 – Dona Maria Chefe durante entrevista.

O registro desse conhecimento permitiu reconhecer que os significados atribuídos a esse saber são muitos. A literatura referente a esse tema, normalmente, sistematiza as plantas mais utilizadas, seus nomes populares e usos mais freqüentes, mas não dá conta das representações que se constroem em torno desses saberes. São registros muitas vezes desvinculados das relações sociais e históricas. Daí a opção pela entrevista com histórias de vida para compreender como a trajetória daquelas pessoas está articulada a essa experiência.

Pesquisas que utilizam a oralidade como recurso metodológico compreende a entrevista como a produção de um documento, que registra a experiência dos grupos: a narrativa é o documento que o pesquisador se debruça para interpretar e buscar respostas. Desse modo, o trabalho com memórias vai além da visão de que ela serve apenas como resgate ou recordação. Os relatos trazem à tona representações e imagens do passado que ajudam na compreensão do presente, na (re)escrita da história, no desvelamento daquilo que foi silenciado.

A maior parte das entrevistas foi realizada em janeiro e julho de 200528. Outras experiências de pesquisa tinham revelado a observação de Magalhães (1996, p.136-7): “nesse tipo de trabalho, somos, ao mesmo tempo, sujeito e objeto. Sujeito enquanto indagamos,

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enquanto procuramos saber. Objeto quando ouvimos, registramos, funcionando como um meio do qual esse alguém se vale para rememorar, para transmitir suas lembranças, suas representações, sua visão de mundo”. Trabalhar com memórias exige rigor e sensibilidade, além de certa cumplicidade entre quem ouve e quem narra; essa cumplicidade sempre se traduz em desafio para aquele que pretende, a partir da memória, tecer interpretações.

Diante desse desafio, outras estratégias foram definidas, pois ainda que tivesse conversado com alguns moradores e eles tivessem feito relatos, ainda era informal. Assim, antes de realizar as entrevistas, foram explicados a cada morador os objetivos e intenções do estudo que estava sendo realizado. Nessa fase, o apoio de Téia29, moradora nativa e uma das entrevistadas, facilitou o acesso a alguns deles. Com outros moradores, a aproximação também foi cuidadosa, pois era preciso garantir que a importância da pesquisa ficasse clara para eles. Nesses contatos foram colocados os objetivos, o tema a ser explorado e foram respondidas questões que partiam do próprio morador. Também foi explicado que as entrevistas seriam gravadas em fitas cassete, para que pudesse facilitar os procedimentos posteriores.

A entrevista com Seu João de Teodora não contou com esses contatos preliminares. Ele mora num sítio próximo à Vila São Jorge, onde, literalmente, tem que atravessar um rio e uma pinguela para chegar até sua casa. Para a realização dessa entrevista foi imprescindível a ajuda de uma moradora que apresentou Seu João. Após a apresentação e conversa informal, foram esclarecidos os objetivos daquela visita inesperada: a intenção da pesquisa, o uso do gravador, entre outros procedimentos. Apesar dessas condições, ele construiu uma narrativa singular sobre sua experiência de vida e seu conhecimento do cerrado. Seu João de Teodora foi incorporado à pesquisa, pois vários entrevistados se referiam a ele, e observavam: “você não pode deixar de entrevistar Seu João de Teodora, aquele é danado, conhece tudo de cerrado!”. Foi assim que cheguei até ele.

Essas estratégias de pesquisa fizeram todo sentido, pois os moradores da Vila São Jorge são freqüentemente entrevistados e alguns, inclusive, resistem a dar entrevistas. Encontrei essa resistência em uma moradora, que acabou concedendo a entrevista, não por insistência, mas porque entendeu qual era a intenção. Ela fez questão de não ser identificada. Sua entrevista não foi editada, mas trechos dela aparecem ao longo deste trabalho. Os desafios foram vencidos e obtive a cumplicidade necessária dos entrevistados, que narraram suas experiências de vida, ainda que alguns só tenham concordado em conceder a entrevista na

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condição de não ter que falar do Parque. Tal fato chamou a atenção e motivou interpretações que aparecem ao longo deste estudo.

Figura 1.2 – Estrada para a casa de Seu João de Teodora.

Figura 1.3 – Riacho a caminho da casa de Seu João de Teodora.

Às entrevistas foi dado um tom de conversa, mesmo contando com o roteiro de perguntas. Ainda assim, diante do gravador, muitos entrevistados se retraíam um pouco. Ao longo da entrevista é que as narrativas foram fluindo, a memória foi sendo trazida de forma espontânea, numa relação de confiança que vai se estabelecendo entre quem narra e quem ouve.

