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Ao que parece, duas causas, e ambas naturais, geram a poesia. O imitar é congénito no homem.

Aristóteles, Poética: 1448b.

As relações entre literatura e sociedade têm sido ora repudiadas ora enfatizadas, dependendo das correntes críticas que se debruçam sobre o estudo da literatura. Partindo dos pressupostos que enunciámos no capítulo anterior, nomeadamente de que a literatura não se alheia da História, facilmente se deduzirá que essa relação se estende à sociedade, à cultura e à ideologia, como teremos oportunidade de explorar nos capítulos seguintes. Por ora, interessa- nos perceber os elos de ligação entre literatura e sociedade e mais especificamente a forma como a ironia joga com as representações sociais em obras dos autores que estamos a estudar.

Como é comummente aceite, a investigação literária contemporânea faz-se também na comunhão com outros campos disciplinares, como são os estudos linguísticos, semióticos, sociais e culturais, por exemplo, numa rede de inter-relações entre diferentes perspectivas e teorias. A transdisciplinaridade impede que vejamos os estudos literários como um bloco

monolítico. A atenção que tem sido dada nos últimos anos às semióticas da cultura, à sociossemiótica e à sociocrítica tem permitido a descentralização da atenção da crítica na estética literária, para alargar o campo de investigação ao modo de pensar, ao empirismo do presente, ao possível lado intervencionista da obra de arte literária. Este alargar de horizontes permite a compreensão dos fenómenos literários como fenómenos históricos, sociais, culturais

e ideológicos. No que diz respeito à relação entre literatura e História, Balibar e Macherey139

defendem uma relação interna. Também Manuel Gusmão considera que a literatura, enquanto sistema aberto, «permanece e varia», acrescentando que «com a literatura produzimos figuras do humano» e que «a literatura (nós, fazendo-a) participa do processo histórico (transhistórico) de produção social dos sentidos humanos, de auto-engendramento dos humanos» (Gusmão, 2001: 220). Porém, estudar a dialéctica das relações do mundo extralinguístico com o mundo ficcional é arriscado, tanto mais que, como relembra Ricoeur:

com a escrita, as coisas começam já a mudar; já não há efectivamente, situação comum ao escritor e ao leitor; ao mesmo tempo, as condições concretas do acto de mostrar já não existem. É, sem dúvida, esta abolição do carácter revelador ou ostensivo da referência que torna possível o fenómeno a que nós chamamos "literatura" em que pode ser abolida toda a referência à realidade dada140. (…) O

papel da maior parte da nossa literatura, parece, é destruir o mundo. Isso é verdade para a literatura de ficção (…) E, no entanto, não há discurso tão fictício que não venha a cair na realidade, mas a um outro nível mais fundamental do que aquele que atinge o discurso descritivo, constativo, didáctico, a que nós chamamos linguagem vulgar (Ricoeur, s/d: 121).

Assim, ao longo da História da crítica da literatura, percebemos que há uma tradição organizada em torno da lógica de paradoxos, de correntes que se substituem, excluindo-se

139 Estes advogam que: «é preciso pensar que literatura e história não se constituem exteriormente uma à outra (mesmo sob forma de uma história da literatura, por um lado, e de uma história social e política, por outro), mas estão desde logo numa relação interna de intricação e de articulação, condição de existência histórica de qualquer coisa como uma literatura. É esta relação interna que é levantada, muito em geral, pela definição da literatura como forma ideológica» (Balibar e Macherey, 1979: 28-29).

140 Como já tivemos oportunidade de argumentar no capítulo anterior, não concordamos com esta concepção de total abolição da referência da realidade extralinguística.

mutuamente. Ou se faz análise intrínseca ao texto, ou análise extrínseca; ou se é adepto da crítica impressionista ou do positivismo; ou se defende a crítica biográfica ou se declara a morte do autor; ou se adere a uma visão autotélica da obra, ou se adopta o princípio da literatura enquanto reflexo da sociedade. Não é, porém, nossa preocupação entrar neste pensamento polarizador, que se norteia por oposições paralisantes, quando nos parece que a complementaridade será a estratégia que melhor se adequa ao estudo crítico da literatura.

