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Do caos para o reinício do mundo: a matriz do discurso histórico nacional

A história está errada Nunca houve escravatura

Nunca houve domínio de minorias Orgulhosas da sua força

Agostinho Neto, Renúncia Impossível.

Os romances que até ao momento abordámos mostram relações evidentes com a História. São relações que pretendem, geralmente, salientar a construção da identidade nacional de um povo à procura da sua própria História. Esta procura faz-se, como vimos, com recurso a acontecimentos do passado, personagens históricas ou recurso à intertextualidade. Deste modo, nestes romances destaca-se a ironia histórica, na medida em que se aborda a História com distanciamento crítico, de forma sobretudo a fazer sobressair as imperfeições na construção da identidade. Assim, desconstroem-se narrativas tidas como paradigmáticas, como Os Lusíadas e História Geral das Guerras Angolanas, ficcionalizando-se anti-epopeias.

A seriedade do objectivo — recordar o passado para compreender o presente e erigir o futuro — é destruído através do recurso irónico a um narrador (ou vários) que coloca em relevo a ficcionalidade do texto. Muitas vezes, este procedimento dá-se através da paródia a textos (como dissemos em relação a, por exemplo, A Gloriosa Família e As Naus). Como refere Linda Hutcheon, sobre o uso da paródia neste género de ficção, o interessante é que:

à la différence des parodies plus classiques, ridicularisantes et dévalorisantes, cette forme moderne n'implique pas qu'un texte ait un destin meilleur ou pire que l'autre; c'est leur action de différer qui est mise en relief, et en réalité actualisée, par cette parodie. L'ironie — principal mécanisme rhétorique qui attire l'attention du

lecteur sur cette actualisation — est en elle-même, aussi, une sorte de procédé d'actualisation (Hutcheon, 1978: 467).

Na verdade, como constatámos, a paródia aparece ao serviço da ironia e a combinação de ambas acentua o carácter pós-modernista das obras que abordámos neste capítulo.

A experiência do colonialismo está igualmente patente nas quatro obras, com referências recorrentes a colonizadores e colonizados e que desenvolveremos no capítulo V, sendo a relação temporal elemento de coesão textual destes romances. Intersecciona-se passado e presente em As Naus; em Viva o Povo Brasileiro faz-se uma evolução cronológica da História do Brasil. Mas os intentos são semelhantes: o aparente apanágio de um povo, desventrado nas suas fraquezas, mas também, no que se refere ao romance de João Ubaldo Ribeiro, com algumas mais-valias.

Em A Gloriosa Família, focaliza-se uma época específica, como em As Naus, perspectivando-se o conhecimento do presente através do conhecimento do passado. Em O Último Voo do Flamingo, o passado e o presente disfóricos conduzem a uma desconfiança em relação ao futuro. O adjectivo «último», no título, remete-nos desde o início para a finitude.

Se, por um lado, a História, em Viva o Povo Brasileiro e A Gloriosa Família, contribui para a ordenação da pátria, por outro, em As Naus e O Último Voo do Flamingo, essa História permite a desordenação dessa pátria. Em Viva o Povo Brasileiro, esta ordenação da pátria sofre um processo de osmose entre um antes e um agora em que, subjacente, se assiste a uma tentativa de (r)estabelecer a identidade do povo brasileiro. Em As Naus, nem o narrador, nem as personagens acreditam na possibilidade de uma identidade portuguesa.

Em A Gloriosa Família, dá-se a tentativa de ordenação da memória da fundação da nação, no recuo temporal em que coabitam reis africanos (o rei do Congo e a rainha Jinga) com "invasores" europeus (portugueses e holandeses). Em O Último Voo do Flamingo, a consciência de um presente minado pelo oportunismo dos dirigentes do país transmite a ideia de desordenação da pátria e o desfecho do romance, como já dissemos, acentua a desconfiança num renascimento

Os quatro romances em questão são, pois, transtemporais e anti-épicos, na medida em que As Naus desconstroem a mitificação de personagens históricas portuguesas, banalizando-

as. Por sua vez, Viva o Povo Brasileiro é anti-épico na medida em que as personagens, à excepção de Maria da Fé (e Patrício Macário), são frágeis, corruptos; são anti-heróis, como referimos. Em A Gloriosa Família, o que deveria ser a epopeia de uma família de Angola no século XVII, como sugere o título, revela as fragilidades dos primeiros colonos desse país em formação. Em O Último Voo do Flamingo, no final, as promessas de um país em desenvolvimento são abortadas pelas actuações antipatrióticas dos próprios moçambicanos.