Outros caminhos, além da Vila São Jorge, foram percorridos na Chapada dos Veadeiros para fazer as entrevistas: vãos, fazendas e sítios foram lugares visitados para entrevistar, além de Seu João de Teodora, Dona Flor e Seu Waldomiro. Em relação à Dona Flor, é importante esclarecer que ela é moradora do Moinho, pequeno povoado da Chapada dos Veadeiros, também vinculado a Alto Paraíso. Nas entrevistas com moradores de São Jorge, Dona Flor sempre surgia como referência, por ser raizeira e parteira. Ainda que ela não seja moradora da Vila São Jorge, seu relato foi incorporado ao conjunto deste estudo pela relevância que apresenta em relação ao tema abordado. Seu Waldomiro e Seu João de Teodora moram em suas propriedades próximas a Vila São Jorge.

No percurso desta pesquisa foram realizadas vinte entrevistas, cada uma delas com duração média de uma hora e meia. Após a fase de gravação, as entrevistas foram transcritas obedecendo rigorosamente ao que foi dito pelo entrevistado. Também foi incorporada às

transcrições a sinalização de gestos e atitudes dos entrevistados durante a gravação (por exemplo: risos, choros, silêncios, tristeza). Neste estudo é apresentada uma seleção de onze entrevistas editadas, que privilegiam critérios anteriormente adotados: conter os dois grupos selecionados, os nativos mais velhos e seus filhos; e diferentes narrativas que traduzissem a diversidade de experiências entre aqueles moradores. Essa opção faz parte do recorte interpretativo das narrativas que foram colhidas.

Faz parte da metodologia de pesquisa solicitar ao entrevistado a concessão de uso da entrevista e das fotografias produzidas, especialmente quando se pretende que os resultados, a partir da utilização do seu testemunho e imagem, tornem-se públicos30. O documento oral, dessa forma, é gerado respeitando-se a autoria de quem o produziu.

Trabalhar com memórias para retirar dela o conteúdo da experiência, das tradições, (re)construindo historicidades, não significa que o pesquisador deva utilizar-se somente do testemunho oral como fonte de trabalho. Muitas experiências de pesquisa articulam fontes orais, escritas, imagéticas e outras31. Para atingir os objetivos desta pesquisa, além da consulta a documentos, em arquivos como o do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros e do Ibama, foram trilhados caminhos de observação de lugares e pessoas, considerando a perspectiva benjaminiana de que as narrativas não são produzidas somente pela oralidade; nossas experiências gestuais, visuais e estéticas revelam parte do que somos.

Na prática da pesquisa, foi em busca dessas narrativas que o olhar foi aguçado: fiz trilhas no Parque Nacional, visitei lugares e pessoas, observei festas e encontros coletivos. Fiz dessa busca um campo de observação da memória e de narrativas presentes nos gestos, nos comportamentos, nas imagens, que li e interpretei como parte do meu desafio de desvendar os silêncios que permeiam a história, a memória e saberes daqueles homens e mulheres. Para Geertz (1997, p.85), não se pode esperar uma observação isenta do pesquisador. Ele não é um ser amorfo, interage todo o tempo com lugares e pessoas que observa, que entrevista, numa relação em que o “objeto pesquisado” não é só objeto, mas também sujeito do processo de construção do conhecimento, pois o que é dito, o que é lembrado, o que é observado, faz parte tanto do recorte feito pelo pesquisador, quanto pelo pesquisado.

No trabalho de campo, ao ouvir e registrar vozes, fazer saltar aos olhos saberes tradicionais como marca dos moradores da Vila São Jorge, a intenção foi tecer uma “história a

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Todas as fotografias apresentadas ao longo deste trabalho são da autoria de Regina Coelly F. Saraiva, com exceção da fotografia apresentada na figura 1.1 da autoria de Felícia F. Macedo.

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Faço referência ao trabalho desenvolvido por parte dos pesquisadores do Núcleo de Estudos da Cultura, Oralidade, Imagem e Memória no Centro-Oeste – NECOIM/CEAM/UnB −, que trabalha com a oralidade associada à imagem como parte do processo metodológico e interpretativo das pesquisas.

contrapelo”, numa perspectiva de construir outra narrativa possível sobre saberes, lugares e pessoas. Esse foi o aspecto que mais motivou enfrentar a vastidão da Chapada dos Veadeiros, conversar com moradores da Vila, ir aos moradores dos vãos, atravessar rios, pontes, estradas com muita poeira, questionamentos sobre a pesquisa, ansiedades, mas sempre carregando o desejo de saber mais sobre aquela população tradicional, sobre aqueles saberes que, numa simples trilha, lançou-me para este estudo.

Figura 1.4 – Estrada para o Moinho.