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Desconstrução do discurso romanesco: a ironia na/da condição humana

A única forma (..) de abordar os romances que escrevo é apanhá-los do mesmo modo que se apanha uma doença. António Lobo Antunes, Segundo Livro de Crónicas, p. 109.

O Manual dos Inquisidores147, publicado em 1996, é o 11º romance de António Lobo

Antunes. Os processos de escrita aqui utilizados já estão em parte presentes em Tratado das Paixões da Alma, A Ordem Natural das Coisas e A Morte de Carlos Gardel. Ao nível temático partilha, por exemplo, a questão do tempo, da recordação e das relações pai-filho com o romance anterior, A Morte de Carlos Gardel.

O Manual dos Inquisidores aborda o Portugal do período Salazarista até ao pós-25 de Abril de 1974. A ênfase é colocada no apogeu e queda de um ministro de Salazar a viver numa quinta de Palmela, que, símbolo do Portugal rural, na altura do salazarismo, se transforma num complexo habitacional de luxo, símbolo do Portugal contemporâneo, após ser entregue pelo tribunal à ex-mulher do filho do então ex-ministro. Neste romance pode ler-se não só a vacuidade da trilogia do regime salazarista − Deus, Pátria, Família −, desconstruída pelo olhar irónico de vários narradores-personagens, que exploraremos nos próximos dois capítulos, como também a decadência de ideais que se seguirá ao período posterior ao 25 de Abril, como se constata em As Naus.

Assim, O Manual dos Inquisidores está dividido em cinco partes ou macro-relatos148,

cada uma introduzida por uma epígrafe diferente, em forma aparente de verso, e entre parêntesis. Esta disposição gráfica enfatiza o nonsense à partida e o carácter imagético de cada uma delas, que, no geral, remetem para diferentes personagens que se destacam em cada um

147 O título não é original, é de 1376, por Nicolau Eymerich, escritor francês, cuja obra foi revista em 1576 por Francisco de la Peña.

dos macro-relatos. Por sua vez, cada parte é constituída por capítulos centrados em experiências individuais das personagens, ou seja, em três "Relatos", o testemunho da

personagem principal dessa parte, e por três "Comentários"149, da responsabilidade de uma

outra personagem, normalmente implicada no "Relato".

Assim, na primeira parte, os "Relatos" cabem a João, o filho de Francisco, o ministro

de Salazar. Esta primeira parte, ou macro-relato, tem a epígrafe enigmática150 «Qualquer

palhaço que voe como um pássaro desconhecido». O palhaço parece ser João, com a sua personalidade fraca que se deixa, inclusive, ludibriar facilmente pelo tio de Sofia, sua ex- mulher. É graças a essa cilada, em que cai, que a mulher pede o divórcio e consegue a quinta de Palmela, do pai de João, para a sua família construir um aldeamento de luxo, com campos de ténis e golfe. Esta epígrafe adequa-se ainda a João na medida em que, como um palhaço, João não é levado a sério por quase nenhuma personagem e, como um palhaço, esconde o seu sofrimento, não revelando aos outros o seu âmago; passando pela vida como um desconhecido.

Os "Comentários" desta parte estão a cargo de Odete, a filha do caseiro da quinta de Palmela, no tempo em que o pai de João era ministro, antes do 25 de Abril, e das consequentes violações pelo ministro, sem que ninguém tivesse a coragem de interferir. Após o 25 de Abril seguimos a sua família, expulsa da quinta, como todos os restantes empregados, metida num apartamento-cubículo no Barreiro. O segundo "Comentário" desta parte fica a cargo de Sofia, no que diz respeito à sua visão de João, do sogro, da quinta e da sua vida fútil numa família da classe alta e endinheirada. O último "Comentário" é feito pelo tio de Sofia, expondo com vaidade os esquemas escuros que utilizou para dirigir os negócios financeiros da família, para aproveitar a inércia de João e assim conseguir transferências de dinheiro para o estrangeiro, culpando aquele. É um "Comentário" feito de leviandade, com o riso da vitória nos lábios.

