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As questões relativas às pesquisas educacionais com abordagens quantitativas ou que utilizam ferramentas estatísticas no tratamento de dados são de interesse de organismos internacionais desde a década de 1950 (FREITAS, 2005). Na mesma linha dos trabalhos anteriores, na década de 1960 foi implementado um estudo chamado Equality of Education Opportunity, mais conhecido como Coleman

Report; o qual foi realizado com vistas a estudar como as oportunidades

educacionais estavam repartidas entre os alunos de diferentes classes sociais dos Estados Unidos. Como forma de validar o resultado desse estudo, Nascimento et al (2017) aponta que ele foi realizado a partir da aplicação de 645 mil questionários, aplicados entre alunos e professores da comunidade acadêmica norte americana do período. O Coleman Report apontou como resultado principal que o nível socioeconômico dos alunos possui forte relação com seu desempenho escolar, enquanto que características relacionadas às escolas e aos professores, apesar de também significativamente importantes, possuem relevância menor.

Ainda em seu trabalho, Nascimento et al (2018) apontam que, apesar de alguns estudos já relatarem que condições socioeconômicas muito baixas influenciam negativamente as funções mentais e cognitivas dos alunos desde os anos da primeira infância, outras variáveis, como envolvimento familiar, nível de instrução dos pais e outros fatores também influenciam significativamente o desempenho escolar, quando se considera um intervalo de tempo maior dentro do percurso escolar do indivíduo. É na junção desses dois fatores, então, que o status socioeconômico torna-se um fator de influência no desempenho a longo prazo, mesmo que ele não seja tão acentuado a ponto de prejudicar as faculdades cognitivas do indivíduo.

Nesse contexto, ainda na década de 1960 e 1970, o sociólogo francês Pierre Bourdieu se dedica a estudar e entender os fatores que estão associados ao desempenho escolar do indivíduo, no decorrer deste percurso.

Bourdieu (2015) coloca uma forte crítica à visão social da escola como instrumento de mudança de vida, ao dizer:

“É provavelmente por um efeito de inércia cultural que continuamos tomando o sistema escolar como um fator de mobilidade social, segundo a ideologia da “escola libertadora”, quando, ao contrário, tudo tende a mostrar que ele é um dos fatores mais eficazes de conservação social, pois fornece a aparência de legitimidade às desigualdades sociais, e sanciona a herança cultural e o dom social tratado como dom natural”. (BOURDIEU, 2015)

Ainda neste trabalho, o autor traz dados que mostram que o ingresso no ensino superior tem influência do acúmulo de características sociais, econômicas e culturais do círculo social dos alunos, de modo que “um jovem da camada superior tem oitenta vezes mais chances de entrar na universidade do que um filho de um assalariado agrícola e quarenta vezes mais do que um filho de operário, e suas chances são, ainda, duas vezes superiores àquelas de um jovem de classe média” (BOURDIEU, 2015). Isso se dá pelo fato de que cada família - e aqui cabe, para dias atuais, a interpretação de família como sendo o grupo social de convívio direto e próximo dos alunos - transmite aos estudantes, mais por vias indiretas que diretas, determinado capital cultural e valores implícitos que contribuem para determinar o modo de encarar a instituição escolar e suas atividades. Corroborando essas afirmações, Clerc (1964) afirma que, para formações acadêmicas similares, a renda dos pais não afeta o desempenho e o êxito escolar dos alunos. Em contrapartida, também afirma que para rendas iguais, formações diferentes influenciam o êxito, de

modo que pais diplomados têm filhos com maior êxito acadêmico, uma maior chance de virem a ser também diplomados. Apesar originalmente publicada na década de 1960, essa análise ainda se mostra assertiva, podendo levar à conclusão de que os fatores de êxito escolar estejam mais fortemente ligados a aspectos culturais dos pais, responsáveis e do grupo familiar do estudante, do que fatores puramente de renda. Não se deve, no entanto, desprezar o fator renda. A questão aqui é como a renda está atrelada à ocupação, e como essa ocupação traz como pressuposto um capital cultural que, inclusive, diz muito sobre a própria relação da pessoa com a escola e as instituições e atividades escolares. Ou seja, o sucesso escolar por muitas vezes atribuído a um “dom natural” do estudante, é claramente resultado de diversos fatores que incluem a relação com a instituição escolar, o modo de encarar a educação, que por sua vez é produto de transmissão de capital cultural do círculo familiar do aluno.

