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Sincronia e discurso literário: do discurso da História ao discurso da ficção

Não é só curiosidade vã, eu tenho sentido de História e da necessidade de a alimentar, embora os padres e outros europeus digam que não temos nem sabemos o que é a História.

Pepetela, GF: 120.

Tomemos em consideração os romances de Pepetela. Como já referimos, a relação do romance com a História pode fazer-se de forma expressa, de forma indirecta, por silêncios, através de sugestões ou de mediações ideológicas. Veja-se, a este respeito, o exemplo de A Gloriosa Família.

A Gloriosa Família, romance publicado em 1997, trata das vicissitudes por que passa a família Van Dum, de Agosto de 1642 a Agosto de 1648, durante seis dos sete anos de ocupação holandesa em Angola (1641-1648). O desfecho da obra coincide com a reconquista de Luanda por Salvador Correia de Sá. Baseado na História Geral das Guerras Angolanas, de António de Oliveira Cadornega, apresenta-se em 12 capítulos introduzidos por uma epígrafe de teor histórico-documental, com excepção dos capítulos I e X.

Os portugueses, após a invasão dos holandeses, vêem-se obrigados a refugiar-se no interior, em Massangano. De lá tentam, consoante o governador português do momento, ora negociar os escravos com os holandeses, ora boicotar esse tráfico de escravos, para dessa forma obrigarem os holandeses a sair de Angola, cujo objectivo era superarem os portugueses no tráfico de escravos para o Brasil. Nestes jogos de interesses e algumas batalhas, em que os portugueses têm de enfrentar o exército da coligação entre os holandeses, congolenses e da rainha Jinga, só a armada portuguesa comandada por Salvador Correia de Sá e Benevides consegue, no final, expulsar os holandeses, reconquistando Luanda.

A narração gira à volta de Baltazar Van Dum, holandês residente em Luanda desde 1616, e da sua família mestiça. Esta personagem central é casada com D. Inocência, filha de um pequeno soba da Kilunda, negra, da qual terá oito filhos. Porém, como acrescenta o narrador: «do quintal o número era incerto» (AGF: 21). A única certeza era a de que seriam todos mulatos. Van Dum, com a sua descendência de filhos de casa (Gertrudes, Rodrigo, Benvindo, Matilde, Ambrósio, Hermenegildo, Rosário e Ana) e filhos de quintal (ilegítimos, dos quais se destacam Catarina, Nicolau e Diogo), simboliza a miscigenação entre branco (Baltazar) e negras (a mulher, D. Inocência, e as escravas do quintal) e evidencia os padrões de moralidade pelos quais se rege o patriarca da família. Os escândalos que rodeiam os Van Dum são igualmente significativos. Os jogos diplomáticos de Baltazar entre os holandeses, com os quais se identifica pela sua nacionalidade, e os portugueses, em quem se reconhece por afinidade e religião, mostram o diplomata cujo objectivo é o de proteger a família e, sobretudo, os seus negócios de tráfico de escravos. Graças aos seus jogos de diplomacia, consegue ser tolerado pelos holandeses durante os anos de ocupação, sem perder a confiança dos portugueses, o que lhe permite permanecer em Luanda após 1648.

O escravo de Baltazar Van Dum é o narrador113. Trata-se de um narrador mudo,

mestiço, filho de uma escrava lunda e de um missionário napolitano, presente da rainha Jinga a Baltazar Van Dum, que vai narrando o que ouve, sente e o que a imaginação lhe permite alcançar. Todos os acontecimentos, sensações, descrições são-nos dados pela perspectiva deste escravo, cujo nome desconhecemos. Quase no final da obra, à pergunta de Domingos Fernandes, amigo de Van Dum: «tem tanta confiança assim neste seu escravo mulato?», Van Dum dá uma gargalhada e responde:

Não tem perigo. É mudo de nascença. E analfabeto. Até duvido que perceba uma só palavra que não seja de kimbundu. Sei lá mesmo se percebe kimbundo... Umas frases se tanto! Como pode revelar segredo? Este é que é mesmo um túmulo, o

113 Ana Mafalda Leite (2003: 112) define este narrador como sendo uma «entidade intemporal», assumindo-se como «uma espécie de feiticeiro, actuando de parceria com a acção coadjuvante do transcendente, ao afirmar os seus poderes mágicos através da pemba, giz ritual para os desenhos e escritos que ganham concretude através da força actuante dos espíritos».

mais fiel dos confidentes. Confesse-lhe todos os seus pecados, ninguém saberá, nem Deus (AGF: 393 — sublinhados nossos).

