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O desafio de desvendar silêncios que permeiam a história, a memória e saberes daqueles homens e mulheres da Vila São Jorge, tornou possível (re)construir experiências para garantir uma memória e uma palavra comuns, malgrado a desagregação e o esfacelamento do social (Magalhães, 1996, p.126). Esse percurso foi sendo tecido junto com aqueles narradores. Suas narrativas (re)criaram a possibilidade apontada por Benjamin: garantir uma memória, evidenciar identidades. Tendo a história oral como processo metodológico foi possível (re)construir saberes e fazeres do cerrado presentes em histórias e memórias que definem modos de vida, olhares e significados atribuídos por aqueles moradores; e interpretar, a partir das narrativas, como aqueles saberes e fazeres se resignificam diante das mudanças e do novo contexto. Assim, experiências até então

silenciadas emergem num movimento de arrancar a tradição do conformismo: ofício do historiador.

A memória como forma de (re)construção do passado, simboliza a possibilidade de redenção da história, que é reescrita a partir de narrativas que contam e registram as experiências dos homens. As “grandes narrativas” e as “macro-análises sociológicas”, neutras e impessoais, são questionadas e vistas como abordagens que limitam o campo de interpretação e entendimento do mundo social.

Para Magalhães (1996) e Joutard (2000), desvendar o “anonimato diluído no cotidiano” é a maior contribuição e o maior desafio de trabalhos com a história oral. A particularidade desse método é (re)construir narrativas e abrir espaço ao que não foi escrito, ao “não-dito”, aos “interditos”, aos “silêncios”. Os saberes são permeados por relações de poder e, em função disso, ou se perdem, ou são renegados ao anonimato. (Re)construir esses saberes por meio do registro da memória, é reconhecer a importância e validade desse conhecimento para a compreensão do mundo social. Não se trata de desmistificar heróis para criar outros, mas de dar condição de igualdade aos interlocutores, aos sujeitos históricos. É trazer à luz as realidades “indescritíveis”, quer dizer, aquelas que a escrita (e outras formas de representação) não consegue, ou não quer, transmitir.

A história oral contribui para o registro das memórias individuais e coletivas. Seu objetivo é evocar outras historicidades, reinterpretando o passado e o presente, a partir da voz de múltiplos e diferentes narradores. Para Magalhães (1996, p.90-100), o trabalho com a oralidade considera a sabedoria existente nas narrativas e neste sentido resgata a erudição presente tanto no discurso das elites como na narrativa popular.

Desse modo, as memórias daqueles homens e mulheres são incorporadas a essa tese não como meros registros de fatos e acontecimentos, mas porque delas emergem significados, representações, experiências e riquezas de diferentes sujeitos que (re)elaboram modos de vida e visões do mundo que os cercam. Ao serem disponibilizadas permitem que outros olhares sejam produzidos sobre a tradição dos saberes do cerrado, distanciando-se de visões que os compreendem como parte de um passado a ser esquecido: “porque são somente algumas famílias...”.

Gagnebin (1987, p.15), na sua leitura de Benjamin, lembra que “o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois”. Nesse caráter ilimitado do passado lembrado é que está presente a profusão de sentidos que, trazidos para o presente, torna possível (re)escrever outra história possível, contemplar visões omitidas.

Presentificadas, por meio de suas memórias, são as narrativas daqueles homens e mulheres que mostram o lugar da tradição e que papel ela assume diante de projetos que insistem em afirmar que seu lugar é o passado. São apresentados, a seguir, moradores entrevistados e cujos relatos foram selecionados para compor este estudo. Eles representam as “vozes vivas do passado/presente” que narram a riqueza de suas experiências.

Dona Maria Chefe, ex-garimpeira, nascida em 1936, em Cajueira, Goiás. Foi para a Vila São Jorge trabalhar no garimpo. Criou os filhos com o trabalho nos garimpos da região. É uma referência no povoado, pois como dizem é muito “remedeira”; foi parteira e benzedeira.

Dona Chiquinha, dona de casa, nasceu na Bahia, em 1925, mas viveu toda sua vida na Chapada dos Veadeiros. Viveu a experiência do garimpo e as mudanças que ocorreram na região com a criação do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. É proprietária de uma pousada tradicional na Vila São Jorge, Pousada da Dona Chiquinha, procurada especialmente pelos mais jovens que visitam a Chapada.

Seu Domingos, ex-garimpeiro, lavrador, mineiro de Paracatu, foi para São Jorge para trabalhar nos garimpos. Vive no local desde 1951. O garimpo está muito marcado na sua história de vida. Segundo ele, guarda até hoje os instrumentos que garimpava e tem mais de 100 fitas gravadas sobre histórias do garimpo na região. Na Vila, o conhecem como o contador de “causos”. Está sempre presente nos locais “tradicionais” da Vila, que também são freqüentados por visitantes e chegantes.