Na segunda parte, com a epígrafe «A malícia dos objectos inanimados», intervêm os ex-empregados de Francisco. Os "Relatos" estão a cargo de Titina, evocando os tempos em que era a governanta do ministro, e os "Comentários" são feitos pela cozinheira, amante do ministro; pelo veterinário que cuidava dos animais do ministro e por Lina, a terapeuta

149 À excepção da quinta e última parte que tem apenas dois "Comentários", já que termina com o "Relato" do ex- ministro, agonizante.

ocupacional do lar da Santa Casa da Misericórdia onde se encontra Titina e a mãe de João. Esta epígrafe parece colocar a ênfase na animização das coisas e no contraste entre a apatia dos subalternos e a sua escondida perversidade, exposta nas suas observações e opiniões.

Por sua vez, na terceira parte, «Da existência dos anjos», nos "Relatos", sobressai Paula, a filha ilegítima do ministro, na vida miserável que leva em Alcácer com uma retornada de África a quem a entregaram e a quem chama de madrinha. O primeiro "Comentário" está a cargo da madrinha; o segundo de Romeu, um colega de Paula, com alguns problemas mentais, e, finalmente, o terceiro, a cargo de César, o amante de Paula, de quem ela engravida. A epígrafe parece irónica, na medida em que as personagens intervenientes são vítimas sociais, apresentam-se diminuídas mental, social e/ou culturalmente, mas não são propriamente anjos.

Da quarta parte, «Os dois sapatos descalços no êxtase», destacam-se os "Relatos" de Milá, a amante do ministro. Este procura nela a imagem da mulher que o abandonou. Os "Relatos" são intercalados pelos "Comentários" de D. Dores, a mãe de Milá; de Leandro, o porteiro do prédio na rua Castilho para onde elas se mudam (MI: 273), e de Tomás, o furriel, motorista do ministro, antes do 25 de Abril. A epígrafe parece fazer referência a Milá, que se "mascara" sob os pedidos do ministro, com as roupas de Isabel, inclusive calçando os seus sapatos (MI: 305, 331, 331). Assistimos à carnavalização de Milá, na sua transformação em Isabel (MI: 305), mas nem o sentimento de posse nem de erotismo propostos pela epígrafe se concretizam.

Finalmente, a quinta parte, «Pássaros quase mortais da alma», retoma inesperadamente a figura do ministro, dando-lhe voz, já num momento terminal da vida. Assim, os "Relatos" são construídos com base no seu testemunho. O primeiro "Comentário", por sua vez, é apresentado por Martins, o primo de uma das amantes do ministro, a viúva do farmacêutico. O segundo e último "Comentário" dá voz àquela que ainda não tivera, também, a sua vez de se pronunciar: Isabel, a mulher do ministro, que conta como o conheceu e como, depois de casados, começou a não o suportar. Esta última epígrafe retoma o motivo dos pássaros, que abre a primeira parte do romance e que será um dos motivos explorados simbolicamente ao longo da obra de António Lobo Antunes, bem como o motivo do palhaço referido na primeira

epígrafe151. O último “Relato” retoma igualmente a temática do amor entre pai e filho. Se no primeiro “Relato”, João admite gostar do pai, apesar de este não lhe ter dado atenção e carinho suficientes enquanto criança, no último “Relato” é Francisco que deixa entrever o seu afecto pelo filho152.

Como pano de fundo vão-se desenvolvendo as relações entre João, o filho, e Francisco, o pai. São relações de afastamento afectivo, de um gostar silencioso, expresso por João, logo no seu primeiro "Relato": «e no entanto eu gostava de si pai, gostava de si, não fui capaz de dizer-lhe mas gostava de si» (MI: 20). É o mesmo gostar silencioso que se adivinha na frase inacabada do desfecho do romance, mas agora pela voz do ex-ministro: «peço-lhe que não se esqueça de dizer ao pateta do meu filho que apesar de tudo eu» (MI: 399).

No total, intervêm 19 personagens que, com os seus pontos de vista diferentes em relação à família de Francisco, o ministro de Salazar, e em relação umas às outras, justificam a estrutura polifónica do romance e a sua fragmentação narrativa. Esta fragmentação narrativa dá-se não só pela pluralidade de pontos de vista de personagens-narradores, mas também porque a narrativa avança na alternância entre presente/passado. Na verdade, a ironia também pode ser conseguida pelo ironista através do ponto de vista das fragmentações, o que é uma característica deste romance, bem como de O Cão e os Caluandas, de Pepetela, que veremos mais à frente.