Sentimos o olhar irónico do narrador para com estas declarações de Van Dum, de cumplicidade com o leitor, por um lado, e desmontagem de um narrador inverosímil, por outro. A história da família aparece assim como uma «desforra» (AGF: 393) pelo menosprezo das capacidades do escravo. No entanto, o leitor não deixa de ficar perplexo ao longo do romance com as capacidades de um narrador-escravo-analfabeto. Desconstrói-se assim a figura do narrador, colocando-se a ênfase na ficcionalidade da narrativa.

Este narrador autodiegético, não omnisciente, orienta, pois, a narrativa num sentido histórico-ideológico, servindo-se muitas vezes da ironia para expor criticamente os comportamentos das personagens e para parodiar a História. Repare-se que a tendência geral da História foi mostrar os factos a partir do ponto de vista dos vencedores. Ora, nesta narrativa é a camada silenciosa da História que fala, o narrador-escravo, mostrando, através da subjectividade, o lado da História ausente na História Geral das Guerras Angolanas, de António de Oliveira Cadornega. Como se compreende, o olhar de Cadornega, é do colonizador que tem necessariamente um projecto político-ideológico que se adequa ao expansionismo português da época. Como já referia Lukács (1965), uma das características do romance histórico é precisamente o facto de as personagens históricas serem relegadas para segundo plano. Não é, pois, de surpreender que em A Gloriosa Família, personagens históricas apareceram apenas em pano de fundo.

Assim, os aspectos históricos são o pretexto para a narração de pequenas intrigas. A narração de factos históricos acontece especialmente nos encontros de Baltazar Van Dum com os amigos na bodega, nas refeições em casa e nos encontros casuais de rua. As pequenas intrigas geralmente prendem-se com os filhos de Baltazar, com destaque para Rodrigo, «o do olho verde» (cap. III); a «bela Matilde» (cap. IV e V); Benvindo, «de voz esganiçada» (cap. VI); Hermenegildo, «de ar efeminado» (cap. VI); Rosário, «de amor contrariado» (cap. VII) e Ambrósio, «o intelectual da família» (cap. IX).

Um dos objectivos fundamentais de A Gloriosa Família parece ser, precisamente, colocar em relevo a importância histórica do início da construção da angolanidade. A família

Van Dum, as relações entre negros e portugueses, negros e holandeses, portugueses e holandeses pretendem evidenciar a forma como se foi criando uma nação. O romance tem, pois, subjacente, como em Viva o Povo Brasileiro, que acabamos de analisar, a problemática da identidade nacional. É uma identidade também fruto de miscigenação.

O início de A Gloriosa Família mostra como, sob a máscara da História, aparecem elementos prosaicos não considerados pelos historiadores, que surgem no enredo romanesco e evidenciam a capacidade imaginativa do autor, projectada no narrador, para preencher vazios históricos. No Prólogo é apresentado um excerto da História Geral das Guerras Angolanas, que serve como ponto de partida e justificação para a narração da história que se segue: situa o leitor no tempo, no espaço e apresenta o contexto histórico-social e político. O Prólogo apresenta-se como se fosse alheio à diegese, estabelecendo, desta feita, o horizonte de expectativa do leitor. Apresenta, ainda, a personagem principal e o período histórico que será ficcionado. Este procedimento intertextual atribui maior veracidade à narração, porém, não podemos deixar de ver ironia na sua inclusão, na medida em que parece conceder legitimação e importância a uma obra colonial, quando na realidade se trata de rebater esse "pórtico", mostrando a perfídia da História. Neste sentido, a ficcionalização de figuras históricas como Cadornega e Baltazar Van Dum é indício de ironia na mistura que se estabelece entre História e ficção.

O Prólogo é nada mais do que uma citação do tomo I (HGGA: 334-335) da obra de Cadornega, que se refere a como Baltazar Van Dum conseguiu que os Flamengos não o prendessem pela amizade que o Major lhe tinha. Neste seguimento, começa o narrador, no «capítulo primeiro» datado de Fevereiro de 1642: «O meu dono, Baltazar Van Dum, só sentiu os calções mijados cá fora, depois de ter sido despedido pelo Director Nieulant» (AGF: 11 — sublinhado nosso).

