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Figura 2.4 – Seu Otávio.

Eu nasci em Teresópolis, no Rio de Janeiro, em 1944. Eu vim do Rio para Brasília e de Brasília para aqui. Fiquei um tempo em Brasília, trabalhando na construção; vim acompanhando o meu padrasto que mudou do Rio para Brasília, ele era funcionário dos Correios. Eu estava com dezoito, dezenove anos. Trabalhei um ano mais ou menos em Brasília, depois eu vim para aqui, isso em sessenta e dois. Foi uma turma que passou lá e me chamou. Aí eu vim. Vim com eles. “Vamos para o garimpo, na Chapada, lá tem um garimpo de cristal, lá tem muito cristal”. Aí, a gente veio. Você sabe que os jovens acompanham todas as influências, eu mesmo fui influenciado pelos outros. Daqui eu fui para Rondônia, passei um ano lá. Rondônia eu fui porque a terra estava boa. Depois voltei para aqui, já tinha mulher e filho.

Aqui eram só uns barraquinhos de palha, casinhas de rancho de garimpeiro. Umas vinte casas assim. Aí tinha a “Rodoviarinha” ali embaixo, lá era o ponto, todo mundo ia para lá. Lá era assim: todo mundo fazia um rancho, ficava mais perto do garimpo. Moramos lá muito tempo.

Iniciei no garimpo, tirava pouca coisa, não tirava muita coisa não. Quem pegou muito cristal aí foi esse Zé Corinto, um tal de Lindolfo, Manuel Machado, essa turma pegou muito cristal, Otaviano, que era de Formosa.

Aqui tinha muito raizeiro, mulheres parteiras, essas coisas. Geralmente as mulheres que são parteiras, são raizeiras. Sabem remédios para isso, para aquilo e tal, e os raizeiros também. A gente tinha sempre as pessoas certas, né. Tinha o velho Vilmiro, tinha a velha, mulher dele que era muito boa de raiz.

Aqui era muito comum, tradição mesmo, porque não tinha farmácia, não tinha nada. Se não tivesse uma pessoa para dar um remédio, uma raiz, uma coisa assim, morria. Eles falavam: “Ah! Vou curar fulano”, se era mordida de cobra, “fulano benze”, era sempre assim. Corria para o benzedor! Eles faziam garrafadas de remédio aí tomavam.

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Quando a gente trabalhava assim em lavoura, nesses lugares assim, sempre dava isso. Aqui tem uns meninos, todos já foram ofendidos de cobra, mas foram curados como o remédio de raizeiro. Picada de escorpião do mesmo jeito. Aqui era obrigado a gente se remediar com o que tinha. Se não tem uma farmácia, não tem nada, você tem que apelar para eles também, tem que seguir o ritmo. Já andei em volta aí tudo, até hoje ainda têm muitos desses raizeiros aí, dentro desse vão.

(...) O Parque já estava tomando de conta, foi fechando, já foram explicando para os garimpeiros que ia mudar a situação, que ia passar para outra e tal, que ia mudar para o turismo. Que ia ter emprego, emprego para todo mundo, ia ter o que fazer né. E como o Parque está tendo emprego, o pessoal é guia, já tem o que fazer.

Aqui tinha muita coleta de flor. O povo coletava, eu não coletei, não. Eu fui ajudar as pessoas a transportar a pé. Aí todo mundo ia colher a palipalan, a garandinha; a cascudinha, que dá uma cabecinha assim. Isso foi em 80/85.

Tinha época que a coleta de flores dava mais dinheiro do que o garimpo, aí todo mundo corria para colher as flores. Em dinheiro, rendia mais. Era uma forma de sobrevivência, só que era uma coisa assim, uma coisa rápida. Ela passava rápido, ela perde rápido, num instantinho ela mofa, fica preta, aí não presta mais. A fase boa mesmo é aquela quando ela esta clarinha, bonita.

Tinha a associação dos apanhadores de flores, fazia pacotinho, tudo certinho, amarradinho. Aí levava para São Paulo, aí de lá eles tinham um projeto, mas aí não foi para frente. Começou e depois não deu certo. Porque já tinha um responsável para comprar elas direto né. Porque a época da coleta de flor era variada; a gente garimpava, não era certo, e a flor era certo, aquele negócio, rotina. Todo mês tinha que pegar cem quilos de flor nos lugares certos; aí depois ficou difícil, porque também acabou a área que tinha. A área era só para os lados do Parque. Nessa região às vezes fica branquinho assim de flor.

Todo mundo coletava, era criança, era adulto. A gente ia e carregava as flores até a estrada. Amarrava nos animais e levava as flores. Tinha que montar um rancho lá, porque ia para dormir, fazia comida e tudo. Eu fazia uns ranchinhos de palha, aí ficava lá para dormir à noite. As flores iam mais para São Paulo. É que nem o cristal, nunca ficou aqui nos arredores de Brasília, aqui em volta. Mandava para Cristalina, de Cristalina ia para o Rio, e do Rio ia para exportação.