Antonio Candido, em Formação da Literatura Brasileira, encara a literatura como

«um sistema de obras ligadas por denominadores comuns» (Candido, 1981: 23); a língua, temas, imagens, bem como certos elementos de natureza social e psíquica, fazem da literatura aspecto orgânico da civilização. Assim, a literatura é percepcionada como um elemento de cultura, algo, portanto, que não surge pronto e acabado, antes se configura ao longo de um processo de articulação com a sociedade. Esta concepção pressupõe que se cria uma dialéctica

entre literatura e sociedade141. Estabelece-se, porém, uma precedência da forma literária sobre

a estrutura social: é a forma artística que põe os problemas que o crítico tentará expor e interpretar. Na verdade, a forma que o crítico estuda foi primeiramente produzida pelo processo social, mas é a obra em si que nos guia na descoberta da realidade, é ela que é construída para criar um conhecimento teórico novo acerca dessa realidade extralinguística.

Deste modo, no que diz respeito ao tema deste capítulo, ao estudo da literatura nas suas relações com a sociedade, temos assistido a uma divisão de correntes. Por um lado, a corrente que defende uma análise interna (formalista), por outro, a que defende uma análise externa, procurando explicar a obra de arte literária com princípios exteriores à mesma. Parece inevitável que se recorra aos elementos extrínsecos ao texto literário, na medida em que o modelo em relação ao qual se constrói e se interpreta o sentido de uma obra, o referente, pertence ao mundo extralinguístico. Isto não poderá querer dizer, todavia, que a análise interna tenha de ser descurada. Bem pelo contrário. Na verdade, terá de haver uma mediação (no

141 Como refere Roland Barthes : «o discurso sobre o Texto não deveria ser ele próprio senão texto, investigação, trabalho de texto, visto que o Texto é esse espaço social que não deixa nenhuma linguagem a coberto, exterior, nem qualquer sujeito da enunciação na situação de juiz, de mestre, de analista, de confessor, de decifrador» (Barthes, 1987: 61).

sentido de Hegel, mais tarde, apropriado por Luckács e Goldmann) entre as duas perspectivas, por mais difícil que tal se verifique no momento da operacionalização desta noção.

Os estudos sobre as relações da literatura com o social colocavam (antes de Lukács), e continuam a colocar, a tónica na procura da correspondência entre a obra e o conteúdo da consciência colectiva nessa obra. Ao considerar-se a obra como um simples reflexo da realidade social retira-se a essa mesma obra a sua característica de criação imaginária. Lukács, pelo contrário, procurou a correspondência entre a criação e a consciência social, já não ao nível dos conteúdos, mas ao nível das categorias que estruturam uma e outra (criação e consciência social), sobretudo ao nível da coerência.

Por sua vez, Goldmann (1964) tentou superar esta divisão ao defender que a relação entre o texto e a realidade social se daria através da noção de visão do mundo. Isto significaria que se deveria perceber a homologia entre a estrutura da visão do mundo do grupo social a que pertence o escritor e a estrutura da obra em questão. Ao estudioso caberia a tarefa de dar sentido ao texto através da análise das suas estruturas. Desta forma, a ênfase colocada no estudo do texto, nos seus níveis semântico e estético, conferia à relação da literatura com a sociedade uma complexidade até então não alcançada, abrindo pistas de pesquisa que mais tarde seriam desenvolvidas (principalmente pela sociocrítica). Como afirma o autor: «Ora, o primeiro problema que uma sociologia do romance deve abordar é o da relação entre a própria forma romanesca e a estrutura do meio social onde ela se desenvolveu, isto é, do romance como género literário e da moderna sociedade individualista» (Goldmann, 1976: 15).

No entanto, das críticas feitas aos trabalhos de Goldmann, sobressai a que diz respeito à operacionalização das categorias de análise, pois ele, no seu 'estruturalismo genético', não conseguiu ultrapassar a redução do texto literário à visão do mundo do autor, ou seja, da sua

classe142 social de origem. Retorna-se assim ao ponto de partida, ou seja, à interpretação

redutora do texto a partir da análise externa e de uma homologia texto−classe que não contempla a visão da estrutura social que é bem mais complexa.