Este início, de ironia contextual, junta elementos picarescos à seriedade do problema. Para além disso, é de destacar a expressão «o meu dono», repetida incessantemente ao longo do romance, em que o deíctico possessivo estabelece ironicamente a relação de posse, na medida em que o narrador, escravo, ele sim é pertença de Baltazar Van Dum. A ironia é tanto mais acentuada quando se trata de construir o relato de uma «gloriosa família» por um serviçal, um escravo. Já aqui começa a interrogação: a escolha do adjectivo do título,

«gloriosa», não será o indício da ironia que enforma todo o romance? Na verdade, várias são as descrições de acontecimentos que nos vão mostrando que o comportamento da família Van Dum está longe de ser exemplar. Parece-nos que o título é realmente ambíguo, ainda que,

como refere Pepetela, este adjectivo fosse muito usado na época das descobertas114. Porém,

várias interpretações são possíveis, se consideradas em simultâneo. Desta feita, vejamos como Baltazar, por exemplo, pouco tinha de "glorioso". Nascido em Bruges, de uma família católica, Baltazar, quando jovem, alistou-se no exército espanhol contra os protestantes holandeses. Se a sua pretensão era a de lutar e de conhecer o mundo, tal não foi possível, porque pouco depois a guerra terminou. Inicia-se, logo aqui, a construção de um "anti-herói", pois para além deste facto, o alistar-se não foi também inocente, mas antes a fuga à gravidez indesejada de uma vizinha. Após a desmobilização, «sem ter provado o gosto da guerra» (AGF: 17), Baltazar leva uma vida ociosa e boémia, gastando o dinheiro em vinho, em Lisboa, nas tabernas da beira-rio ou de Alfama.

O que o leva a partir para a Angola é o desejo de riqueza fácil, é o sonho dessa «árvore maravilhosa, que bastava sacudir para caírem as moedas de ouro» (AGF: 17). O uso do adjectivo «maravilhosa» parece também ter um uso irónico por parte do narrador bem como os comentários que se seguem e que visam descredibilizar a imagem de Baltazar: «Os olhos de Baltazar brilharam com a miragem da árvore das patacas, cheia de negros a quem bastava deitar a mão» (AGF: 17).

Finalmente, aos 26 anos, o nosso protagonista consegue embarcar para Luanda como tripulante num navio espanhol, não sem ter deixado para trás, como refere o narrador, «várias mulheres e quatro filhos não reconhecidos» (AGF: 17). Apesar das atribulações, é óbvio, porém, que, historicamente, Baltazar se assemelhará a tantas outras figuras anónimas da época.

Esta ideia de família gloriosa é sobretudo enfatizada por Matilde. Ela começa logo por profetizar que o pai estava «a dar origem a uma linhagem notável (...), uma gloriosa família» (AGF: 22) e continuará a propósito do projecto do canal do Kuanza: «Uma família gloriosa é

114 Cf. com as palavras do autor: «A palavra gloriosa não foi por acaso. É que nessa época, a palavra gloriosa era usada frequentemente. Tudo era glorioso. Podia fazer o título sem o adjectivo, mas parecia uma ironia» (Brose, 2004). No entanto, parece-nos que a introdução do adjectivo, no título, vem precisamente criar a ironia. É uma ironia contextual, que se desenvolve ao longo do romance.

isso mesmo, resolve problemas de forma que nunca fica esquecida. Desconheço os motivos, mas a nossa família será famosa. Quem sabe se não começa a partir deste canal?» (AGF: 302).

Porém, será uma família onde haverá vários escândalos, como os adultérios da própria Matilde, que desabafa para o pai: «deve-se ir habituando, pois casos como este serão frequentes na nossa família» (AGF: 164). O próprio narrador coloca a ênfase no carácter "glorioso" dos Van Dum: «tenho de ser imparcial e objectivo, o meu passado não interessa, apenas tenho de relatar os factos tal como os viveu o meu dono e a sua gloriosa descendência, para isso fui criado» (AGF: 259 — sublinhado nosso).

A escolha do adjectivo «gloriosa» não é, pois, inocente; porquanto, por um lado, aqui se concentra a ironia que enformará o romance; por outro, o olhar histórico de um autor que tem em vista a escrita de um romance de formação. Pepetela ficcionaliza a sua versão da História, consciente de que em "países emergentes" a literatura é um contributo importante à

construção de uma identidade nacional. Inocência Mata (s/da) fala do papel deste autor em

relação à instauração de «narrativa de fundação» e de narrativas de «textualização de traços primordiais».