É, porém, através destas personagens que se evidencia a saga de um povo em busca da sua identidade e afirmação. As Naus representam a metáfora do povo português perdido no caos do passado e do presente, sem cultura suficiente para perceber as transformações político- ideológicas do país. Por seu turno, em Viva o Povo Brasileiro é a metáfora do povo brasileiro na encruzilhada temporal do passado/presente/futuro que é destacada. No romance de João Ubaldo Ribeiro, o futuro é esperança de concretização dos ideais defendidos pela heroína do romance: liberdade, igualdade, justiça e fraternidade. É desta forma que se compreende o final fantástico da obra: «Ninguém olhou para cima e assim ninguém viu, no meio do temporal, o Espírito do Homem, erradio mas cheio de esperança, vagando sobre as águas sem luz da grande baía» (VPB: 673).

Em As Naus, porém, não existe a regeneração pelo futuro; a obra termina com um irredutível «impossível» (AN: 247). Em A Gloriosa Família, o futuro perspectiva-se com algum optimismo: as fragilidades do espaço e das personagens são evidenciadas, mas elas não parecem ser suficientemente graves para fazerem abortar um projecto de nação. Em O Último Voo do Flamingo, como já referimos, o final em aberto deixa ainda esperança para a regeneração, ainda que essa esperança nos pareça ténue pela força apocalíptica desse mesmo desfecho.

A paródia para ser reconhecida enquanto tal tem de ver descodificados os seus códigos: quer pretenda subverter os cânones estabelecidos, como constatámos em As Naus, em relação ao discurso épico; quer pretenda ser uma força conservadora ou quer vise elogiar ou humilhar o texto original, como tivemos a oportunidade de constatar em A Gloriosa Família, em que são rebatidos os discursos panegíricos, que normalmente evidenciam os vencedores da História.

Assim, para o descodificar da paródia é importante desvendar as relações de intertextualidade entre os textos. Como vimos, também, a intertextualidade é um processo bastante usado nos romances que analisámos. A utilização de ecos intertextuais, através de referências directas e/ou alusões, manifesta o poder da ironia, sobretudo, em A Gloriosa Família e As Naus.

Como referimos no capítulo I, a ironia transtextual numa obra corresponde à necessidade de se acentuar a ficcionalidade, destruindo ou, pelo menos, diluindo o seu realismo. Assim, introduzir a ironia transtextual num discurso é acentuar a ficcionalidade inerente a esse discurso, reduzindo-se o efeito mimético da obra. A par deste aspecto, não devemos ignorar o possível aspecto lúdico do efeito irónico criado pela transtextualidade. Para a determinação dos objectivos do uso da ironia transtextual é também importante determinar a origem do texto ironizante, ou seja, nos romances que analisámos a ironia provém das modificações introduzidas pelo hipertexto.

Vimos que a ironia transtextual era explícita em A Gloriosa Família e implícita em As Naus e Viva o Povo Brasileiro, provocando consequências na interpretação ou nos objectivos inerentes à obra. Em A Gloriosa Família, as citações, que marcam o contexto transtextual da obra, funcionam como indícios explícitos de meta-ironia. Assistimos à hipertextualidade implícita em As Naus e Viva o Povo Brasileiro, pois não há qualquer tipo de alusão ao autor ou à obra ironizados. Nestes casos, é a enciclopédia do leitor que lhe permite estabelecer as relações de transtextualidade, a partir dos indícios deixados pelo autor do texto ironizante.

Como verificámos, as personagens históricas podem co-existir na metaficção historiográfica com as personagens ficcionais, como vimos sobretudo em A Gloriosa Família e As Naus. Este aspecto permite-nos também questionar vários tipos de referencialidade. De facto, a "verdade" histórica convive, ironicamente com a "verdade" ficcional. Em As Naus, o uso de nomes históricos atribuídos a personagens que se movimentam em ambientes degradados e actuais «não só acentua o carácter irónico da evocação, como desmistifica um período da História nacional que raramente é tratado com sua relatividade histórica» (Marinho, 1999: 293). Assim, a ironia, uma constante em todo o romance, põe em confronto os tempos auspiciosos do século XVI com o pós-25 de Abril. São tempos e lugares diferentes,

mas os mitos perduram. A ironia manifesta-se também na confusão dos tempos, num processo paratáctico, em que o mito se une ao conhecimento histórico.

A enciclopédia do leitor é requerida para que a ironia possa vingar no desfazer do saber histórico normalmente incontestado. A narrativa evidencia, assim, uma irreverência ao desmontar personagens tidas como históricas e intocáveis, colocando-as em situações ridículas e hiperbólicas, atacando o saudosismo mítico português, naquilo que tem de memória de tempos gloriosos. O uso assistemático e voluntário de arcaísmos, neste romance antuniano, traduz, também, o desejo de acentuar a presença do passado no presente, nessa continuação interactiva de ambos. As Naus é assim um texto que interroga o significado da História portuguesa naquilo que tem de mítico e colectivo.