Neste sentido, fundada por Claude Duchet, em 1971, a sociocrítica pretende continuar a procura de uma teoria das mediações do social:

142 É difícil fugir ao uso do termo "classe", que é geralmente imbuído de conotação política e pode também «describir ordenaciones tradicionales o legales, prestigio social o desigualdades materiales, assí como fuerzas sociales revolucionarias o conservadoras» (Crompton, 1994: 29).

La sociocritique, en particulier, pose des questions bien plus qu'elle ne défend des principes et des méthodes à toute épreuve; elle se fond plutôt sur des rejets — ce qu'elle ne veut pas faire — que sur un système tout constitué. Travaillant sur les textes dans leurs déterminations sociales et historiques, elle ne veut ni subsumer l'esthétique et la littérarité sous des fonctions sociales positives, ni fétichiser le littéraire comme étant d'une essence à part. En maintenant la tension ou la problèmatique de l'esthétique et du social, elle se démarque à la fois des approches purement formelles (ou herméneutiques, déconstructionistes, etc.) du texte littéraire et des approches purement contextuelles, institutionnelles, déterministes (Angenot e Robin, 1997: 408).

Esta ideia já antes fora enfatizada pelo mesmo autor, colocando a tónica na verosimilhança da ficção narrativa que é determinada sócio-historicamente:

La fiction narrative dans les lettres et au théâtre traite toujours de relations humaines représentatives qui sont non seulement rapportables par analogie à l'expérience empirique de l'auteur et du lecteur, mais aussi qui ne sont intelligibles qu'au moyen d'un système d'intercompréhension vraisemblable, lequel est déterminé socio-historiquement (Angenot e Suvin, 1981: 121).

Angenot admite, ainda, que a literatura só pode ser compreendida tendo em consideração as propriedades morfológicas que constituem a sua literariedade. Porém, insiste que: «il n'est pas de théorie valable, ni d'histoire, ni de critique de la littérature qui ne soit simultanément formelle et sociale» (Angenot e Suvin, 1981: 122).

A sociocrítica143 aparece, assim, com o intuito de tentar superar a dicotomia entre o

intra e o extra-textual. Por conseguinte, a sociocrítica preocupou-se em conciliar a sociologia dos conteúdos, que negligenciava a dimensão estética da obra ao dar relevo ao estudo temático, e uma poética dos textos, que negligenciava a dimensão social (Duchet, 1971). Assim, o objectivo primacial da sociocrítica era não perder de vista, nas abordagens

143 Referimo-nos, aqui, apenas às correntes que nos parecem ter tido mais expressão no estudo da literatura enquanto fenómeno social.

"sociologizantes" dos textos, os processos de textualização e estetização. Deste modo, competiria à sociocrítica estudar a forma como o social emerge no texto, bem como as formas que o autor usa (o não-dito, as contradições, etc.) para produzir sentidos. Assim, ao estudioso caberia desenvolver conceitos que permitissem apreender a forma como os discursos sociais são transfigurados no e pelo texto. A sociocrítica apresenta-se como dependendo de uma dimensão temporal (diacrónica), espacial (diatópica) e, sobretudo, social (diastrática). Neste sentido, «le texte participe de la symbolique sociale et de son devenir» (Angenot, 1989: 311). Esta ideia do simbolismo social do texto é ainda enfatizada noutra passagem que destacamos :

Au-delà des indications sur les équivoques des thèses référentielles et antiréférentielles, le partage de la représentation et de l'antireprésentation renvoie d'une part au rapport entre hypothèse cognitive et processus discursifs et formels, et d'autre part au lien de ce rapport à une mimétique générale et à la symbolique sociale (Angenot, 1989: 313).

Como já expusemos, para uma análise sociológica do texto terá de haver uma mediação entre o mundo do texto e a realidade extralinguística144. A este nível, não podemos discordar da conceptualização teórica de Marc Angenot:

La représentation est toujours d'une part interprétative de la manière dont une culture se représente et d'autre part toujours une métaphorisation, par la propriété de l'écrit, de cette représentation. (...) Système construit de symboles, l'oeuvre se comprend dans l'ensemble social et cognitif d'une culture et d'une Histoire, dont elle propose un paradigme de lecture. L'actualité de l'oeuvre est un dire et un analyseur de l'Histoire. Par là, la fiction est toujours médiatrice — représentation et contre-représentation (Angenot, 1989: 319).

