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Campanhas comunicacionais contra o HIV/AIDS feitas por organizações da sociedade

No documento stephanielyaniedemeloecosta (páginas 69-75)

2. AIDS COMO QUESTÃO COMUNICACIONAL

2.2 PESQUISAS EM COMUNICAÇÃO & AIDS NO BRASIL

2.2.4 Campanhas comunicacionais contra o HIV/AIDS feitas por organizações da sociedade

Nesta subseção, vamos apresentar o estado da arte das pesquisas sobre as campanhas públicas comunicacionais de enfrentamento ao HIV/Aids feitas por organizações da sociedade civil relacionadas à Aids (OSC-Aids). Adiantamos, desde já, que não há vasto material sobre o tema, tampouco sobre as campanhas específicas de OSC-Aids de Minas Gerais, objeto particular de nosso interesse.

Como vimos na subseção anterior, as campanhas de cunho local são mais próximas à realidade de seus públicos e, por isso, funcionariam melhor no combate a uma epidemia de Aids tão marcada por diferenças regionais, como é a brasileira. Segundo Nascimento (2005, p. 99), “a ação governamental em relação à saúde é sabidamente pouco eficiente e eficaz, tanto em termos de prevenção (faltam campanhas e materiais educativos adequados) quanto de assistência [...]”. E justamente por ser improvável que o Ministério da Saúde destine 100% de seu orçamento a campanhas para mídias alternativas (PAZ, 2007, p. 130), esta tarefa importante fica a cargo das OSCs. Ademais, as campanhas realizadas pelas instâncias governamentais nunca abarcarão as disputas em torno da epidemia, protagonizadas pela sociedade civil organizada e pelas PVHAs que discordam das políticas públicas de enfrentamento:

No caso da aids, o planejamento publicitário fica marcado por essa disputa entre o que o objeto pede (falar de diferenças, problemas, impasses) e o que o anunciante governamental pode (mostrar exatamente o oposto disso). O planejamento realizado na agência de propaganda organiza-se, então, não só em função das demandas do problema “anunciar a prevenção à aids”, mas também, e principalmente, em função de uma aids que seja anunciada “sem expor o governo” (PAZ, 2007, p. 131).

No Brasil, a militância das OSCs-Aids resultou em uma atuação fundamental para a informação e prevenção da doença, forçando a definição das políticas de saúde (NASCIMENTO, 2005, p. 99). A Aids provocou muitas informações, de várias e múltiplas fontes e, para Brito & Pedrosa (2011, p. 25), “as ONG e redes de luta contra a Aids têm papel fundamental no processo de democratização dessas informações, socializando-as com as comunidades que representam e/ou se relacionam”. Para os autores, as campanhas feitas por OSCs seriam desejáveis à medida que trariam outros discursos, outras vozes, outras visões sobre o HIV/Aids, a prevenção, a sexualidade, a atenção ao doente etc. Elas ajudariam a romper com a hegemonia de sentidos do Ministério da Saúde sobre essas esferas.

É nesse cenário de extrema concorrência sobre os sentidos da epidemia que irrompem as campanhas publicitárias do governo. Não se pode afirmar que a publicidade é apenas mais uma voz que se ergue, tentando se fazer ouvir entre as outras: a publicidade é voz autoritária que pretende silenciar as outras. Sua busca é pela (impossível) última palavra. A despeito da existência de outros sentidos não midiáticos (na) para a aids, é o sentido publicitário que se propõe como hegemônico. A publicidade mascara os conflitos que fazem parte das relações eróticas e estereotipa gêneros e papeis sexuais (PAZ, 2007, p. 158).

Antes mesmo de as esferas governamentais elaborarem campanhas de informação sobre o HIV, as OSCs já produziam material, também caracterizado pela tentativa de desconstruir estereótipos negativos sobre a doença e seu portador. Pelo menos desde 1983 (portanto, antes das primeiras campanhas ministeriais), grupos de militância homossexual promoviam campanhas de esclarecimento (CARVALHO, 2009, p. 130). Segundo Cardoso (2001, p. 93), seus discursos destoavam das iniciativas do governo, do sensacionalismo da mídia e do discurso religioso, em prol da inclusão de temáticas culturais e socioeconômicas mais amplas. Um exemplo disso é o cartaz abaixo66, feito pela OSC ABIA, do Rio de Janeiro. Segundo Nascimento (2005, p. 151), a peça foi desenvolvida em resposta à campanha do Governo federal de 1991. Nela, Deus entrega ao homem um preservativo. Esta campanha, claro, teve menor poder de disseminação, mas representou avanços em relação às mensagens do governo:

[...] este cartaz só poderia ter sido produzido por uma ONG, pois [...] certamente implicaria indesejáveis conflitos por motivos morais entre o Estado e a Igreja Católica. [...] representa, sem dúvida, um enorme avanço na concepção de prevenção da doença, rompendo com preconceitos presentes na própria visão do governo federal sobre a Aids (NASCIMENTO, 2005, p. 151).

