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CAMPO RELIGIOSO X CAMPO PODER = OBRAS SOCIAIS

CAPÍTULO 2 TOMADA DE POSIÇÃO NO SUBCAMPO RELIGIOSO MARISTA:

2.3 CAMPO RELIGIOSO X CAMPO PODER = OBRAS SOCIAIS

Mudanças, transformações, inovações..., os processos de avanço no espaço social sempre são envolvidos por relações e geralmente complexas, capazes de provocar tensionamentos no jogo das relações sociais e nas disputas entre os diversos campos.

As “mudanças” podem resultar de um processo participativo dentro de uma organização em que o grande grupo vê a necessidade daquela opção, ou então de uma decisão de um grupo menor de representantes. Podem também ser resultado de diversos fatores combinados que formam um cenário dentro do espaço social capaz de conduzir a organização para aquela decisão. Tal construção aconteceu no momento em que o XIX Capítulo Geral propôs que cada província fundasse uma obra social, pois para os maristas do Brasil, além da orientação dentro do subcampo feita pelos superiores, existia a força da Lei da Filantropia empurrando para tal decisão, conforme vimos no capitulo anterior.

É importante percebermos que as transformações, as novas estruturações, ou as reestruturações acontecem a partir das relações, dos tensionamentos entre os campos, o que não significa necessitar de conflitos que deixem “feridas” nas relações entre os campos, ou mesmo no interior do subcampo, porém o fato de existir relações permite que se jogue, que se possa ter estruturas estruturantes, em que o próprio campo religioso ao entrar no jogo com os demais campos possa capitalizar suas ações, uma vez que “a estrutura das relações entre o campo do poder e o campo religioso comanda a configuração da estrutura das relações constitutivas do próprio campo religioso” (BOURDIEU, 1974, p.73).

No subcampo religioso marista do RS, foram as relações e a estruturação, não só do jogo entre os agentes, mas de uma nova forma de conceber a “missão”

71 Conclusão de um documento marista: “Incrementar o uso dos bens com critérios evangélicos e em

favor dos mais carentes: - implementando um Plano Provincial que contemple a partilha de bens materiais e econômicos”. Trecho extraído de uma Revista Marista de circulação interna, que apresenta as conclusões da CLAP de 1991, na página 12.

marista, que levaram os maristas a iniciar um novo processo de relações entre o campo religioso e o campo do poder, promovendo um tensionamento capaz de resultar na fundação de obras sociais, que, conforme pesquisa, foi “materializado” na decisão de fundar o CESMAR, obra social que se capitaliza justamente a partir das relações entre o campo religioso e o campo do poder.

2.3.1 CESMAR e Primeiras Obras Sociais: Marco no Subcampo Marista do RS O subcampo marista, na década de 90, capitalizou suas ações através das obras sociais que eram fundadas, estruturadas e adaptadas. A decisão dos maristas em fundar o CESMAR foi um marco histórico e impulsionador para o subcampo marista que enxergava nesta obra a grande possibilidade de “reprodução do habitus marista”. Como podemos ver, no objetivo escrito logo na fundação, o misto de religião com caridade, ação típica do campo religioso na busca da “salvação” das almas, é bem expresso:

O CESMAR é um espaço para formação humana e cristã, com atividades esportivas, recreativas e artísticas, técnicas agropecuárias, meios para saúde e alimentação, técnicas profissionalizantes, orientação nos estudos, supletivo de 1º grau orientação e apoio sociofamiliar (RODRIGUES, 2000, p. 565).

O que não significa nenhuma ação violenta contra os atendidos, mas demonstra a clara intenção de buscar, com as obras sociais, resolver conflitos sociais com “técnicas” religiosas, com a produção do “habitus religioso”, em substituição do habitus já incorporado anteriormente junto às famílias, se levarmos em conta que o

habitus – é essa “disposição cultivada”, que permite a cada agente

criar, a partir de um pequeno número de princípios implícitos, todas as condutas conformes às regras da lógica do desafio e da resposta e apenas elas (BOURDIEU, 2003, p. 160).

Ou mesmo a resposta de um jovem que teve sua formação no CESMAR e que percebe que as “incorporações” foram importantes para ele e que agora gostaria que outros também incorporassem tais disposições, o que demonstra, mesmo que parcialmente, a concretização do objetivo inicial da obra social:

Vou tomar a minha atitude como exemplo, até pra ficar mais fácil para entender. Eu acho que a pessoa quando sai daqui tem que ter uma "cabeça", já formada, com o que se quer da vida, o que se quer pra si e conseguir pensar com a sua "cabeça" nada de ir "na pilha" dos outros. Mas uma das características mais fortes é a simplicidade, a pessoa sai bem simples daqui e também a força de vontade em querer mudar e crescer.72

As Obras Sociais possibilitaram aos maristas estabelecer novas relações no espaço social, não só com instituições ou campos (no sentido mais impessoal), mas também diretamente com os agentes (pessoal). Percebendo o aumento de capital simbólico gerado pelo CESMAR, decidem ampliar a rede de atendimento nas periferias abrindo novas obras sociais, no intuito de abranger uma gama maior de cidadãos envolvidos na produção do habitus religioso marista. Fato que não podemos esquecer de citar é que a conjuntura sociopolítica da década de 90 foi fundamental para que a mudança de paradigmas entre os maristas, acostumados com a educação nos colégios particulares, se concretizasse. Foi estabelecido um processo de mudança estrutural, ou seja, no “habitus religioso marista”, pois as obras sociais surgiam como nova proposta, que foi valorizada por muitos maristas no interior do subcampo, como a encontrada na resposta abaixo, dada por um Irmão Marista que vê a importância de outras Províncias se juntarem à rede de obras sociais.