Logo no segundo romance de António Lobo Antunes, publicado em 1979, Os Cus de

Judas, assistimos à presença de um «interlocutor silencioso»153, uma mulher que a

personagem-narrador tenta seduzir, ao contar o seu passado em Angola. De igual modo, em O Manual dos Inquisidores, o silêncio e as questões/observações de uma personagem-silenciosa só nos são revelados pelas personagens-narradores, com a ironia que isso implica, uma vez

151 Estes dois motivos estão também presentes, por exemplo, em Que Farei Quando Tudo Arde? (2001).

152 Neste sentido, Carlos Reis afirma o seguinte: «uma tal plurivocalidade parece remeter para os sentidos da provisoriedade e da dispersão que atravessam o romance: em vez de uma (impossível) versão única e irreversível de eventos e situações, o que na narrativa se cultiva é a pluralidade de olhares e de discursos; em vez de uma história acabada e harmoniosamente concertada, o romance modela uma sucessão de versões (…) que inviabilizam um significado único, global e continuado. Um pouco como se o romance se visse possuído pela dinâmica e pela fragmentária instabilidade de um continuado zapping discursivo (…)» (Reis, 1997: 23). De facto, a distância irónica entre o narrador e as suas personagens em todos os romances aqui estudados, faz-se, não raras vezes, através de uma pluralidade de vozes, como podemos constatar, para além de O Manual, em O Cão e os Caluandas, Viva o Povo Brasileiro e mesmo em Um Rio Chamado Tempo uma Casa Chamada Terra.

que as personagens-narradores parecem produzir em discurso oral as suas narrações, sem que o texto evidencie em demasia essa componente.

Por detrás das personagens assiste-se, pois, à presença de um interlocutor cuja voz apenas deduzimos de acordo com as referências das personagens que vão ordenando o discurso consoante as questões que o "entrevistador" coloca. Assim, desde o início, logo no primeiro "Comentário" da primeira parte, Odete aceita falar da sua experiência na quinta de Palmela, depois de o interlocutor lhe assegurar que não há perigo de retaliações, que o ex- ministro está doente: «Está bem pronto se você afirma que sim eu acredito» (MI: 29).

As personagens que mais deixam transparecer a presença do interlocutor são: o ministro, Tomás, Paula, Lina e César. Através delas percebemos os métodos utilizados pelo entrevistador que toma notas, grava as declarações das personagens, justificando o seu interesse para a escrita de um livro. Assim, assistimos a formas verbais ou pronominais que nos revelam essa presença (sublinhados nossos): «que lhe assegurou a si» (MI: 74); «repare que não falo em muito» (MI: 106); «não me diga que não gostou das instalações» (MI: 182); «se você lhe chamasse a atenção» (MI: 204); «não julgue que exagero» (MI: 268); «pode escrever alarve à vontade» (MI: 315); «Há quanto tempo tudo isto que lhe conto se passou?» (MI: 319); «esqueça-me» (MI: 336); «explique ao pateta do meu filho» (MI: 390) e «espreite aí pela janela» (MI: 392). A função fática, de acordo com Roman Jakobson (1978: 217-218), pretende manter a atenção do interlocutor no acto de comunicação e estas expressões são utilizadas de forma a (re)estabelecer a comunicação entre personagem e interlocutor. Para além destas formas verbais e/ou pronominais, assiste-se ao uso de expressões que não deixam dúvidas sobre a presença desse «interlocutor silencioso». Veja-se, a seguir, alguns exemplos na voz de Lina, Paula, Milá e Tomás: «se quando terminar este livro lhe apetecer escrever um romance de advogados, traga o gravador» (MI: 181); «se você adivinhasse o que são os sábados para uma mulher sozinha» (MI: 184); «espere aí espere aí enganei-me não era o que eu queria dizer não escreva isso» (MI: 249); «não vai entender o que lhe digo» (MI: 256); «escreva no seu livro» (MI: 257); «Se o senhor diz trinta [anos que tudo se passou], pronto, talvez sejam trinta» (MI: 319); «Sinceramente ignoro do que está a falar» (MI: 333); «que sei lá como você descobriu» (MI: 334); «no que se refere a si confesso-lhe que ignoro por completo do que está a falar (...) e não entendo que interesse possa ter para um livro a maneira