ABIA. 1991.

Em 1985, surgiu a primeira OSC criada especificamente para a Aids na América Latina (LIMA, 2006, p. 136), o GAPA-SP, que criou o primeiro cartaz de alerta e prevenção

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feito pela sociedade civil brasileira (Anexo 2.467). Desenhado pelo artista plástico Darci Penteado, trazia o slogan Transe numa boa e o número do telefone do DISK Aids, serviço oferecido pela SES-SP (Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo). Foram impressos três mil exemplares, a serem distribuídos pela cidade de São Paulo, nos locais frequentados pela “população em situação de risco”: saunas gays, hotéis, escolas, bares etc. O cartaz suscitou as primeiras discussões com a sociedade sobre seu caráter educativo e polêmico: era a primeira vez no Brasil que se falava abertamente em “sexo seguro”. A Igreja acusou o GAPA, por meio da imprensa, de estar incitando ideias pecaminosas, como sexo fora do casamento; alguns políticos pressionaram a SES-SP, acusando-a de estar promovendo pornografia com o dinheiro público; houve boatos de que a polícia tentaria apreender os cartazes por meio de uma liminar (CONTRERA, 2000, p. 45-46).

A parceria entre OSCs e governo começou em 1989, quando o Programa Nacional de Aids lançou o Projeto Previna, focado em “grupos de risco” e modelado segundo teorias de mudança de comportamento “baseadas, em um primeiro momento, no ‘acúmulo’ de informação – fornecida por integrantes de ONGs ou da população-alvo – sobre determinado grupo/situação, para, em um segundo momento, [...] ‘ensiná-los a viver’.” (GALVÃO, 2000, p. 185). Portanto, esse primeiro momento foi marcado por uma visão instrumental da comunicação.

Essa parceria entre sociedade civil e Programa Nacional de DST/Aids expandiu-se durante a década de 1990, principalmente depois do primeiro empréstimo do Banco Mundial, em 1994, em parte para atender a uma demanda de organismos internacionais, técnicos e de financiamento. A partir dele, o governo passou a financiar projetos de OSCs por meio de editais. Com mais verba, elas puderam desenvolver suas campanhas. Segundo Cardoso (2001, p. 95), a principal estratégia comunicacional das OSCs era de ação local e interpessoal com populações mais vulneráveis visando a prevenção, articuladas às secretarias estaduais e municipais de saúde. “Dependendo da composição técnico-ideológica das entidades envolvidas, essas estratégias podem aproximar-se mais ou menos da ênfase na responsabilidade individual”. Entretanto, algumas OSCs percebem que o conhecimento da epidemia não implica necessariamente na adoção, pelas pessoas, de práticas consideradas seguras, e passam a buscar inovações no modelo comunicacional empregado.

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Com a crescente percepção de que as relações de poder em sociedade (e a consequente desigualdade social, econômica e cultural) respondem também pela disseminação do HIV, as OSCs têm trabalhado com a capacitação coletiva e a mobilização comunitária calcadas nas ideias de Paulo Freire de construção da consciência mediante o diálogo social: o agir junto com os outros para a correção da injustiça social (PARKER, 2000, p. 105).

Porém, muitos estudiosos têm se preocupado com o financiamento público das OSCs. Eles temem que, por isso, elas estejam perdendo sua autonomia discursiva frente à epidemia, seu poder contestatório. Depoimentos de publicitários que desenvolveram campanhas ministeriais dão conta de que arrefeceram, com o passar dos anos, as críticas dos representantes da sociedade civil à abordagem publicitária dessas campanhas (PAZ, 2007, p. 151).