144 Não nos alongaremos nestas questões da relação literatura—realidade visto já terem sido desenvolvidas no capítulo anterior.

Não está em causa, portanto, fazer a relação directa e imediata entre texto e sociedade, pois o texto literário forma o seu espaço social específico e é só a partir deste que se dá a relação com os espaços reais da sociedade.

Ao longo da nossa análise, contudo, e ao contrário do que faz a sociocrítica, tentaremos ter em consideração não a dimensão social no texto, mas a dimensão social do texto. Ao contrário da sociocrítica, também, ao longo do nosso estudo não destacaremos apenas a dimensão social do texto, mas outros aspectos que já referimos anteriormente, como a questão histórica, cultural e ideológica.

Na verdade, não encaramos o texto como um fim em si mesmo, mas antes parte integrante de uma rede de fenómenos e de sentidos. Como já referimos, o texto geralmente interage com o social de forma dialéctica: recebe influências da realidade extralinguística, e eventualmente reage exercendo, por sua vez, influências sobre essa realidade. Neste processo dialéctico, porém, não deixa de haver fenómenos exclusivamente pertença do texto literário, já que o espaço que ele cria é especificamente seu. Como bem sintetiza Rosa Maria Martelo, não devemos ser levados a concluir

pela não-referência ou pela auto-referência da obra de arte, mas antes a procurar captar a especificidade do seu modo referencial. O mundo do texto não é nem um mundo autónomo ou fechado nem uma imago mundi (que mundo seria esse?) − é um mundo em diálogo com outros mundos, uma versão articulada e articulável com outras versões-de-mundo (Martelo, 1998: 72).

Adaptando a terminologia de Todorov, poderíamos ainda dizer que a literatura

estabelece uma relação com a sociedade de second degré145, na medida em não visa

necessariamente uma análise sociológica da realidade em que é produzida. Uma vez que, como refere Brown: «As society can be seen as factual text, so fictional texts can be viewed as social-symbolic acts, as representations of possible selves and societies» (Brown, 1987: 143). Tendo em consideração que o modelo saussuriano chama a atenção para o facto de a

145 «D'autre part, et par là elle [la littérature] se distingue des autres arts, elle se construit à l'aide d'une structure, à

savoir la langue; elle est donc un système significatif au second degré, autrement dit un système connotatif», Todorov, 1971: 12.

linguagem ser um contrato social, sublinhamos que o social da literatura reside sobretudo no

facto de ter como sistema modelizante primário a língua146 e, por isso, carregar as marcas do

social, com os símbolos, imagens, níveis de língua, estereótipos, etc.

Não podemos esquecer que a literatura não subsiste apenas por si, mas depende de condições e actores sociais, como a produção, distribuição, recepção, atribuição de prémios, etc. Estes aspectos são exteriores ao texto literário. A recepção da obra é, todavia, de grande importância, uma vez que, como lembra Eagleton: «Todas as obras literárias, em outras palavras, são "reescritas", mesmo que inconsciente, pelas sociedades que as lêem; na verdade, não há releitura de uma obra que não seja também "reescritura"» (Eagleton, s/d: 13).

A nossa vida social influencia, por conseguinte, essa reescrita. Daí também a instabilidade que se verifica, por vezes, na classificação do que é literário. Na verdade, cada romance é fruto de um tipo particular de sociedade e/ou pode idealizar outra(s) sociedade(s). Assim, quanto mais transtemporal for uma obra, mais perene será a sua actualização. Destaque-se, ainda, o facto de a sociedade estar longe de ser simples ou una nas suas estruturas e representações e daqui as múltiplas formas de abordagem que essa sociedade permite, dependendo da visão individual de cada um. Neste sentido, Bakhtin refere: «Dans le roman, le locuteur est, essentiellement un individu social (...) son langage est un langage social (...) Un langage particulier au roman représente toujours un point de vue spécial sur le monde, prétendant à une signification sociale» (Bakhtin, 1978: 152-153).