de pensar de um furriel» (MI: 335) e «é escusado aborrecer-me com gravações, rolos de película, dossiers, contar-me isto e aquilo, perguntar-me seja o que for porque ignoro o que está a dizer (...) desde que guarde o microfone na pasta» (MI: 343). Por sua vez, esta relação das personagens com o «interlocutor silenciosos» é bem explícita em César, que trata o interlocutor por «doutor» (MI: 261):

não me venha sugerir que a culpa é minha se a Paula não se sente feliz. Aliás o que a Paula contou não me diz respeito nem me interessa, escusa de mexer na pasta, de mostrar esses papéis que tenho mais que fazer e não vou lê-los, ou bem que me acredita ou bem que me não acredita e já vai cheio de sorte de eu falar consigo porque se a Adelaide se lembrar de folhear o seu livro e der com o meu nome lá dentro e as mentiras da Paula sobre mim estou feito (MI: 261-262).

No final, esta presença do interlocutor, que se limita a questionar, confrontar depoimentos e a registá-los, é muito nítida nos comentários do ministro: «pode escrever isso mesmo (...) pode escrever» (MI: 370); «stop, espere, enganei-me, corrija, vamos começar do princípio, ser sinceros» (MI: 375); «gostava de pedir-lhe» (MI: 389); «explique-lhe (...) explique ao pateta do meu filho» (MI: 390); «tem de me tirar daqui» (MI: 395); «escreva em maiúsculas grandes no seu caderno e mostre-me letra a letra» (MI: 396).

O título do romance de António Lobo Antunes faz-nos, historicamente, recuar ao tempo da Inquisição: não são os métodos utilizados pela PIDE que se referem no romance, ainda que en passant, inquisitoriais? E não se refere o romance a um período histórico português de medo e de perseguição policial? As referências a estas manipulações do poder, às decisões ironicamente apresentadas como aleatórias, estão presente ao longo do romance, quer através do testemunho do ex-ministro, quer de outras personagens que foram vítimas ou assistiram a situações de tortura psicológica ou física. O ex-ministro referirá que ficava no Terreiro do Paço até mais tarde com o inspector a decidir «quem exilávamos para morrer depressa em Cabo Verde e quem morria devagarinho em Peniche» (MI: 394). Leandro, o porteiro do prédio para onde vai viver a amante do ministro, Milá, com a mãe, observa

ironicamente o desfile de figuras públicas (o professor Salazar, o cardeal, o major da PIDE) a subir para o apartamento das duas mulheres: «todos reunidos no andar das aventesmas a decidirem de milagres com pastorinhos e de campos de concentração» (MI: 315). Esta observação do porteiro evidencia o ridículo da situação, da ascensão social de duas mulheres que não correspondiam ao patamar sociocultural do bairro, e a quem as figuras mais importantes do regime parecem mostrar vassalagem e discutir o rumo do país na sua presença. Por sua vez, a visita das figuras ao prédio põe o administrador do mesmo nervoso, com medo de alguma represália, sem que tenha motivos para isso, precisamente pela onda de medo que a todos sufocava, mesmo que não provocassem conscientemente o regime ou os seus representantes.

Esse medo, que se estabelecia através das histórias de torturas, é corroborado pelo "Relato" do ministro ao referir-se às técnicas utilizadas pelo médico que trabalhava na sede da polícia: estimular as denúncias com a broca de dentista, voltagem de choques, ou utilizando purgantes, clisteres e injecções de coramina.

É o medo que assombra mesmo os que colaboram com o regime. É o caso do médico que adultera a certidão de óbito de uma mulher acidentalmente morta pelo ministro e cujo crime é encoberto pela PIDE:

o médico obediente, no pânico de que o suicidássemos, a escrever enfarte de miocárdio ou cancro do cérebro ou embolia pulmonar aplaudido pelo sarcasmo dos agentes, pelos encontrões do contínuo

— se você fosse uma moça tinha-me à perna noite e dia (MI: 371).

Note-se a ironia contextual explorada pelo narrador, que coloca em destaque a seriedade do momento versus o comentário lascivo de um subordinado, que, contrariamente à sua posição e ao médico, age sem medo.