Não deixa, também, de ser intencional o facto de a família central do romance, que lhe dá o nome, ser mestiça. O autor parece dizer, desta forma, que a nação angolana, que se formará, terá também uma base mestiça significativa. Assim, a família só será «gloriosa» na medida em que, com as suas fraquezas e escândalos, conseguir prolongar a sua descendência nos séculos que se seguirão à expulsão dos holandeses de Angola, tentando contribuir para a formação de uma nação. Isto num primeiro plano, se amplificarmos a significação da expressão «Gloriosa Família», perceberemos que a família Van Dum, enquanto família de miscigenações, aculturações, uniões e rupturas, é o embrião de outras futuras famílias de Angola. Neste sentido, A Gloriosa Família «pode ler-se como metaficção historiográfica

(Linda Hutcheon) de dimensão messiânica» (Mata, 2001a: 202).

Ao nível temático-histórico, aborda-se ainda a questão da corrupção da Igreja, da escravatura e da oposição entre brancos e negros, em que os brancos são descritos como gananciosos, desprovidos de paciência e de tolerância. A imagem que nos é dada dos negros é menos acutilante. Dos brancos, carrascos, passamos aos negros explorados, despersonalizados,

desumanizados. Os negros são explorados enquanto mão-de-obra barata, enquanto força de trabalho não civilizada.

Concluimos, pois, que a preocupação em tratar o tema da confluência de duas culturas, a africana e a portuguesa, é uma evidência neste romance, bem como em Lueji e Yaka, por exemplo. Parece-nos que não podemos deixar de notar nessas obras a transfiguração da realidade e da História. Não poderemos ver esses romances como documentos históricos, pois eles são, antes, a apropriação autoral de uma realidade ideologicamente transmutada. Daí que não se deva fazer a relação directa entre literatura e História.

Como vimos, o narrador é o escravo de Baltazar Van Dum, que expõe, através da

ironia contextual, Cadornega115 e o seu conceito de História. Veja-se por exemplo, a fala

seguinte, quando em Massangano, Cadornega, em casa de Jacinto da Câmara, conversa com o filho de Van Dum, Ambrósio:

— Chega a ser uma questão moral. Se escrevo sobre as grandezas de Portugal, como posso contar as coisas mesquinhas? Não, essas ficam no tinteiro, pois não interessam para a história. Será necessário interpretar a crónica. Personagem que não aparece revestida de grandes encómios é porque não prestava mesmo para nada e só o pudor do escritor salvaguarda a sua memória. Assim se tem feito, assim deve ser (AGF: 269).

Assistimos, aqui, à crítica em relação à forma como a historiografia tem sido parcial na análise que tem feito da História. A ironia recai no uso dos adjectivos e substantivos escolhidos, no campo semântico da grandiosidade, bem como na frase final, curta e peremptória de Cadornega, persuadido de uma "verdade" que é desfeita ao longo do romance de Pepetela.

Ainda sobre a intervenção de Cadornega, acentue-se a apropriação de personagens históricas para o domínio da ficcionalidade, característica que, como já referimos, se enquadra

115 É uma concepção que já estava patente em HGGA (tomo I, p. 497): «De muitos Heroes Portuguezes pudéra fazer menção assim antigos como modernos de feitos em Armas que fizerão, assim na mesma Patria, como fora della, de que as historias estão cheas».

nos preceitos do Pós-modernismo, ou do Pós-colonialismo, se entendermos este como uma

vertente daquele, como também defende Inocência Mata116 e já referimos no ponto 1., deste

capítulo II.

O romance coloca igualmente em causa a importância exclusiva que é geralmente dada aos textos escritos, rebatendo a ideia de que não há História sem escrita:

Assim se perderam todos os documentos da conquista da fundação da cidade e todos os mambos e makas que aconteceram nesses anos todos até à chegada dos mafulos. Depois somos nós que não temos sentido de História, só porque não sabemos escrever. Eu, pelo menos, sinto grande responsabilidade em ver e ouvir tudo para um dia poder contar, correndo as gerações, da mesma maneira que aprendi com os outros o que antes sucedeu (AGF: 121).