Seu Otávio, ex-garimpeiro e comerciante. Nasceu em Teresópolis, Rio Janeiro, em 1944. Foi para a Vila São Jorge na década de 60. Fixou-se na região e é casado com uma nativa. Trabalhou também em fazendas da região, e acompanhou todo processo de estruturação do Parque Nacional. É dono de um comércio e de uma pequena pousada.

Seu Waldomiro, fazendeiro, nascido em 1942, na Chapada dos Veadeiros. Vive em sua fazenda, que faz limite como o Parque Nacional. É uma referência na região e para turistas que visitam a Chapada. Transformou parte de sua fazenda num rancho onde vende produtos do cerrado, fabricados por ele e sua família, e oferece refeições típicas da região. Viveu toda sua vida na Chapada dos Veadeiros.

Seu João de Teodora, raizeiro, parteiro, tem 75 anos. Nasceu em Alto Paraíso de Goiás. Sempre viveu na Chapada dos Veadeiros. Mora num sítio com sua esposa, local onde criou todos os filhos. Trabalhou no garimpo. Sua experiência é marcada por vários momentos da história da região. É uma referência na comunidade, pois além de parteiro, é benzedor, faz garrafadas consumidas por muitas pessoas do local.

Dona Flor, parteira, raizeira, e benzedeira. Nasceu em 1938, na fazenda Santa Rita, município de Alto Paraíso. Conhecida em toda a Chapada dos Veadeiros pelos dotes que tem com os “remédios do mato”. É moradora do povoado do Moinho. Vende os produtos que faz com as plantas de cerrado, entre eles garrafadas, em lojas de Alto Paraíso. Sua entrevista foi incorporada a esta pesquisa, porque Dona Flor tem uma história de vida que registra sua experiência com os usos das plantas do cerrado, e mantém esse conhecimento ainda vivo: no uso cotidiano, na venda que faz de remédios e outros produtos, nas indicações de usos dos remédios para pessoas que a procuram, nos partos que ainda realiza.

Maria Barbosa, ex-garimpeira, nasceu em Alto Paraíso. Trabalha como guia no Parque Nacional. É uma referência na comunidade por conhecer bem as plantas do cerrado e suas múltiplas utilidades. É muito solicitada por visitantes e pesquisadores que procuram o Parque Nacional para estudos, pois reconhece com facilidade as plantas e seus usos.

Téia, comerciante, professora e vereadora. Nasceu na Vila São Jorge. Filha de ex- garimpeiros, viveu o tempo em que o garimpo na região entrou “em baixa”. Morou em Brasília por causa dos estudos, mas depois voltou para São Jorge. É uma das lideranças da comunidade; preside a Associação dos Moradores da Vila São Jorge.

Edson, nasceu na Vila São Jorge. Filhos de ex-garimpeiros, também trabalhou no garimpo, mas quando já estava “em baixa”. Conhece os usos das plantas do cerrado e traz em sua entrevista lembranças de usos que os mais velhos faziam.

Adelídio, ex-garimpeiro, nasceu na Vila São Jorge. Trabalha como guia no Parque Nacional. É uma referência entre os guias, pelo conhecimento que tem sobre as plantas do cerrado. Também é muito solicitado por pesquisadores que visitam o Parque. É casado com Maria Barbosa.

No próximo capítulo são apresentados os relatos dessas onze pessoas, num recorte interpretativo que salienta saberes, fazeres, conflitos, diálogos, alegrias, dificuldades, sonhos, esperanças e outros temas que marcam a experiência de vida daqueles homens e mulheres. No processo de edição, juntei frases e períodos, mas com o cuidado de não distorcer conteúdos e sentidos presentes em cada entrevista. Em alguns relatos aparecem perguntas feitas durante a entrevista para salientar aspectos relevantes para a interpretação.

As entrevistas foram editadas obedecendo às normas gramaticais da língua portuguesa. Essa opção privilegia as diferenças entre elas apenas no conteúdo de cada relato, e não no português falado pelos entrevistados. Ainda que tenham sido feitas correções gramaticais, foram mantidos modos de falar próprios daqueles moradores e o sentido de cada relato.

Nos capítulos seguintes, foi com esses onze narradores que o diálogo foi estabelecido para tecer interpretações e responder aos questionamentos levantados. O trabalho com memórias envolve uma dimensão dialógica que lhe é intrínseco. As interpretações e explicações coexistem com as interpretações contidas nas palavras que reproduzimos de cada fonte e, ainda, com as interpretações que os leitores fazem dela. O fato de se pretender fiel ao que é dito pelo entrevistado não significa que devemos ser fiel a seu modo de ver o mundo (MAGALHÃES, 1996, p.27). As interpretações que aparecem ao longo deste trabalho são minhas, e traduzem impressões das entrevistas que fiz com moradores da Vila São Jorge nos vários momentos em que tive o prazer de ir à Chapada dos Veadeiros.