Como já escrevemos, no capítulo II, todo o romance acaba por ter, lato sensu, uma feição historicista, uma vez que transmite o ambiente social em que se desenrolam as suas acções. Raros são os romances que conseguem inventar uma intra-sociedade, ou seja um espaço social específico do romance, fruto exclusivo da imaginação do autor. Assim, o romance é o género onde melhor se lê a estrutura de uma sociedade, ele pode traduzir a realidade social, mas pode igualmente traí-la, deformando, idealizando a vida social real. Por conseguinte, a relação dialéctica que acabámos de referir não passa muitas vezes de uma eventualidade. É porém uma eventualidade frequente, assumindo várias formas de expressão e transmutação, tanto mais que não podemos escamotear o facto de a arte ser uma construção social de sistema de símbolos:

Social fact may be revealed by fiction, even fiction of the most wildly improbable kind. There are two general categories of fact which may be obtained through fiction: one is specific information about whether a social institution or custom exists or existed in the society which produced the fiction: the state of technology, the laws, the proscriptions of religion and so on. The other, and more important, is the information about values, norms and expectations in the society which may be inferred from the attitudes of the characters in fiction and their behaviour (Rockwell, 1974: 117).

Deste modo, partindo do princípio, já defendido no capítulo anterior, de que há relação peculiar entre obra e realidade sócio-histórica e de que a literatura aparece moldada por mentalidades, visões do mundo e imaginários sociais, a perspectiva que defendemos aqui na relação entre literatura e sociedade é a de que podemos procurar a sociedade no texto, mas não a sociedade do texto. Sendo a literatura uma prática discursiva e sendo que as práticas discursivas são factos sociais, a sua autonomia nunca pode ser total. No entanto, a nossa postura tem em consideração que a literatura, enquanto actividade criativa e produção estética, usa vários processos que nos impedem de fazer a transposição directa entre sociedade e literatura. Destes processos destacamos a ironia, a paródia, a subversão, a carnavalização e a desconstrução, só para referir alguns. De facto, como menciona Ricoeur:

Já dissemos que uma narração, um conto, um poema não existem sem referente. Mas este referente está em ruptura com o da linguagem quotidiana; pela ficção, pela poesia abrem-se novas possibilidades de ser-no-mundo, na realidade quotidiana; ficção e poesia visam o ser, já não sob a modalidade do ser-dado, mas sob a modalidade do poder-ser. Por isso mesmo, a realidade quotidiana é metamorfoseada graças ao que poderíamos chamar as variações imaginativas que a literatura opera no real (Ricoeur, s/d: 122).

Como já afirmámos, as narrativas contemporâneas tendem a subverter a sua própria narratividade em prol de uma estrutura auto-referencial, fazendo, muitas vezes, da linguagem,

na sua inovação estilística, o centro do texto. Porém, e como é óbvio, não podemos rejeitar tacitamente a socialidade de um texto. Ao fazê-lo, estaremos a assemelhar-nos aos que defendem, no outro extremo, a anti-referencialidade da narrativa. No entanto, ao contrário dos autores convencionais, os autores ditos pós-modernos inventam uma nova forma de ler o mundo e colocam em causa o conceito clássico de mímesis. A preocupação deles já não é a de reconstruir o mundo de forma convencional, mas antes de desconstruir a convencionalidade através de novas formas de codificação. Como refere Brown (1987: 154): «Such writers focus not on objects as they are pregiven but on how they might be made to reveal themselves as mediated by a new linguistic apparatus». Este autor chama ainda a atenção para os perigos deste tipo de narrativa, uma vez que se pode tornar um texto inacessível à compreensão. Não é, todavia, o que acontecerá com o corpus deste nosso estudo, em que conseguiremos ler a incorporação, na narrativa, das crises da sociedade e da cultura. Esta incorporação dá-se, na maior parte das vezes, através da ironia. A ironia que aparece como a última defesa contra a totalização da cultura, para expressar a dificuldade em formar a identidade e a instabilidade