A ironia do Pós-modernismo manifesta-se nas obras que fomos analisando na relação que se estabelece entre a auto-reflexividade e referência histórica, de forma a destacar, por um lado, os limites do conhecimento histórico, por outro, os seus poderes. Não há, também, um aniquilar da referencialidade nos romances que analisámos. Apesar de trabalharmos com signos, isso não quer dizer que se negue o real.

Há nestes romances uma interrogação histórica ou, parafraseando Linda Hutcheon (1996: 29), uma contaminação irónica do presente através do passado. No que diz respeito aos romances de Pepetela e Mia Couto, pertencentes às chamadas "literaturas emergentes", cabe a esses autores a dupla tarefa de «escrever a história e ficcioná-la», como refere Francisco Salinas Portugal (2000: 641).

A miscigenação é outro tema comum aos quatro romances, vista de forma negativa pelas personagens. Em Viva o Povo Brasileiro, é explícito o menosprezo das personagens (brancas, sobretudo) em relação à mestiçagem, perspectiva ironicamente explorada pelo narrador, uma vez que o povo brasileiro é o resultado de misturas. Maria da Fé representa a síntese da miscigenação brasileira, como referimos atrás.

Em O Último Voo do Flamingo, a miscigenação dá-se sobretudo ao nível da linguagem e da cultura, ainda que essa fusão não seja pacífica; daí que seja necessário um tradutor entre o mundo africano e ocidental.

Em A Gloriosa Família, a própria família protagonista é o símbolo da miscigenação, parecendo querer-se evidenciar que a formação da identidade nacional não pode deixar de ter em consideração o multiculturalismo (de parte) da população.

Em As Naus, a miscigenação não é objecto explícito de discriminação. Porém, não é inocente o facto de a mulata, mulher de Pedro Álvares Cabral, ser obrigada a prostituir-se para pagar o alojamento da família. Aliás, a mulher, em As Naus aparece quase sempre como a prostituta explorada.

A corrupção e exploração dos mais fracos, geralmente os mais pobres e as mulheres, são, igualmente, temas comuns nestes romances. Estas são exploradas através da violação em Viva o Povo Brasileiro e da prostituição forçada em As Naus. Em A Gloriosa Família, é-nos apresentada uma visão abrangente da mulher. Por um lado, temos D. Inocência que, apesar de caprichosa, não deixa de ser submissa às vontades e traições do marido. Mais submissa, porém, é Catarina, a filha do quintal, cujo mundo se restringe à sua cozinha. Por outro lado, aparece Matilde representando a mulher emancipada. Em O Último Voo do Flamingo, Temporina agrega em si o mito da mulher anjo/mulher demónio, que seduz pela sua pureza, mas atordoa pela sedução. Por sua vez, Ana Deusqueira representa a mulher pecadora, que, no entanto, é humanizada.

A visão disfórica do país, centrada na capital, como vimos anteriormente em relação a As Naus, é igualmente explorada de forma irónica pelo narrador em Viva o Povo Brasileiro. Também o Brasil não sai ileso de críticas em As Naus. Sob o olhar irónico do narrador, passamos a transcrever a conversa do Infante D. Henrique com D. Pedro Álvares Cabral:

Encalhem-me no Brasil e tragam-mo cá antes que um veneziano idiota o leve para Itália, e a gente trouxe-lhe ao Algarbe, (...) esse monstro esquisito de carnavais, papagaios e cangaço, de tal jeito que ao vê-lo, assim estupidamente enorme, arrastado por dezassete galés e mil e quatrocentos pares de bois, isto sem contar as mulas e os escravos mouros, se apartou dos seus e nos perguntou baixinho, ca hera homem avisado e de bõo entendimento, Para que quero eu tal coisa se já tenho chatices que me sobram?, de modo que nos ordenou que o pusessemos, durante a hora da sesta, onde o tínhamos achado, sem conservar um papagaio sequer, e nos esquecessemos logo da pelagra e dos mortos que padecêramos para lho dar, e ao

pajem que interrogou, apontando a janela, Senhor, que nação é?, respondeu sem hesitar, na sua voz rouca de almirante ancorado, que era um banco de areia da baixa-mar, meu palerma, que nem o litoral conheces, e com muita Ave-Maria e muito trabalho obedecemos ao que nos disse, ou seja puxar o Brasil de volta para a América e quem viesse depois que se tramasse com aquilo (AN: 55-56).