É o receio dessas represálias que leva Humberto Delgado a fugir para Espanha, após ter tido a ousadia de se candidatar às eleições presidenciais. O receio parece ser justificado, uma vez que, segundo o "Comentário" de Tomás, o furriel, motorista do ministro, aquele acaba por ser assassinado numa emboscada em Espanha. Tomás mostra-se atormentado por ter

participado neste assassinato e, sem fazer menção à figura histórica, refere-se ao "general", dando apenas indícios históricos (MI: 326, 337). Estabelece-se assim uma relação do texto ficcional com a realidade histórica do assassinato do general Humberto Delgado, perto de Badajoz, em Fevereiro de 1965, depois de ter desafiado o regime em 1958, ao se ter candidatado às eleições presidenciais contra o candidato do regime, Américo Tomás.

Também César, o amante de Paula, sofre algumas represálias (cf. MI: 267-268), bem como o pai, tenente-coronel, da futura mulher do ministro, Isabel, expulso do exército e constantemente vigiado e visitado pela PIDE (cf. MI: 380-383).

O medo, porém, não está apenas presente no período antes do 25 de Abril, mas igualmente no período após. Primeiramente, é o medo dos subjugados, dos subordinados em relação aos seus superiores, nomeadamente dos empregados do ministro. Veja-se o exemplo de Odete, a filha do caseiro, que não reage ao ser violada pelo ministro:

eu assustada pelo meu sangue a pingar nas estrias do cimento (...), a querer pedir ao senhor doutor sem ser capaz de pedir

— Jure que não me corta a garganta não me corte a garganta por favor não me corte a garganta (MI: 43).

A relação de poder senhor−empregada manifesta-se, aqui, através da violência sexual. O medo que Odete tinha baseia-se no poder social e económico do ministro, «por ser o patrão, por ser rico, por ser ministro ou assim, por mandar em muita gente em Lisboa» (MI: 31). Logo no início do "Comentário" a personagem revelara o seu receio ao afirmar «só não percebo porque é que o menino João há-de dizer coisas horríveis do senhor doutor para mais com o feitio dele e ainda vivo a poder recuperar do ataque sabe-se lá» (MI: 29). Esta forma de iniciar a conversa com o interlocutor revela a precaução e o medo em relação ao ministro, mesmo depois de deposto, mesmo depois da revolução de 25 de Abril, e mostra como as relações de poder continuam a pesar nos mais pobres, apesar da mudança de regime.

A temática do medo está, pois, presente ao longo do livro, confirmando o que José Gil defende sobre esta característica do existir português, ainda hoje: «O medo herda-se. (...) Hoje, trinta anos depois do fim do regime do medo, convivemos ainda com ele» (Gil, 2005: 78). De

facto, o medo, como factor endémico, está presente nas personagens do romance, sobretudo nas subalternas.

O medo expõe ao ridículo os militares idosos e os antigos colegas do ministro que o visitavam aos domingos, despedindo-se com a sensação de terem estado a conspirar e partiam «finalmente numa prudência de sussurros, com medo de aparelhos de escuta da polícia disfarçados nas guelras dos peixinhos do lago (...)» (MI: 165).

É o medo do amante, César, e dos conhecidos da filha ilegítima do ministro, Paula. É o medo que os faz evitá-la ou, quando não conseguem, os faz serem corteses para com ela. A filha descontente com a situação tenta visitar o pai no Terreiro do Paço e apercebe-se, divertida, da ironia do respeito das pessoas do seu bairro em relação ao regime e às condições em que este é sustentado em decrépitas instalações: «a pensar em como se podia mandar no país atolado em lixo, com mendigos a tocarem concertina nas arcadas do poder» (MI: 203).

Após o 25 de Abril, o medo revela-se também, mas agora emergente das classes sociais mais desfavorecidas, reflexo dos problemas sociais. É testemunho disso o "Comentário" de Lina sobre Alverca:

aproximo-me da janela e só enxergo mulatos desocupados a riscarem a pintura dos automóveis com pregos, bêbedos e pobreza (...) não me atrevo a ir ao cinema a Lisboa, a um bar de música ao vivo, a uma discoteca, a um espectáculo, trago a miúda do ballet às seis da tarde e ficamos na cozinha como um casal de náufragos entre milhares de náufragos com os seus medos, as suas grades e as suas fechaduras (MI: 182).

O medo acompanha, enfim, João, personagem que acaba por estar sempre como pano de fundo ao longo do romance. É o medo do escuro que o persegue mesmo na idade adulta e