Testemunhamos, aqui, o posicionamento de que a História oral não deve ser negligenciada para o apuramento de factos históricos, baseada na memória e tradição culturais. Através dos comentários irónicos do narrador e da sua própria postura (um narrador analfabeto teria a oralidade como instrumento privilegiado de narração), a oralidade aparece, assim, como um contaponto em relação ao jugo da historiografia colonial.

Os três tomos de História Geral das Guerras Angolanas, de Cadornega, terminados de

escrever em 1681, dedicados ao Príncipe D. Pedro, abordam o período que se estende desde a chegada a Angola do governador Paulo Dias de Novais (em 1575) até 1680. Apesar das

inúmeras páginas, mostra debilidades tais como a prolixidade, o tom panegírico117, sendo

igualmente escasso ou elíptico em referências cronológicas, ou indicando datas erradas dos acontecimentos. Pepetela soube, porém, distanciar-se das suas fontes históricas através da imaginação. O nosso narrador refere, aliás, com frequência a importância da imaginação na narração dos factos: «Tudo o que possa vir a saber do ocorrido dentro do gabinete será graças

116 Cf. Mata, 2003: 46.

117 A análise subjectiva dos factos está presente ao longo dos tomos, sobretudo através da referência às figuras históricas mais importantes (descobridores, capitães, governadores), do uso de adjectivação e da hipérbole, como é exemplo: «Sahido o nosso valerozo Portuguez Paulo Dias de Novaes Caudilho e Governador da gente Lusitana» (Tomo I, p. 32); «Hindo por diante a Conquista dos famosos Lusitanos com seu esforçado Capitão» (Tomo I, p. 36); «Hindo proseguindo com esta Conquista o nosso valeroso [sic] Conquistador João Mendes de Vasconcelos» (Tomo I, p. 95) — sublinhados nossos.

à imaginação» (AGF: 14); «Eu é que estou a saltar de um tempo para o outro, pois é a única liberdade que tenho, saltar no tempo com a imaginação» (AGF: 16); «Apenas tenho a liberdade da imaginação (AGF: 18)» e «Eu imaginava, logo, tinha a certeza» (AGF: 202).

Observe-se a ironia, por exemplo, na última frase curta e incisiva que coloca em paralelo a imaginação com a certeza, dada pela conjunção conclusiva. Põe-se em relevo a verosimilhança da ficcionalidade que, ao longo da narrativa, sobretudo pela escolha do narrador, ora é posta em causa, ora é destacada, no jogo intertextual que se estabelece com os paratextos e na incursão de personagens históricas na narrativa.

Assistimos nestas citações a uma gradação da importância da imaginação. A imaginação enquanto "reino" sem fronteiras e permitindo todo o tipo de liberdade, inclusive a necessária para supor os factos não presenciados. Por outro lado, a imaginação adquire um relevo muito significativo a ponto de suplantar a realidade dos factos e se tornar inquestionável, logo verdade. Assim, a subjectivação da História repercute-se também no narrador, através da sua imaginação.

Como referimos no início deste capítulo, a História está dependente da concepção

temporal, construindo-se num contínuo entre o passado, o presente e o futuro118. A escrita do

passado visa apreender as suas significações no presente, como este assimilou o que herdou. A

integração da História119 na ficção é, assim, uma estratégia a que o autor recorre, para

recuperar «a condição primordialmente histórica de todo o romance, enquanto género remotamente ligado à História, nas origens da sua consolidação sociocultural e capaz, à sua maneira, de a reescrever» (Reis, 1998: 39). Trata-se da História projectada no futuro.

O narrador deste romance, qual malabarista, faz saltos no tempo, sendo o tratamento da temporalidade elemento fulcral nesta narrativa. Há uma relação entre tempo do narrador (século XVII) e o tempo do autor (século XX) pelo distanciamento irónico conseguido. As

118 É sobejamente conhecido o início de A Geração da Utopia: «Portanto, só os ciclos eram eternos», terminando com a remissão para este «portanto» (GU: 316). É um início irónico, pois as personagens vão sentir o sabor da perenidade assim que a história se vai desenrolando. Também Lueji, por exemplo, é uma obra em que o autor reúne discursivamente passado, presente e futuro.

119 Pepetela, numa entrevista a Elizabeth Brose (2004) refere os motivos que o levaram a escrever A Gloriosa Família bem como Lueji: «Há muitos aspectos da História de Angola que não são conhecidos dos angolanos (...).