Como observamos, o olhar irónico, depreciativo, não recai tanto sobre o Brasil, mas no esforço vão das descobertas, como se de um capricho de Senhores que não saíam de terra firme se tratasse, esquecendo o número de vidas que tais descobertas custavam a Portugal. Nesta passagem, sobressai a ironia através dos arcaísmos. A acção do rei não é sinal das qualidades destacadas, assim, acentua-se a ironia no menosprezo que é dado pelo rei à Descoberta do Brasil e, resumindo, a conclusão de que os portugueses não sabiam ser verdadeiros colonizadores, como defendem, por exemplo, Boaventura de Sousa Santos e Eduardo Lourenço.

Destaca-se, aqui, sobretudo a forma como se desistiu dos territórios descobertos. Esta visão do Infante quanto à (des)necessidade do Brasil encontra-se em oposição à visão dos brasileiros em relação aos portugueses, em Viva o Povo Brasileiro: «O Brasil era atrasado, infinitamente atrasado e desconhecido (...) brasileiro só é importante para português» (VPB: 473).

Em A Gloriosa Família, o Brasil representa o mercado das exportações dos escravos para as plantações de açúcar, pelos portugueses e holandeses. Por sua vez, em O Último Voo do Flamingo, as referências ao exterior são ténues, representadas nos capacetes azuis, que abusivamente seduziam as mulheres moçambicanas.

O tema da liberdade é também comum aos quatro romances. A liberdade em As Naus é do domínio da irresponsabilidade, da anarquia, como já referimos, o que mostra que as personagens não estavam preparadas para lidar com a mudança. Neste contexto, Pedro Álvares Cabral, faminto, desabafa: «raios partam a liberdade se a liberdade é isto» (AN: 69). Por sua vez, a liberdade em Viva o Povo Brasileiro é vivida de forma ideológica profunda e explícita. A liberdade é percepcionada na sua abrangência e no sentido ascendente do individual para o

colectivo. No geral, porém, nestes romances, o povo não se apresenta preparado para usufruir da liberdade.

A mensagem destes romances é semelhante, porém, a disparidade dos processos discursivos utilizados pelos autores camufla esta semelhança. O humor de João Ubaldo Ribeiro opõe-se ao discurso agónico de António Lobo Antunes. A linguagem ubaldina, bem humorada, envolvente e surpreendente, e os processos retórico-estilísticos usados pelo escritor fazem de Viva o Povo Brasileiro um romance sedutor, cujo número de páginas não assusta o leitor mais reticente, após o início da leitura. Por sua vez, a contenção nos adjectivos e advérbios, a preferência dada ao discurso indirecto livre, a catadupa de sensações e descrições inverosímeis a que o leitor é submetido transformam As Naus num romance inquietante. Inquietante é também O Último Voo do Flamingo pela coabitação entre o trágico, o lírico e o irónico. Entrecruzam-se pontos de vista díspares sobre os acontecimentos, através de uma linguagem ora poética, ora desenvolta, em que o uso pertinente de alguns neologismos realça a mensagem transmitida.

Por sua vez, o discurso pepeteliano é desconcertante, desde logo pela escolha do narrador, no discurso cuidado que usa, em contraste com a sua escolarização. A explícita preocupação com a intertextualidade histórica é, porém, um aspecto bem distinto em relação aos restantes romances que abordámos. Neste sentido, A Gloriosa Família actualiza a ideia de que «postmodern intertextuality is a formal manifestation of both desire to close the gap between past and present of the reader and a desire to rewrite the past in a new context» (Hutcheon, 1996: 118). O romance histórico pós-moderno torna-se não como forma de conhecimento histórico (como pretendiam os românticos), mas como forma de utilizar esse

conhecimento de forma epistemológica e/ou política138.

Concluindo, os romances em questão apresentam um movimento dialéctico, complementando-se. O verso de Agostinho Neto − «Do caos para o reinício do mundo» − pode entender-se, aqui, na medida em que As Naus e O Último Voo do Flamingo representam o "caos", como tentámos mostrar, e Viva o Povo Brasileiro, bem como A Gloriosa Família representam o "reinício do mundo" em que o processo histórico da criação de uma nação, com

todos os erros adjacentes, deixa, ainda, espaço para a esperança, para um devir mais auspicioso. A História, enquanto deslocalização da cultura, apresenta-se como espaço supranacional e mítico, em que a procura da identidade desconhecida se afigura irónica. A temporalização sofre também, através do discurso, a desconstrução, em que o presente é o tempo da continuidade, da encruzilhada entre o passado e o futuro. A desmistificação da História aparece, pois, como elemento de (des)ordenação da pátria.

Capítulo III

Ironia e desconstrução sociais