A conceituação do capital cultural surge em Bourdieu e Passeron (1964). É um conceito baseado em estruturas e sistemas simbólicos, como a cultura, a língua, a arte e a ciência, que é utilizado para explicar a construção do mundo e também apreender a dominação social existente na sociedade, uma vez que são grupos dominantes que possuem tal capital e legitimam sua dominância através dessa posse (ALMEIDA, 2007). No entanto, não é apenas dessa posse que se faz a legitimação: há também o controle do capital econômico e do capital social, este último podendo ser entendido como “o conjunto de recursos atuais ou potenciais que estão ligados à posse de uma rede durável de relações (...), ou, em outros termos, à

vinculação a um grupo, como conjunto de agentes que não somente são dotados de

propriedades comuns, mas também são unidos por ligações permanentes e úteis.” (BOURDIEU, 2015(c)).

A influência do capital cultural no percurso escolar se dá a partir de como ele pode estar presente na vida social de um estudante. E essa presença tem três estados: o estado incorporado, que envolve o que já está assimilado pelas pessoas que o possuem, algo que requer tempo e trabalho de inculcação, uma propriedade que se torna parte integrante da pessoa, o estado objetivado, que é o capital representado por itens materiais, tais como obras de arte, escritos, esculturas, etc., e o estado institucionalizado, representado pelo que se assume e se valida sob a forma de um diploma, de uma certificação (BOURDIEU, 2015(d)).

As relações entre os três estados permitem entender como se dá a influência do capital cultural na mudança de classe e desempenho escolar das pessoas: para adquirir capital cultural em seu estado incorporado, a pessoa necessita investir tempo em contato com esse capital, que não se transfere via procuração, é a percepção, a atitude frente a situações - escolares, por exemplo, como é o objetivo deste trabalho - e sua incorporação através do contato com um círculo de pessoas que também detenham tal capital, e o exponham de maneira natural (ou premeditada, como por exemplo no caso de professores ou especialistas em um determinado assunto), ou seja, que de fato o tenha em seu estado incorporado. É diferente do estado objetivado, onde as materializações do capital cultural podem ser transferidas, mas isso não se torna suficiente para que este estado obtido se torne incorporado pela pessoa. Por fim, deve-se entender que o estado institucionalizado traz, a partir da certificação escolar, a possibilidade de comparação entre os diplomados, e permite também uma conversão entre o capital cultural e o capital econômico, quantificando em cifras a posse do capital cultural, de tal modo que essa quantificação acaba por estabelecer o “valor” de um diploma na sociedade, e que então, coloca o investimento no percurso escolar algo válido

apenas se ele tiver rentabilidade, se ele tiver um retorno econômico garantido (BOURDIEU, 2015(d)).

É válido ressaltar que a teoria social de Bourdieu não está isenta de críticas. Nogueira e Nogueira (2002) apontam que a eficácia da transmissão do capital cultural, dada de maneira indireta, depende de diversos fatores intra- familiares, como as “relações de interdependência social e afetiva entre seus membros”. Há também a ponderação de que esse trabalho de transmissão requer um comportamento ativo dos portadores para com os não portadores, e que esse trabalho pode ou não ser bem sucedido (SINGLY, 1996), confrontando a ideia de transmissão osmótica de Bourdieu.

O acesso à educação superior, mesmo com exames de larga escala padronizados, não é igualitário. Isto é, o sucesso obtido ou não ao se pleitear tal vaga está relacionado a fatores como os já citados pela teoria de Bourdieu, em menor ou maior intensidade. Estudos mostram que, nos Estados Unidos, o desempenho de estudantes pertencentes a grupos de minoria social em exames externos como o Scholastic Assessment Test (SAT) ou o American College Testing (ACT) é menor que os de grupos sociais historicamente mais favorecidos (WALPOLE, 2005; HORVAT, 2001, apud OLIVEIRA, 2014). No Brasil, estudos como o de Andrade (2012) dão a perspectiva em relação à essa característica, mostrando que, analisado o acesso ao ensino superior pela renda, 60% dos jovens de 18 a 24 anos chegam ao ensino superior, se pertencerem ao grupo formado pelos 20% mais ricos, enquanto o acesso é de apenas 3% para o grupo formado pelos 20% mais pobres. Se analisado sob o aspecto étnico, a porcentagem dos jovens brancos que chegam ao ensino superior é de 28%, enquanto os de não brancos é de 11%.

Nesse aspecto, mesmo exames de larga escala e avaliações que se proponham ser isentos e idôneos acabam por não estarem imunes à fatores que afetem o desempenho escolar, que não a própria escola e percurso escolar, como mostram os trabalhos de Nascimento et al (2018), Silva Junior e Amorim (2013), Palermo et al (2014), Almeida Pinto (2015), Kleinke (2017) e Marcom e Kleinke (2014).