Bom, veja, eu acho que isso foi uma conquista muito grande (fundação de obras sociais) e criou uma capacidade de disponibilidade em muitos Irmãos, muito maior. Eu esqueci de dizer antes, isso já repercutiu nas outras duas Províncias, porque antes as Províncias não tinham obras sociais. Hoje elas têm dezenas de obras sociais. Este aspecto social foi muito rico dentro da Província e acrescenta muito dentro da Congregação também [...], mudou, mudou. E acredito que mudou e ainda está mudando hoje [...].73

A opção administrativa de responder aos apelos do Capítulo Geral e à pressão feita pelo Governo Federal levou os maristas a interagirem com diferentes grupos sociais ligados à defesa de direitos dos cidadãos, na perspectiva de solucionarem situações de vulnerabilidade social, através de ações educativas. Esta mudança de posição dos maristas no espaço social deve ser compreendida num contexto de grupo, de “habitus institucional”, em que “constância e rotina podem ser

72 Entrevistado G. 73 Entrevistado A.

obra de indivíduos, porém inovação e revolução constituem obra de grupos, de subgrupos, de seitas e de indivíduos agindo por e para os grupos” (BOURDIEU, 1974, p.74). Portanto, se a fundação das primeiras obras sociais maristas significa um marco na Província do RS, foi porque houve mudança significativa na ação do grupo de Irmãos, decididos a agir em prol da Instituição, ou seja, da Província do

RS, colocando energia (libido)74 no processo de fundação das obras sociais.

A “estrutura, estruturada e estruturante” (DESAULNIERS, 1993, p.49) da entidade marista foi envolvida por uma dinâmica “nova” impulsionada pela fundação das obras sociais e que começou a modificar o habitus dos maristas. As relações se ampliavam seqüencialmente, em alguns casos, eram firmadas pelo poder simbólico

e fundamentadas num discurso religioso de caridade75, que agora havia incorporado

elementos fortes da assistência social e do atendimento aos cidadãos vulneráveis da sociedade. O “poder simbólico” dos maristas aumenta, mais capital é agregado à entidade com a fundação das obras sociais, possibilitando novas relações e trocas, ampliando a atuação dos maristas no espaço social, através do envolvimento nos jogos entre os campos, onde

as espécies de capital, à maneira dos trunfos num jogo, são os poderes que definem as probabilidades de ganho num campo determinado (de fato, a cada campo ou subcampo corresponde uma espécie de capital particular, que ocorre, como poder e como coisa em jogo, neste campo) (BOURDIEU, 2002, p. 135),

possibilitando ao subcampo religioso marista disputas que não lhe causam perdas, ao contrário, aumentam o capital simbólico, mesmo que para isso tenha sido necessário estabelecer novas prioridades e mudanças estruturais no interior do próprio subcampo.

No momento em que os maristas iniciaram o processo de reestruturação do atendimento em prol de cidadãos mais vulneráveis, não “abriram mão” de permanecerem fazendo o que mais sabiam, ou seja, educação de crianças e adolescentes. As obras sociais, inclusive o CESMAR, tinham como característica

principal a educação76, permitindo assim que os maristas permanecessem no campo

74 Cf. Bourdieu (1996, p. 141): “De fato, existem tantos tipos de libido quanto de campos: o trabalho

de socialização da libido é, precisamente, o que transforma as pulsões em interesses específicos [...]”.

75 Cf. Bourdieu (1974, p. 91): A legitimação do discurso acontece por ações de ordem simbólica. 76 Apêndice A.

de atuação já “dominado” por eles e ao mesmo tempo podendo, através do habitus

religioso, transformar o cidadão. A educação permite a incorporação do habitus, que

depois permanecerá no cidadão, o que acaba legitimando o trabalho dos maristas que contribuem de forma sistemática com o campo religioso na produção do habitus religioso, utilizando-se do campo educativo para isso ao longo de mais de um século de presença no RS, até porque

as obras mais duradouras realizaram-se no campo educativo, o qual ocupava um papel de destaque, na perspectiva do catolicismo social, abrangendo desde as atividades de caráter mais lúdico, até as que envolviam uma formação profissional prolongada, às vezes feita em regime de internato fechado. Em todas estas iniciativas, a principal meta a atingir era a da formação do novo homem, baseada na ética e moral cristã (DESAULNIERS, 1993, p.115).

As obras sociais maristas no RS estabeleceram um marco na história deste subcampo, uma vez que permitiram a mudança na estrutura do mesmo e também conferiram aos maristas competência para atuarem e serem reconhecidos na área da defesa dos direitos da criança e do adolescente e dos cidadãos mais vulneráveis, permitindo-lhes maior poder de barganha nas relações entre os campos e na produção do habitus religioso marista nas camadas menos abastadas financeiramente do RS, até então impedidas de ter acesso à educação marista nos colégios particulares devido a vários fatores de ordem institucional e financeira. Uma nova possibilidade se estabelece para os cidadãos vulneráveis, ou seja, um marco é fixado na Província Marista do RS: CESMAR.