A coleta de flor durou uns cinco anos, mais ou menos. Acabou porque aí o Parque foi delimitando, fechando. Cada fazendeiro também foi tomando o seu limite, fechando. Aí o espaço ficou reduzido. É que nem o garimpo mesmo...

Lá no Parque tinha uma grande criação de gado. Tinha uma fazendona aqui, o dono dela já morreu, morreu ele e a mulher. Então, eu olhava gado para eles, duas, três mil cabeças de gado. Nossa turma mesmo era logo três cabeças de gado. Vinte, trinta pessoas. O garimpo é um serviço muito pesado então acaba comendo muita carne.

Tinha um garimpo aqui na frente que chamava Garimpão do Cerrado, que era um cerrado mais grosso, fechado. Tinha o Canela-de-Ema, porque lá só tinha canela-de-ema no lugar. Tinha a Estiva... lá era um lugar igual uma cidade, de tanto garimpeiro que tinha. Lá tinha uns... pra lá, tinha mais de quinhentos moradores. Muita gente! Morador mesmo assim de barraco, bem assentado, bem instalado. Hoje, não existe mais, existe o local, o terreno, está lá dentro do Parque.

Foi muita gente embora. Eles eram da Bahia, do Nordeste, esse pessoal nordestino foi quase tudo embora. Deu baixa no garimpo, outros ficaram, morreram, foi acabando. Era tudo garimpo: Canela-de-Ema, Cerradão, Chiqueirinho, Brumado, Vaca Preta.

Tem uns coquinhos que o povo usava muito para fazer óleo. O povo fazia óleo de pequi, sabão de tingui. A minha mulher faz, de tingui, de pequi e tudo. O de tingui tem que deixar de molho muitos dias, porque ele solta uma tinta! Aí ele vai ficando de molho naquela água, escorrendo aquela água, até ficar branquinho, parecendo uma baitê. Ainda tinha que cozinhar! Elas fazem tipo um cesto com a copa do buriti, fecha e faz uma grade assim e solta a cinza dentro, vai soltando e o pondo lá. Aquela aguinha vai pingando lá embaixo, aquela água é igual soda, chama de coada. É para dar a espuma do sabão e fazer a limpeza da roupa. É uma ciência danada. Eu via, a mãe da Dona Chiquinha fazia muito, a dona Chiquinha fazia esse negócio. Tirar a de coada da cinza pra fazer sabão. Aproveita a cinza do fogão, tira do fogão para fazer a limpeza do fogão, já bota naquele cesto.

Até pouco tempo era lamparina, agora que é energia. Usava querosene mesmo para clarear a casa. Tinha essa tradição. Tem muito recanto aí para baixo, é porque vocês não andam aí em lugares isolados igual à Capela, aqui para baixo, tem uma tal de Ponte, tem gente que nunca viu nem remédio, que nunca foi em farmácia.

Quando estava demarcando, medindo o Parque, eu ajudei. Eles pegaram o pessoal da comunidade para ajudar. O pessoal também conhecia a região, tinha que levar. Isso foi em noventa e dois. Não tinha cerca, não tinha demarcação. Porque lá tinha as fazendas, então foram demarcando. “Daqui para cá é fazenda, para cá é Parque.” Então, foi demarcação na cerca, passando por Cavalcante, Alto Paraíso. Só não fecha quando chega em Teresina.

O cara já ia com o mapa e já mostrava. O fazendeiro também ficava orientado a embargar se quisesse, podia ligar. Até casa ficou dentro do Parque, fazenda ficou dentro do

Parque. Ficou tudo dentro da área do Parque, eles não mexeram não. E não foi indenizado também não, porque o cara fez dentro do limite da área.

Hoje, é melhor, porque os guias pegam instrução para trabalhar nessa área, porque vão junto com o professor e vão ensinando a eles como que é o cerrado. Eles vão tendo mais prática e mais experiência, então vão tendo mais cuidado. Tem muito dono de terra que hoje sabe que não pode cortar árvore, que não pode fazer isso, que não pode fazer aquilo. Quer dizer, já estão todos acompanhando o regime. Já vão criar os filhos deles nesse limite, entendeu? Conservar as cabeceiras de água e tudo.

Aqui, esta geração vai ser muito difícil de compreender as coisas, porque ela está em outro mundo, outra idéia. Estão para o lado da música, estão para o lado de outras coisas. Não pensam mais. Daqui a pouco, quando acabar esta geraçãozinha da nossa época, você vai chegar, qualquer um que chegar para fazer uma entrevista dessa ninguém sabe mais nada. Ninguém se lembra mais de nada.