Parece-me impossível que esta vinculação, em algum nível e de forma intencional ou não, acabe envolvendo o atrelamento do movimento social e diminuindo seu potencial crítico. Algumas leituras o colocam na raiz do aumento do trabalho de cunho assistencial e filantrópico, em detrimento da militância e da atuação para a reversão dos determinantes socioeconômicos e culturais da conjuntura sanitária em geral e, em particular, da epidemia de Aids. [...] Se recursos financeiros e espaços sociais de intervenção podem ser compartilhados, ainda que com condicionantes, o mesmo não se pode dizer, porém, da cena enunciativa das campanhas televisivas, em que o emissor institucional não convoca a presença de outros importantes enunciadores, parceiros em projetos de prevenção e controle da epidemia. Note-se, por exemplo, que o recurso de trazer soropositivos, familiares, lideranças, com direito a voz, só foi utilizado em duas oportunidades [nas campanhas ministeriais entre 1987 e 1999] (CARDOSO, 2001, p. 137, colchetes nossos).

Além disso, percebe-se que as OSCs têm copiado as estratégias comunicacionais empregadas pelo Ministério da Saúde nas suas campanhas de prevenção, pois sabem que assim o agradam e têm maior chance de ganhar os editais. Segundo Josi Paz (2007, p. 109), as OSCs também têm utilizado o formato publicitário em suas campanhas e ajudado a legitimar as ações de prevenção à Aids por meio dele. Exemplo disso é a campanha abaixo, da OSC Gapa-RS, criada em 1995 seguindo o mote da campanha do Governo federal, cujo público- alvo da vez eram as mulheres. A mensagem reforça o uso da camisinha masculina como o método de prevenção (NASCIMENTO, 2005, p. 158) e impõe à mulher cuidar da prevenção entre o casal – quando, como vimos, negociar o uso do preservativo não tem sido uma tarefa fácil para elas:

Gapa-RS. 1995. “As MULHERES têm muito mais jeito para escolher as camisas dos homens”. Não é porque as campanhas são feitas por organizações da sociedade civil que elas são melhores ou sempre acertam. Muitas vezes também estão tomadas por discursos normativos, hegemônicos ou preconceituosos. No estudo de recepção feito por Marinho (1999) com adolescentes na Bahia sobre três campanhas contra a Aids (uma do Ministério da Saúde, outra da MTV e uma da ONG Gapa-BA), foi justamente a peça da ONG (Mulher) a que mais promoveu medo e, por isso mesmo, foi a menos quista pelos pesquisados. Ela foi desenhada em oposição à campanha Bráulio68, do Ministério da Saúde (também avaliada pelos entrevistados) e mostrava uma mulher real, soropositiva, que dizia ter sido contaminada por seu companheiro afetivo fixo. Os sentidos atribuídos à peça pelos adolescentes foram justamente aqueles que a campanha queria combater: “‘Mulher’ [...] foi indicada como a peça que gerou medo de contágio pelo vírus da Aids, que condenou a prática de múltiplas parcerias, que associou as práticas sexuais à doença” (MARINHO, 1999, p. 110).

O tema da morte por Aids, tão explorado nas primeiras campanhas ministeriais, foi sendo abandonado pelo Ministério da Saúde, principalmente devido às críticas ao tom fatalista feitas pelas OSCs. Entretanto, acabou-se por criar o efeito contrário: as pessoas não têm percebido a Aids como um risco de vida, já que há tratamento. “Ainda se morre de Aids. A aids ainda mata. [...] Os benefícios da ciência trouxeram novas interpretações para a epidemia, embora existam incríveis dúvidas sobre a eficácia do tratamento a longo prazo. Nada disso, porém, está presente nas bem-humoradas campanhas publicitárias do governo.” (PAZ, 2007, p. 94). Por isso, o tema da morte tem retornado em algumas campanhas de

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OSCs-Aids, como notado por Josi Paz (2007, p. 50) em uma campanha do Gapa-DF de 200369, e percebida por nós em campanhas do Gapa-BA de 2007 a 2009 (Anexos 2.1 a 2.3).

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O anúncio de revista trazia a imagem de um cemitério, cheio de cruzes em formato T, e o texto “Transar sem camisinha dá o maior tesão”.

3 SAÚDE E SOCIEDADE

Neste capítulo, mostraremos como as sociedades modernas e contemporâneas definiram a saúde e a doença, o normal e o patológico, instituindo uma nova forma de poder sobre os corpos dos indivíduos e das populações, exercido principalmente através de políticas de Estado. Apresentaremos um breve histórico sobre a resposta nacional brasileira à Aids, construída também por meio de reivindicações da sociedade civil, organizada em torno de bioidentidades, ora questionando esse poder, ora reforçando-o.

No documento stephanielyaniedemeloecosta (páginas 69-75)